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Capítulo 3 – CONSIDERAÇÕES SOBRE O MÉTODO

3.2. Posicionamento metodológico

Para concretizar os objectivos atrás definidos, optamos, após aprofundada reflexão sobre as diferentes metodologias de investigação existentes e

ponderação das suas vantagens e limitações por, em estreita relação com a natureza do objecto e os objectivos definidos, escolher uma metodologia de tipo qualitativo, filiada na fenomenologia e na filosofia hermenêutica.

Tomamos por referência a proposta de Cândido da Agra95 quando afirma que a compreensão dos comportamentos de consumo de drogas requer uma abordagem teórica que privilegie a análise das estruturas, dos funcionamentos e processos dos indivíduos consumidores nos seus contextos sociais, permitindo a compreensão do fenómeno da droga no plano da significação existencial.

Partilhamos com o autor a ideia de que as virtualidades de um método se inscrevem nas possibilidades que ele oferece para a compreensão do objecto em estudo e as metodologias qualitativas são particularmente úteis na desocultação de processos e de significados, logo, particularmente adequada no caso presente, quando se pretende aceder a posições sociais, a trajectórias de vida, à compreensão do processo de construção de significações no tempo, em estreita relação com as dinâmicas e influências das estruturas de socialização com as quais os adolescentes, com comportamentos de consumo de drogas, foram interagindo ao longo da sua vida.

Sendo o nosso objecto de investigação fenómeno ao mesmo tempo social e individual, simultaneamente induzido pelo social exterior e pelo social interiorizado pelo sujeito, será aconselhável, segundo Giddens96, enveredar por uma estratégia metodológica pluralista que capte as acções individuais investidas de significados, acções que traduzem ou revelam o efeito das estruturas sociais mas são também decisivas para a própria definição dessas estruturas. De facto, e segundo este autor, a acção não é redutível à intencionalidade dos actores, ela produz-se nas (para além de reproduzir as) condições fixadas pela estrutura. É, assim, a partir da ruptura com as filosofias idealistas, que reduzem a acção humana a um mero processo resultante das subjectividades individuais, mas também com as correntes funcionalistas e estruturalistas, que subestimam a importância da consciência prática dos actores, que Giddens desenvolve a sua teoria da estruturação como dialéctica das estruturas objectivas e subjectivas.

Esta perspectiva do social enquanto realidade ao mesmo tempo exterior e interior foi igualmente desenvolvida por Pierre Bourdieu, um autor obrigatório sempre que nos confrontamos com a necessidade de reflectir sobre as estratégias metodológicas de recolha e tratamento de informação empírica. O seu modelo de ―construtivismo estrutural‖ inspira-se numa reelaboração exaustiva e profunda das

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Cândido da Agra, ―Sujet autopoiétique et toxicodépendance‖. Centre International de Criminologie Comparée de Montréal, 1991 (documento policopiado).

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produções inspiradas no interaccionismo simbólico, na etnometodologia, na dramaturgia social de Goffman, assim como nos estudos inspirados no paradigma estruturalista, de que Durkheim e Marx são dois exemplos clássicos.

A revisão crítica dos paradigmas atrás referidos levou Bourdieu a questionar as dicotomias teóricas e metodológicas instaladas na sociologia, que, a seu ver, constituem um obstáculo dos mais perniciosos ao desenvolvimento da produção científica sobre o social. Através do conceito de habitus, este autor constrói um caminho para apreender os modos como as condições sociais de existência passam a fazer parte da consciência dos indivíduos, e, por sua vez, a condicionar as suas práticas de interacção e adaptação ao mundo externo. A análise dos comportamentos dos indivíduos não pode prescindir, de acordo com uma tal perspectiva, da observação do real exterior em que o sujeito foi e é socializado. Realidade social objectiva, ela é também realidade social subjectiva quando interpretada, logo, objecto de atribuição de significações por parte dos actores sociais. Mas o processo de interiorização e significação, de criação de gostos e inclinações é condicionado pelo contexto social no qual se inscreve97.

A síntese peculiar de autores como Marx, Durkheim, Weber, Elias e Goffman conduziu Bourdieu a uma construção teórica particularmente rica, com consequências metodológicas muito relevantes para o afinamento dos instrumentos de recolha e interpretação dos factos empíricos. A problematização avançada por Giddens e, em especial, por Pierre Bourdieu representa um avanço teórico e metodológico muito valioso, precisamente por terem recuperado as perspectivas provenientes do interaccionismo e da etnometodologia, evitando, ao mesmo tempo, reduzir a acção humana a uma produção de seres com capacidade para reflectir sobre o que fazem. Se é verdade que todo o ser humano dispõe de capacidade para interpretar os contextos da sua acção, podendo, por isso, ser considerado um "teórico social prático", isto é, um sujeito que acciona conhecimentos, esquemas de interpretação, "recursos práticos cuja utilização é precisamente a condição para a produção de qualquer encontro", não é menos verdade que essa mesma capacidade é social e historicamente condicionada.

As consequências teórico-metodológicas desta perspectiva apontam, pois, para a necessidade de construir instrumentos de análise, interpretação e problematização das próprias representações dos actores sociais e dos processos que levaram os indivíduos a construir as suas representações. Neste quadro de referência, o trabalho do investigador não acaba na recolha das representações expressas pelos

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Berger, Peter e Luckmann, Thomas (1976): A Construção Social da Realidade, Editora Vozes, Petrópolis.

actores, como se estas não fossem, elas próprias, objecto de interpretação e de produção científica, ele tem de avançar para a interpretação e simbolização teoricamente sustentada dos dados recolhidos.

O interesse por nós conferido ao significado da acção social levou-nos, então, a privilegiar a imersão nas formas de vida concretas, procurando conhecer o ponto de vista dos actores, a sua cultura, o seu universo de sentidos. Adoptando o ponto de vista das teorias interpretativas, entendemos que os seres humanos, dotados de auto-reflexividade, regulam reflexivamente as suas acções e são dotados de competência para explicar as razões que os levam a fazer o que fazem. A consideração da reflexividade como característica determinante da acção humana não pôde, por consequência, deixar de implicar uma outra postura específica no plano metodológico: a de adoptar metodologias narrativas, por serem particularmente adequadas ao estudo de trajectórias e histórias de vida e à compreensão dos processos de construção de significados que regulam a acção humana.