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diferentes modalidades do ler, de acordo com o lugar, ambiente ou época. No entanto, é invariavelmente tomado dentro de uma rede de práticas culturais e sociais que lhe dá sentido. A partir desse pressuposto, as estratégias de escrita e edição esboçam as leituras implícitas e os usos possíveis dos impressos postos em circulação. Os traços desses objetos tipográficos e protocolos de leitura presentes nos livros da Coleção Biblioteca das Moças explicitaram como seus romances foram dados a ler, indicando as representações de leitura e apropriações de suas “possíveis leitoras”.

Para compreender as significações dos impressos, Chartier recomenda a análise do próprio impresso em sua forma material, considerando que “a fórmula editorial dá ao objeto formas próprias, que organiza os textos segundo dispositivos tipográficos específicos” (2004, p. 275). A análise da materialidade ou esquema de modelização27 dos romances da Coleção buscou identificar seus modos de produção, cruzá-los com seus

27 O conceito de esquema de modelização, de acordo com os trabalhos de Roger Chartier, ressalta a materialidade dos dispositivos textuais e tipográficos e sua relação com a leitura e seus modos de apropriação (NUNES; CARVALHO, 1993).

usos e, dessa maneira, confrontar as estratégias utilizadas por seus editores e as táticas desenvolvidas por suas “possíveis leitoras”.

No caso da Coleção Biblioteca das Moças, esse esquema de modelização passa inicialmente pela escolha de romances considerados adequados, que atendessem ao que era tido como uma leitura apropriada e autorizada para moças. O nome dado à Coleção já declara seu público. Mesmo assim foi reforçado constantemente através de propagandas em jornais, revistas e nos catálogos da Companhia Editora Nacional, como demonstra Lang (2008) citando o Catálogo de 1934: “Surpreendente série de livros para moças, a melhor e mais criteriosa publicação em nossa língua. Edição caprichada, capa a cores, traduções selecionadas. Belíssimos romances de pura e sã leitura”.

O artifício adotado em divulgar livros com alta qualidade editorial pode ser percebido como uma estratégia utilizada pelos editores da Companhia Editora Nacional dentro do “negócio com livros”, preocupação já demonstrada nas correspondências trocadas por Monteiro Lobato com Godofredo Rangel. De tal modo, que a ideia de publicar sempre o melhor, independentemente do gênero, está sempre presente em seus catálogos: “os melhores livros de ficção em língua portuguesa”; “a mais criteriosa coleção para moças publicada em nossa língua”; “a melhor e a mais rica coleção para crianças” (TOLEDO, 2001, p. 62). A recorrência desta estratégia em suas divulgações demonstra o quanto a “representação como prática posiciona seus agentes e constitui o social como social ordenado, hierarquizado, classificado a partir de posições dos agentes nela articuladas, a diferença adquire nitidez” (NUNES; CARVALHO, 1993, p. 49).

Além das representações sobre livros e leitores mencionadas acima, a

representação de homem e de mulher esteve sempre presente no conteúdo dos romances.

Com algumas variações entre autores e períodos em que foram escritos, os romances trazem os modos como moças e rapazes deveriam ser e agir. Essas representações seriam formas “que, à revelia dos atores sociais, traduzem as suas posições e interesses objetivamente confrontados e que, paralelamente, descrevem a sociedade tal como pensam que ela é, ou como gostariam que fosse” (CHARTIER, 1990, p. 19). Com base na função simbólica da representação, é possível compreender como a realidade é percebida e explicitada nos enredos dos romances.

Desse modo, considera-se que o processo editorial acaba inventando um leitor a quem destina o livro e, à medida que essa estratégia idealiza este leitor, também determina um tipo específico de leitura para atendê-lo. Essa representação do leitor estabelece as mudanças e adaptações realizadas nos livros de acordo com cada leitor

inventado, ou seja, um mesmo texto receberia formato de letra, diagramação, ilustração, capa entre outros dispositivos gráficos, conforme o leitor ao qual se destina.

Contudo, o rastreamento dos movimentos destas “possíveis leitoras” na biblioteca do Instituto de Educação “Carlos Gomes” deparou-se com a tensão posta por Roger Chartier aos historiadores que pretendem investigar as práticas de leitura, qual seja: é preciso tratar conjuntamente a “irredutível liberdade dos leitores e os condicionamentos que pretendem refreá-la” (CHARTIER, 1990, p. 123). Para o autor, a História Cultural pode ser definida pela união de três elementos inseparáveis: a história dos objetos na sua materialidade, a história das práticas nas suas diferenças e a história dos dispositivos nas suas variações (NUNES; CARVALHO, 1993, p. 45). Essa abordagem rejeita trabalhar ideias desencarnadas das práticas daqueles que as produzem ou dos impressos que as colocam em circulação e possibilitam sua apropriação.

Os rastros, vestígios e indícios deixados pelas “possíveis leitoras”

Os romances encontrados na biblioteca não circulante do Instituto de Educação “Carlos Gomes” foram tomados como objeto e fonte de pesquisa em busca de vestígios e marcas expressos “por assinaturas, carimbos dos proprietários e/ou dos locais de compra, anotações em suas margens, conhecidas como marginálias, e, ainda, pelos objetos esquecidos dentre suas páginas considerados como objetos-relíquia” (CUNHA, 2009). Além destes indícios, os reforços dados em suas capas com fita adesiva demonstram o quanto foram manuseados; os registros nos cartões de empréstimos evidenciam que foram diversas vezes procurados oferecendo pistas sobre a presença das “possíveis leitoras”.

Seguindo as considerações tecidas por Chartier ao propor que as análises sobre a leitura necessitam contrapor práticas de ordenação de condutas, espaços e pensamentos às táticas de consumo desenvolvidas pelos indivíduos, acreditou-se que os caminhos percorridos pelas “possíveis leitoras” da Coleção Biblioteca das Moças no Instituto de Educação “Carlos Gomes” possibilitaria a contraposição entre as estratégias da Companhia Editora Nacional e as táticas de que as “possíveis leitoras” lançaram mão, demonstrando que “longe de terem a absoluta eficácia aculturante que lhes é atribuída

com frequência, esses dispositivos [...] deixam necessariamente o lugar, no momento em que são recebidos, à variação, ao desvio, à reinterpretação” (CHARTIER, 2002, p. 53).

Esta aparente contraposição tratada por Chartier (1990, p. 121), entre o “caráter todo-poderoso do texto” e a “liberdade primordial do leitor”, ficou demonstrada logo no início da investigação, quando os marcos temporais levantados por meio da pesquisa bibliográfica sobre a constituição da Coleção não correspondiam às datas registradas nos exemplares. Ao projetar uma pesquisa que considerava uma estratégia voltada inicialmente para moças, possivelmente normalistas, das décadas de 1920 e 1930 e encontrar exemplares publicados na década de 1950 com registros de empréstimos até a década de 1970, verificou-se que a “liberdade do leitor” se aparecia à medida que a pesquisa avançava. Cabia, assim, interrogar os distintos usos feitos desses textos (CHARTIER, 1990, p. 122) ao logo desse período.

O modelo de análise proposto por Darnton (1992, p. 299), no qual recomenda uma estratégia dupla combinando análise textual e pesquisa empírica, possibilitou que a análise fosse além da materialidade do texto. Desse modo foi possível comparar os leitores implícitos do texto com os leitores reais, neste caso as “leitoras pretendidas” e as “leitoras rastreadas”. Ao considerar registros particulares de leitura fontes valiosas para a história da leitura, o autor acredita ser este um canal privilegiado de acesso às práticas de leitura do passado, apesar de geralmente serem raras e fragmentadas. Mesmo que não represente o todo, Darnton (1992, p. 224) ressalta que é possível “captar algo do que a leitura significava para poucas pessoas que delas deixaram registros”.

A investigação dos vestígios deixados pelas “possíveis leitoras” da Coleção possibilita conferir as relações entre a leitura prescrita e a realizada, entre a “leitora pretendida” e a “leitora rastreada” e, ainda, investigar apropriações ocorridas no ato da leitura.

Ao desenvolver a pesquisa tendo o paradigma indiciário como método, torna-se apropriado apresentar as considerações tecidas por Ginzburg acerca da evidência como pista ou prova em estudos posteriores28 ao texto Sinais: raízes de um paradigma

indiciário, que propõe essa abordagem metodológica29. Em seu texto Controlando a

evidência: o juiz e o historiador (2011, p. 342-358), o autor pondera sobre os motivos

28 Ginzburg retoma e aprofunda questões relativas ao paradigma indiciário em Olhos de madeira: nove

reflexões sobre a distância, publicado em 1998; Relações de força: história, retórica, prova, de 2000; e em O fio e os rastros: verdadeiro, falso, fictício, de 2007.

29 A abordagem metodológica foi apresentada em Sinais: raízes de um paradigma indiciário, que integra o livro Mitos, emblemas, sinais: morfologia e história, publicado em 1989.

que levaram a noção de prova cair em desuso, compreendida como uma herança positivista, especialmente se tratada a partir de ideias associadas à verdade e realidade. Dentro dessa perspectiva, o historiador trabalharia com as seguintes possibilidades:

[...] um documento pode ser falso; um documento pode ser autêntico, mas não confiável, na medida em que a informação fornecida por ele possa ser mentirosa ou enganosa; ou um documento pode ser autêntico e confiável. Nos dois primeiros casos, a evidencia é descartada; no último, é aceita, mas somente como evidência de algo. Em outras palavras, a evidência não é tomada como um documento histórico em si, mas um médium transparente – como uma janela aberta que nos dá acesso direto à realidade (GINZBURG, 2011, p. 347).

A argumentação do autor gira em torno do ceticismo presente sobretudo entre os críticos do positivismo que, baseados em uma abordagem demasiadamente cética, caem em uma “armadilha às avessas”, transformando a possibilidade de tratar a evidência como uma janela aberta em um muro que bloqueia o acesso à realidade, tornando-se um “positivismo invertido”. Dessa forma, considera que ambas abordagens partem de um pressuposto igualmente simplista: a relação direta entre evidência e realidade.

Entretanto, a possibilidade conquistada pelo fazer historiográfico no século XX, que permite a busca de aspectos desconhecidos do passado pela opção por daquilo que é plausível ou provável, possibilita rever a abordagem dada às evidências. Levando em conta a evidência histórica pode ser tanto involuntária, como uma pegada, quanto voluntária, como uma crônica, o autor reforça que as duas situações devem ser abordadas tomando por base um paradigma específico. No caso de ser voluntária, deve, ainda, estar relacionada a um código específico com o qual a evidência será construída. Em muitos de seus trabalhos Ginzburg lidou com o que considerava serem “erros fecundos”, os quais, dependendo do rigor do historiador, contribuiriam com a pesquisa histórica sinalizando que esse tipo de pesquisa implica, necessariamente, administrar o erro ou tentar suprimi- lo, ou seja, está ligada aos próprios limites da investigação histórica.

Dessa maneira, o autor propõe que o trabalho de pesquisa do historiador incide em analisaras fontes considerando as relações de força ali presentes, somente desse modo ocorrendo uma aproximação do “conhecimento possível” alcançado mediante o trabalho de construção de uma retórica baseada em uma prova. Ainda ressalta que a retórica se “move no âmbito do provável, não no âmbito da verdade científica numa perspectiva delimitada, longe do etnocentrismo inocente” (GINZBURG, 2002). Assim sendo, uma análise construtiva das fontes demanda um esforço em arquitetá-las não como “janelas abertas” ou “muros que impedem a visão”, mas com um “espelho produtor de

distorções. Sem uma ampla análise da distorção que lhe é inerente, [...] uma reconstrução histórica válida é impossível. Mas essa afirmação deve ser lida também em sua contrapartida: uma leitura puramente interna da evidência, sem nenhuma referência a sua dimensão referencial, é igualmente impossível” (GINZBURG, 2011, p. 348).

O trabalho de Natalie Zemon Davis em O retorno de Martin Guerre é citado como modelar mobiliza de forma modelar por mobilizar questões teóricas desenvolvidas em seu próprio trabalho que possibilitaram tanto a investigação judiciária, quanto o diálogo com a narrativa ficcional, literária ou cinematográfica. Na primeira situação a autora aborda o estatuto de prova na investigação histórica rebatendo o estatuto de incerteza e contexto; na segunda, avalia a vinculação do fazer histórico com o uso da linguagem e as implicações cognitivas presentes em narrativas históricas. Ginzburg (2011) dá destaque ao cuidado que a autora demonstra em “separar verdades de possibilidades”.

Em vez de afastar no modo indicativo as aproximações que ela produziu para preencher os vazios de documentação, Davis dá ênfase a esses vazios usando condicionais ou expressões como “talvez” e “pode ter havido”. Podemos comparar sua abordagem às técnicas de restauração da arte antiga, como rigatino, no qual as lacunas da pintura são enfatizadas por finos traços em vez de dissimuladas pela repintura, como se estivessem no passado (GINZBURG, 2011, p. 356).

Tais observações consideram a assertiva de Lucien Febvre, que “as fontes históricas não falam sozinhas, mas só se interrogadas de maneira apropriada” (2002, p. 114). Assim, a mediação entre questões e fontes confere às narrativas uma posição provisória, sujeitas a modificações durante o processo de pesquisa. O produto final deve apresentar as questões que instigaram o pesquisador, mostrar o interdito que não está dito; os espaços em branco não devem ser “dissimulados pela repintura”, assumindo as distorções inerentes à reconstrução histórica. Ciente das dificuldades postas em investigar práticas de leitura e do “rigor flexível” necessário à pesquisa indiciária, o autor do trabalho aqui apresentado expõe o trajeto percorrido pela pesquisa, o qual foi delineado à medida que os vestígios e pistas deixadas pelas “possíveis leitoras” confirmavam ou redirecionavam suposições levantadas.

Para seguir no rastreamento das “possíveis leitoras” da Coleção foi desenvolvida a análise detalhada da materialidade de cada um dos exemplares. Nesse levantamento ficou estabelecido o pertencimento dos romances à biblioteca do Instituto por apresentarem o carimbo da instituição escolar ou de tombo, constituindo como já mencionado, a ancoragem ao período em que a instituição foi denominada Instituto de

Educação. Desse modo, houve a presença predominante de marcas voltadas para a ordenação dos romances dentro da biblioteca mediante os carimbos da instituição, carimbo e número de tombo, e cartões com registro de empréstimos.

A catalogação dos 79 romances da Coleção localizados na biblioteca indicou que dezoito apresentam carimbo de duas livrarias da cidade de Campinas, sugerindo que foram adquiridos com recursos que eram destinados à biblioteca para ampliação do acervo. Durante o período do Instituto de Educação a biblioteca contava com “uma verba considerável para a sua manutenção, além de certa autonomia para tal” (MENEZES, 2011, p. 12). Entre os dezoito, oito apresentam o carimbo da Livraria Universal, que na época era localizada na Rua Francisco Glicério, 1.085. Outros dez romances trazem o carimbo da Livraria Nossa Casa, localizada na Rua General Osório, 1.173.

No exemplar do romance Mitsi de M. Delly, não consta carimbo da instituição, mas há número de tombo e cartão de empréstimo. Vestígios sugerem que foi doado à biblioteca, por trazer na primeira página, no canto esquerdo superior, uma assinatura e a data 5-6-56. Também nessa página, a etiqueta do Bazar Luster, Rua Augusta, São Paulo. Os demais 60 exemplares não apresentam vestígios da sua forma de aquisição.

Marcas deixadas por “possíveis leitoras” apareceram nas páginas de 15 dos 79 exemplares. Uma “possível leitora” do romance Um coração entre flores, de T. Trilby resolveu adiantar o final do livro e escreveu na página 49: “a senhora Jeanne morre no fim”, e, na página 67: “a senhora Jeanne é mãe de Odile, mas só no fim ela fica sabendo”. As inscrições em outros livros atribuíam qualidade ao romance, indicando aos próximos leitores se o romance era bom ou não.

Nos romances Apuros de uma, Rica de Berta Ruck; A sétima miss Brown, de Concórdia Merrel; e Os dois amores, de Henri Ardel, uma “possível leitora” utiliza a lista da coleção ao final do livro para marcar os romances da Coleção que já havia lido. Apesar de aparecerem em poucos exemplares da Coleção localizados na biblioteca, as marcas deixadas pelas leitoras nos romances podem ser consideradas indícios seguros da leitura ali realizada. Vestígios de que o romance foi manuseado e de que, de algum modo, a “possível leitora” marcou sua leitura nesse exemplar.

Analisar essas marcas permite inferir as relações que a “possível leitora” estabeleceu com o livro, sinalizando que realizou uma convivência mais aprofundada com o impresso (CUNHA, 2009). Entre as marcas as anotações marginais podem ser compreendidas como um dos gestos que conduz as práticas de leitura e de escrita e

tornam-se um modo de localizar citações e exemplos que o leitor detém “como modelos estilísticos, dados factuais ou argumentos demonstrativos, que ele transfere do livro lido para seu caderno de lugares-comuns” (CHARTIER, 2002, p. 94).

Entre os objetos esquecidos foram encontrados dentro do romance Sorte em

amor, de Berta Ruck, três ingressos para o Gran Circo Norte-Americano30. Os ingressos, um bônus escolar, trazia a ressalva de que “não vale sábados e domingos” e “toda criança ou estudante portador deste bônus pagará na geral cr$ 3,00 e na cadeira cr$ 5,00 na matinê de 5ª Feira nos horários das 15,30 e 17,30 horas”. Não consta a data. A “possível leitora” que esqueceu o bônus dentro do romance talvez tenha preferido a leitura deste a prestigiar o espetáculo circense, ou simplesmente esquecido dentro do livro.

No romance Enquanto é tempo de amar, de Florence L. Barclay, havia um cartão impresso, que teve como função inicial convidar para um evento no Instituto: “A união de ex-alunos do I. E. ‘Carlos Gomes’ de Campinas, tem a honra de convidar V. Sa. para paraninfar o Cristo a ser entronizado no Jardim Interno do estabelecimento no dia 13 de maio p. f. Dia da Escola. C.R.C31. [presidente]. Campinas, maio de 1970”.

Imagem 7 – Objetos esquecidos no interior dos livros

30 O Gran Circo Norte-Americano terminou tragicamente em 1961, em Niterói, após um incêndio que é considerado até os dias atuais uma das maiores tragédias do país.

31 Os nomes e assinaturas encontrados durante a análise dos exemplares dos romances serão mencionados no trabalho apenas através de suas iniciais.

Posteriormente, o mesmo cartão serviu para anotar um pedido de orientação à bibliotecária, apresentando informações sobre o funcionamento da biblioteca nesse período. O verso do cartão-convite tem a seguinte anotação: “D.M. A aluna no. 540 do 1º. Colegial C perdeu o livro e não encontrou mais. Como devo fazer? F.”. A resposta da bibliotecária é enviada no mesmo cartão: “Manda comprar outro: dê a ela nome e título, prazo de 3 dias. Caso não encontre o livro, deve repor outro então ou darei o nome do livro que ela deverá comprar. M.”. Essas pistas indicam o controle que havia sobre o acervo e a disciplina cobrada aos alunos no uso da biblioteca.

Os exemplares analisados trazem ao final, colado na parte de dentro da quarta capa, um envelope com cartão para o registro de empréstimo. De modo indiciário, o bilhete mencionado acima confirmou que o número registrado nesses cartões era realmente o número do usuário. A “aluna no. 540” havia emprestado A passageira, de Guy Chantepleure, em 12 de agosto de 1970; Estranha lua de mel, de Berta Ruck, em 24 de maio de 1971; e No silêncio da noite, de M. Delly, em 4 de outubro de 1971.

O aparente devaneio ao rastrear essa “aluna no. 540” indicou novas rotas que redirecionaram a pesquisa, demonstrando que, provavelmente, mais que as marcas deixadas pelas “possíveis leitoras”, o esforço para compreender e investigar o movimento de empréstimos dos romances poderia ser promissor. Pela análise dos cartões de empréstimo foi possível acompanhar a procura dos romances, a assiduidade dos usuários interessados nessa leitura e os romances mais procurados. Cabe ressaltar que o trabalho de pesquisa pautou-se nos exemplares localizados atualmente na biblioteca não circulante da instituição em foco. Como não foi possível verificar se a biblioteca contava com toda a coleção, não sendo possível afirmar se tiveram exemplares perdidos ao longo das décadas, pela falta de devolução ou pela má-conservação a que os livros ficaram expostos durante anos.

Desse modo, retomamos as ressalvas feitas por Ginzburg sobre trabalhos que se dedicam aos vestígios, indícios e pistas que “sobreviveram” ao descarte e à má- conservação ao longo do tempo, sendo preciso ter sempre presente que são trabalhos que lidam com possibilidades e não com verdades, e a análise empreendida dos dados e das fontes deve considerar a “distorção que lhes é inerente” (GINZBURG, 2011).