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Post-mortem e sociedade dos mortos: concepção na Duat

4. O MUNDO DOS VIVOS, O UNIVERSO DOS MORTOS E A PRODUÇÃO

4.3. Post-mortem e sociedade dos mortos: concepção na Duat

Religião e natureza não se separavam, mas também não se separava natureza de quaisquer outras esferas – políticas interna e estrangeira, cultura, economia, segurança militar etc. Toda esta percepção, como vimos, habitava os preceitos religiosos, a ponto de ser o Livro dos Mortos uma espécie de mapa do outro mundo – e o “mundo imaginário é uma configuração das experiências descritas no Livro dos Mortos” (TAYLOR, 2010, p. 132). Este mapa do outro mundo seguia padrões de fabricação que tinham por fim a documentação do todo – necessidade que ajuda a explicar o porquê de os egípcios não fazerem uso da perspectiva, que deforma a imagem – e as imagens são a “apreensão do real” (SEEMANN, 2003, p. 50). A cartografia,

portanto, seguia determinados padrões mágicos, que garantiam não somente o conhecimento do outro mundo, mas sobretudo, a efetividade de se transitar no mesmo.

Aquilo que é documentado pelo Livro dos Mortos é uma cartografia do além, ou seja, uma cartografia da Duat em contraponto com Kemet (a terra) e com o mundo celeste. A Duat documentada no Livro dos Mortos é uma projeção de Kemet; é sua própria extensão rumo à eternidade. A cartografia visa garantir ao homem dela detentor a mesma segurança para caminhar na Duat que tinha para explorar o mundo dos vivos. Neste sentido, interessa destacar a quantidade de similitudes da Duat em relação à terra na medida em que se trata de um espaço projetado. Na Duat não havia invenções advindas do fantástico, tudo era eminentemente terreno, humano, embora em outro plano45. Mesmo a preocupação com lagos de fogo, que aparece no Livro dos Mortos, por exemplo, pode ser metaforizada através do medo da seca e do deserto.

O Egito foi concebido pelos deuses, de acordo com as cosmogonias, e posteriormente unificado pelos homens; a terra dos vivos passou a servir como um espaço de percepção e de vivência que atuou no sentido de elaborar uma nova concepção, desta vez, do mundo dos mortos. “As cosmologias [mais conhecidas] são três, mas podemos dizer que representam variações políticas sobre um único e mesmo tema: a criação (do universo), pelo sol, a partir do elemento líquido, para o que a enchente anual do Nilo forneceu o arquétipo” (GRIMAL, 2012, p. 40). Em outras palavras, os egípcios se utilizavam enormemente de suas interações com o espaço para produzir seus mitos, ou seja, os princípios gerenciadores de sua própria sociedade – mesmo o faraó era considerado como um descendente divino, como a representação do deus Hórus e o próprio deus na Terra, sendo também o final de uma linha sucessória que se iniciara em Osíris, perpassando por Hórus e de quem o faraó era descendente – e desta forma é que não é possível separar mito de razão, posto que toda essa elaboração do mundo é racional.

Concebemos o apreço pelo tema da origem como um fator fundamental no que se refere às ações coletivas do homem no espaço. “Na verdade, o espaço social ‘incorpora’ atos sociais, os de sujeitos ao mesmo tempo coletivos e individuais, que

45 Acreditamos também na possibilidade desses espaços estarem localizados ainda no espaço terreno dos

nascem e morrem, padecem e agem” (LEFEVBRE, 2006, p. 36). Em outras palavras, toda a explicação do cosmos egípcio era resultado de uma produção milenar oriunda dos significados que o homem oferecia aos mais variados aspectos da natureza, pelo que se explica a ideia pungente de manutenção da ordem cósmica, ou seja, de um estado que não se podia modificar. De alguma forma, todas as ações egípcias eram realizadas com o forte objetivo de não se quebrar a ordem cósmica – desde as ações dos faraós, que asseguravam o sucesso das colheitas anuais a partir da realização de ritos, até os rituais fúnebres, sem os quais os homens, mesmo aqueles de condição social inferior deviam se submeter para que a ordem desfeita no momento da morte fosse restabelecida no post- mortem. O Livro dos Mortos, pois, no contexto e na condição social que estudamos, nada mais é do que um dos mecanismos garantidores da ordem, ou seja, do restabelecimento da mesma após a morte.

Não se tem uma divisão rígida do homem frente à natureza no mundo dos vivos e no espaço dos mortos; não existem diferenciações profundas entre as diversas camadas de espaço, algo que ajuda a explicar o espelhamento do mundo dos mortos em relação ao mundo dos vivos. Neste sentido é que afirmamos que a ordem representada pela preparação do aparato fúnebre (que inclui o Livro dos Mortos, por exemplo) é algo realizado no decorrer da vida, por meio de “instituições” consolidadas (como as oficinas de artesãos, os construtores de tumbas, os embalsamadores etc., considerando aqui, evidentemente, a classe46 que podia adquirir esses ricos instrumentos47).

O universo dos mortos, tal como o colocamos, era um espaço desconhecido que tinha no Livro dos Mortos a oportunidade de se fazer conhecido; palpável – posto que o mapa é um meio informativo e decodificador de espaços. O Livro dos Mortos era o caminho para o conhecimento do outro mundo. Não é suficiente representar se não se sabe ler aquilo que se representa; para se desfazer desse problema é que aquilo que era representado não era propriamente uma mera representação, mas antes de tudo se constituía como uma apropriação do real.

46 Não entraremos na discussão do conceito de “classe”; aqui, “classe” é uma palavra utilizada de maneira

genérica para diferenciar os mais abastados da população mais simples.

47 Mesmo nas tumbas dos homens mais simples se podem encontrar vasos, vasilhas e outros utensílios

Existe, na verdade, uma estreita relação entre o espaço natural e cósmico, o espaço social, enquanto espaço construído, e o espaço percebido e representado. É a sociedade que produz, o espaço social, através da apropriação da natureza, da divisão do trabalho e da diferenciação. O próprio espaço físico é também construção do imaginário individual e colectivo. Pode dizer-se que a relação com o meio ambiente é mediatizada por representações. Existe aqui uma circularidade: constrói-se como se representa e representa-se como se constrói (FERNANDES, 1992, p. 62).

O mundo dos vivos era um espaço conhecido; o universo dos mortos era um espaço abstrato. É preciso ordenar tudo aquilo que não se conhece, mas que se necessita conhecer – e esta é a forma de tornar um espaço palpável. Entre dois espaços necessariamente existe uma fronteira que os demarcam, tecendo as mais variadas separações ideológicas. No caso egípcio, a morte pode ser interpretada como uma fronteira que separava o homem de um mundo e de outro. Essa fronteira, no entanto, na medida em que era vencida, atuava no sentido de fazer perceber que – além da inevitável separação entre vida física e vida transcendental – não havia demais rompimentos, ou seja, a ordem social, a cultura, a necessidade de adoração aos deuses etc.; tudo isto se mantinha.

Além de já ser um, o universo cria espaços, ou seja, dentro do universo existem muitos outros espaços compartimentados que, sem dúvidas, refletem as necessidades do homem terreno: os Campos de Oferendas e de Juncos são, talvez, os mais conhecidos e recorrentes espaços do mundo transcendente, a Duat e o mundo celeste, mas suas reminiscências são terrenas na medida em que evocam os espaços dedicados a Osíris e a Rê no mundo dos vivos (respectivamente, Ábidos e o Delta do Nilo). Além dos espaços, o mundo dos mortos é caracterizado por uma série de sentimentos terrenos, resumidos nas necessidades de sentir (o corpo e a mente), de falar, de caminhar etc. O homem é movido pela ação e pela agência caracterizadoras dos espaços percebido e vivido e, na medida em que são interdependentes, são norteadoras também do espaço concebido; a ação do homem é que produz os espaços.

O morto do Livro dos Mortos, como pontualmente conceituou Rogério Sousa (2010), é caracterizado pela ideia de peregrinação, de movimento, de partir de um lugar com destino a outro, de partir de uma vida linear (djet) com destino a uma existência

cíclica (neneh). Por isto é que todos os capítulos do Livro são compostos por ações, donde notamos a existência de inúmeros verbos com o mesmo significado de se movimentar (sair, levantar, respirar, comer, abrir [a boca], reviver, semear, navegar etc.)48. Para os egípcios, viver no universo dos mortos era, grosso modo, tornar a fazer aquilo que faziam no mundo dos vivos – isto explica o fato de serem constantes as cenas de agricultura, de partilha de oferendas, de adoração aos deuses, de respeito às regras morais dos vivos (não matar, não roubar, não cometer adultério, não desviar o curso do rio, não tagarelar, não adulterar as medidas dos grãos etc.49).

Os deuses faziam parte tanto do mundo celeste quanto do mundo ctônico, e todos eles eram o microcosmo de algum fenômeno natural terrestre: Rê não teria seu significado sem o elemento solar; Osíris sem as cheias; Seth sem o deserto; Shu e Tefnut sem o ar e a umidade; Geb e Nut, a terra e céu, respectivamente, Maat (a ordem do mundo, ou seja, a manutenção deste), Hapy (o Nilo), dentre outros. Os próprios mitos de criação do mundo – todos eles – têm no elemento da natureza a sua semente. Rê (o sol) passava (e passa) todos os dias pelo curso do céu (o corpo de Nut), e à noite iluminava os mortos. Osíris assegurava as colheitas, sem as quais o alimento dos vivos e as oferendas dos mortos desapareceriam. O próprio Egito, como país, tinha no elemento natural de suas fronteiras a encarnação de sua segurança militar.

O espaço vivido oferece uma segurança ao homem porque é per se palpável; esta segurança é oriunda da percepção do espaço e das garantias que existem em conhecer a natureza de onde se vive. Perceber o espaço é antes de tudo buscar segurança. A percepção do espaço desencadeia uma necessidade de ordenar e de representar o concreto em outro espaço – abstrato –, que se fazia concreto na medida em que passava a ser produzido e, como isso, vivido no post-mortem – as categorias espaciais, portanto, estavam em constantes transformações em ambos os espaços, dos vivos e dos mortos, variando conforme eram produzidas. Conhecer a natureza era fundamental no mundo dos vivos, bem como no universo dos mortos; neste segundo, a natureza do Nilo dá lugar, conforme documenta o Livro dos Mortos, à necessidade de conhecer espaços, nomes e fórmulas sem os quais o movimento se tornava impeditivo;

48 A análise dessas características será mais detalhadamente realizada no próximo capítulo deste texto. 49 Esta série de exigências morais faz parte das Confissões Negativas, uma sentença do Livro dos Mortos

exemplo disto é a recorrência existente de capítulos que visam assegurar que o morto possa entrar e sair livremente.

O universo dos mortos era uma concepção do mundo dos vivos que, por sua vez, era uma concepção dos deuses, por meio das cosmogonias, que se desencadeou na percepção e na vivência dos homens para eles próprios – os homens – no sentido de mensurar aquilo potencialmente transcendente. Conhece-se aquilo que se torna tangível; o Livro dos Mortos foi produzido, portanto, como uma cartografia para medir, ler e limitar aquilo que inicialmente era imensurável. O mundo dos mortos tinha medidas; não era um infinito50 do qual não se tinha mapeamento. Na medida em que o homem egípcio concebia o universo – limitado – ele estava na verdade tentando mundificar o imensurável a ponto de tornar possível sua leitura e, por consequência, as possibilidades de se perceber e de viver em um novo espaço, sempre com o firme propósito de garantir a eternidade.

O universo, solar e osiríaco, é o espaço dos deuses; é, portanto, maior que o mundo. O homem é mensurável; nunca os deuses – e com vias a garantir sua eternidade é que os homens buscavam também se tornarem deus, um Osíris, depois de mortos. O homem domina o mundo, mas à primeira vista é incapaz de dedilhar o universo. A única forma de fazê-lo era por meio da concepção – e uma concepção limitada – que fosse capaz de ser demonstrada por meio de um livro, de um mapa do outro mundo com extensões bem delimitadas. Este outro mundo, por sua vez, era outro Egito, um garante de que a vida no post-mortem seria tal como no Egito dos vivos, sem que com isso se perdesse nenhuma de suas características, especialmente a abundância. O espaço percebido é aquele que potencialmente oferece segurança; o vivido é aquele onde se produz a partir da segurança de um mundo concreto; o concebido é a mensuração daquilo que outrora era apenas do campo da imaginação. O espaço concebido expunha sua concretude na medida em que era mapeado e documentado pelo Livro dos Mortos.

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O Egito era, portanto, obra e coisa produzida.

O Egito era também uma dádiva do Nilo – e por isto era obra. Obra porque suas fronteiras naturais, os desertos e o mar, o fenômeno da cheia do Nilo – que possibilitava a agricultura e, com isto, a fixação das populações – bem como suas estruturas religiosa, política, militar e econômica – inseparáveis – não teriam sido tal como o foram sem o Nilo, tão fundamental que se mostrou necessário na medida em que foi transposto também ao universo dos mortos, por meio do Nun – oceano primordial de onde não surgiu somente a vida das espécies irracionais, mas as humanas que, do caos se colocaram dentro de um princípio ordenador por excelência (Maat).

O Egito era também coisa produzida; seus homens ao longo dos milênios se apropriaram daquela natureza, por meio da percepção e da vivência, e com isso conceberam um universo ordenado capaz de abraçar-lhes todos, como uma extensão do mundo conhecido. Por meio do trabalho, a natureza que outrora era apenas obra, passou a ser matéria-prima dos homens, no campo do trabalho e naquele das ações do pensamento, e foi sendo transformada em coisa, em algo próprio do homem por meio de sua produção.