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Segunda parte: ‹‹Sair à luz do dia›› (regeneração); triunfo e

5. PARTE I GUIA DOS VIVOS, ESPAÇO DOS MORTOS: O LIVRO PARA

5.2. Motivos recorrentes: um quadro metodológico

5.2.1. Classificação dos motivos recorrentes nos sessenta e cinco capítulos do

5.2.1.2. Segunda parte: ‹‹Sair à luz do dia›› (regeneração); triunfo e

Este conjunto de fórmulas “apresenta-nos a Regeneração do morto, ao amanhecer, na forma de um Sol triunfador” (LOPES, 1991, p. 41).

● Capítulo 17 (lâminas 7-10). “Início das transfigurações e glorificações, da saída e do regresso ao reino dos mortos; ser um bem-aventurado no Ocidente. Sair à luz do dia, fazer todas as transformações que se deseja, jogar senet sentado debaixo da tenda. Sair como alma viva, em nome de [Ani], depois da sua morte. Isto é proveitoso (mesmo) para aquele que o lê na terra”. Motivos recorrentes: movimento e oferenda.

Este capítulo é um dos maiores do Livro dos Mortos; o morto atua no sentido de conhecer e de reconhecer o mundo dos mortos, fazendo perguntas e pedindo proteção68, além de reconhecer sua regeneração do mundo dos mortos que, per se, aventa a ideia de movimento.

Eu era alguém que estava em boa situação sobre a terra, perto de Ré, e (agora) sou alguém que se aproximou de Osíris. (É por isso que) eu não serei para vós uma oferenda destinada às divindades dos braseiros, pois eu pertenço ao número dos seguidores do Senhor do Universo, segundo o Livro das Transformações [...].

● Capítulo 18 (lâminas 12-14). Este capítulo é dividido em duas partes, uma introdução e uma litania. Motivos recorrentes: movimento e oferenda.

Neste capítulo fundamentalmente o morto busca ser tal como Osíris, reivindicando ao deus Tot que o torne tão vitorioso quanto o foi o pai de Hórus. O morto deve reproduzir todos os caminhos de Osíris, da morte ao renascimento do deus no mundo dos mortos, como a única forma de se tornar também o próprio deus ou uma versão deste. A morte seria uma espécie de “Seth”, visto que este deus matou seu próprio irmão; o renascimento seria tal como “Ísis” que, magicamente, reuniu o corpo outrora destroçado do marido, concebendo a vida de Hórus.

67 Segunda parte: Capítulos 17, 18, 21, 22, 23, 24, 26, 27, 29, 30b, 42, 43, 44, 45 ,46, 50, 54, 58, 59 e 61

do Papiro de Ani – “2. Capítulos 17 a 63: ‹‹Sair à luz do dia›› (regeneração); triunfo e realização; impotência dos inimigos; poder sobre os elementos” (BARGUET, 1967, p. 15-16).

[Ani diz para Osíris:] Dá-me um lugar no reino dos mortos ao lado dos senhores da verdade; que eu tenha um campo estabelecido no Campo [das Oferendas], e que eu receba os pães perante ti.

[...]

[Rubrica:] Se se disser esta encantação em estado de pureza, esta (permite) sair à luz do dia, depois de se ter atracado (no reino dos mortos), e de se tomar a forma que se quer. [...] [Esta fórmula] é qualquer coisa de infinitamente eficaz.

● Capítulo 21 (lâmina 6). “Fórmula para dar a [Ani] a sua boca no reino dos mortos”. Motivo recorrente: movimento.

● Capítulo 22 (lâmina 6). “Fórmula para dar a [Ani] a sua boca no reino dos mortos”. Motivo recorrente: movimento.

Os capítulos 21 e 22 têm títulos iguais, mas o texto se modifica ligeiramente. No Capítulo 21, Ani requisita sua boca; no Capítulo 22, já está de posse dela. A boca é necessária para que Ani possa falar.

● Capítulo 23 (lâmina 15). “Fórmula para abrir a boca a [Ani] no reino dos mortos. Motivos recorrentes: movimento e oferenda.

Neste capítulo, a boca é aberta pelo deus Ptah e, representa também o garante de que a alimentação do morto chegará até ele.

● Capítulo 24 (lâmina 15). “Fórmula para levar a Osíris [Ani] a força mágica no reino dos mortos”. Motivo recorrente: movimento.

Neste capítulo, Ani busca se associar ao deus sol, tornando-se provido de “força mágica”.

● Capítulo 26 (lâmina 15). “Fórmula para devolver a [Ani] o seu coração no reino dos mortos”. Motivos recorrentes: movimento e oferenda.

● Capítulo 27 (lâmina 15). “Fórmula para impedir que se retire o coração a [Ani] no reino dos mortos”. Motivo recorrente: movimento.

Os capítulos 26 e 27 são uma demonstração da preocupação que o morto tinha com a lealdade de seu coração. No Capítulo 26, o morto diz:

Possa eu ter a minha boca, para falar e (possa eu ter) as minhas pernas para andar, e os meus braços para afastar os meus inimigos!

Fica claro que viver era, sobretudo, movimentar-se. A menção ao afastamento dos inimigos com os braços podia ser também uma manifestação das atitudes de adoração do morto, que constantemente se colocava com as mãos erguidas com o objetivo de realizar louvores.

● Capítulo 29 (lâmina 15). “Fórmula para impedir que o coração de [Ani] lhe seja retirado no reino dos mortos”. Motivo recorrente: movimento.

O coração era a sede da razão e da emoção. Interessa destacar que, neste capítulo, o morto é quem produz a ação de afastar os inimigos que almejam roubar seu coração.

● Capítulo 30b (lâminas 3-4 e nova recorrência na lâmina 15). “Fórmula para impedir que o coração de [Ani] se lhe oponha no reino dos mortos”. Motivo recorrente:

movimento.

Trata-se do mais famoso capítulo do Livro dos Mortos; o momento decisivo do julgamento do morto no Tribunal de Osíris, quando finalmente seu coração seria pesado em contraponto com a pluma da justiça de Maat.

Ó meu coração da minha mãe, ó meu coração da minha mãe, ó víscera do meu coração, da minha existência terrestre, não te levantes contra mim em testemunho, na presença destes senhores dos bens! Não digas a meu respeito: ‹‹Ele fez isto, na verdade!››, relativamente ao que eu fiz; não o faças exibir-se contra mim perante o grande deus, senhor do Ocidente.

Este capítulo é fulcral às pretensões de Ani, posto que a reprovação no Tribunal de Osíris representava a não-existência. O coração do morto, como sede da razão e da emoção, não poderia testemunhar contra seu dono, pois isto inviabilizaria a passagem dele aos domínios do senhor do Ocidente, Osíris.

● Capítulo 42 (lâmina 32). “(Fórmula para) evitar o massacre que se realizou em Heracleópolis, por N”69. Motivos recorrentes: movimento e oferenda.

Trata-se de um capítulo essencialmente de natureza preventiva, no qual Ani se preocupa em assemelhar-se aos deuses, fazendo com que suas características físicas sejam tais como àquelas dos deuses, pelo que se identifica, nas associações a Rê e a Osíris, os dois motivos recorrentes que estudamos.

● Capítulo 43 (lâmina 16). “Fórmula para impedir que a cabeça de [Ani] lhe seja cortada no reino dos mortos”. Motivos recorrentes: movimento e oferenda.

Aqui observamos uma dupla preocupação do morto, de cunho físico e simbólico: sua transformação ideal em um Osíris ocorre por meio dos verbos que se referem ao deus sol: reconstruir, rejuvenescer e revigorar são características do renascimento. O morto buscava se associar ao renascimento e ao tempo cíclico próprios de Rê. Também aqui se torna claro que Osíris é o ka de Rê que, por sua vez, é o seu ba.

Não retirarão a cabeça de Osíris, não me retirarão a minha cabeça. Eu estou reconstituído, eu estou rejuvenescido, eu estou revigorado; eu sou Osíris, senhor da eternidade.

● Capítulo 44 (lâmina 16). “Fórmula para não se morrer uma segunda vez no reino dos mortos”. Motivos recorrentes: movimento e oferenda.

Eu sou Ré que se protege a si próprio.

O morto desta vez busca ser tal como Rê. No Capítulo 43 é um Osíris e, neste, mesmo se associando ao olho de Hórus, representativo das oferendas, assegura que é o deus sol. Interessa destacar ainda que a importância deste capítulo, como o próprio título demonstra, diz respeito à negação da segunda morte, definitiva.

● Capítulo 45 (lâmina 32). “Fórmula para não se putrificar no reino dos mortos”. Motivo recorrente: movimento.

Este capítulo revela a importância da mumificação do corpo na medida em que a primeira múmia, de Osíris, é um representativo da própria conservação do corpo de Ani.

Aquele que estava inerte, estava inerte na qualidade de Osíris; aquele cujos membros estavam inertes era Osíris, (mas na realidade) eles não estavam inertes, eles não apodreceram, eles não putrificaram, eles não se liquidificaram. Que aconteça o mesmo comigo, pois eu sou Osíris!

O morto se preocupa em desqualificar a inércia de Osíris, posto que o movimento era a vida ao passo que o estático era uma característica da “não-existência”. Mais uma vez, o morto se identifica com Osíris; outra ideia que predomina é referente à magia, pois a não putrefação do corpo é uma alusão aos produtos usados na conservação dele, mas sobretudo à força do verbo presente na fórmula.

● Capítulo 46 (lâmina 16). “Fórmula para não perecer, para permanecer vivo no reino dos mortos”. Motivo recorrente: movimento.

[...] [Que eu] possa ir daqui e dacolá.

Capítulo que essencialmente faz referência ao movimento como sinônimo de renascimento.

● Capítulo 50 (lâmina 16). “Fórmula para não entrar na sala da matança do deus”. Motivo recorrente: movimento.

Neste capítulo percebemos algo destoante, enquanto em outros o morto visava garantir o movimento, neste ele se preocupa em não se movimentar para lugares perigosos, mas não o faz sozinho, pois conta com a ajuda dos deuses. Depois de associado a Osíris e a Rê, o morto desta vez se associa a Hórus, o filho de Osíris.

Um laço foi enlaçado à minha volta por Set, quando a enéade estava (ainda) no seu poder inicial e a desordem não se tinha (ainda) produzido; guardai-me (daqueles que massacraram o meu pai! Eu sou aquele que tomou posse do Duplo País).

As referências aos momentos da criação do mundo são recorrentes: a condição anterior ao mundo criado era a não-existência. O “Duplo País” é uma referência ao Alto

e ao Baixo Egito, ou seja, à centralização estatal que, pioneiramente, é um legado divino. Na medida em que o faraó é sempre um Hórus vivo, percebemos a associação do morto como o próprio Hórus. O morto ao longo do Livro, portanto, torna-se responsável pelas diversas realizações dos mais variados deuses.

● Capítulo 54 (lâmina 15). “Fórmula para dar a brisa a [Ani] no reino dos mortos”. Motivos recorrentes: movimento e oferenda.

O morto requer junto ao deus Atum, grande deus da cosmogonia de Heliópolis, que sua respiração seja garantida no mundo dos mortos.

Possa eu voltar a ser jovem e viver, e respirar a brisa!

Para que respire, o morto se mostra como provido de força, oriunda, portanto, do Ka, que era relativo ao alimento.

● Capítulo 58 (lâmina 16). “Fórmula para respirar a brisa e ter água à vontade no reino dos mortos”. Motivos recorrentes: movimento e oferenda.

O próprio título faz referência à água como um produto essencial na provisão do morto; interessa ainda realçar que a fórmula número 58 é no nosso entendimento uma referência à respiração, ao passo que no Capítulo 59 se refere à aspiração.

Aquele que conhece esta fórmula pode entrar, depois de ter saído, no reino dos mortos, do bom Ocidente.

A rubrica desta fórmula, disposta acima, revela a importância da mesma no tocante à movimentação do morto. As oferendas, por sua vez, são requeridas pelo morto da seguinte maneira:

Sepulta-me no lago, para que me ofertais leites, bolos, pão e uma porção de carne do Castelo de Anúbis [ou Mansão de Anúbis, conforme tradução de Raymond Faulkner].

● Capítulo 59 (lâmina 16). “Fórmula para viver a brisa e ter água com fartura no reino dos mortos”. Motivo recorrente: movimento.

Como dissemos, este capítulo em nosso entendimento é uma referência à aspiração. Mais uma vez, o morto busca se assemelhar aos deuses e às mais diversas cosmogonias, neste caso, faz referência ao “Grande Grasnador”, da cosmogonia hermopolitana, quando se acreditava que a vida havia surgido de um ovo.

● Capítulo 61 (lâmina 15). “Fórmula para impedir que se retire a um homem a sua alma no reino dos mortos”. Motivos recorrentes: movimento e oferenda.

Sou eu, eu sou aquele que sai com a inundação, aquele a quem foi atribuída a inundação a fim de que possa regulá-la enquanto Nilo.

O morto faz referência ao movimento do Nilo, à inundação deste, mas sobremaneira à fertilidade que dali se retirava para garantir a existência dos vivos.

5.2.1.3. Terceira parte: ‹‹Sair à luz do dia›› (transfiguração); poder