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CAPÍTULO 3. AS DIFERENÇAS NA DIFERENÇA: RECORTES DE

3.2 Nas noites com sapas, drags e travas: uma análise de gênero e visibilidade

3.2.1 Tem pouca sapa na noite?

104 Essas categorias de transgêneros estariam no contexto de cross-dressing “male to female” (masculino para feminino), ou seja, em um movimento que partiria do suposto “sexo” masculino, para vestimentas e corporalidades femininas.

105 Afirmação presente nos trabalhos de Perucchi (2001); Vencato (2002); Silva (2003); Córdova, (2006). 106 Gaspar (1985).

107 O termo sapa também era utilizado de maneira cômica principalmente entre as lésbicas mais jovens fazendo uma relação com a semelhança com a palavra que dá nome ao animal, o sapo. Desta forma era comum em reuniões de garotas e mulheres o uso carinhoso da expressão brejo (um dos habitat do sapo) como relativo às festas e locais de concentração de mulheres que faziam parte da cena GLS.

Com exceção de uma festa voltada às mulheres que ocorre uma vez ao mês na Perspective, em todas as outras festas nas casas noturnas as mulheres estavam sempre em uma incontestável minoria. Em alguns casos durante minhas saídas a campo elas estavam praticamente “invisíveis” em termos numéricos.

A pesquisa de Vencato (2002) também demonstra que:

“basta entrar numa ‘casa gay’ para perceber que o gueto ilhéu recebe uma freqüência maciça de homens, sendo que as mulheres ali se encontram em quantidade muito inferior, chegando a estar em número que nem mesmo chega a ser representativo em boa parte das festas (é importante dizer que a capital não contava com um espaço de sociabilidade específico nem para homens, nem para mulheres gays na época da minha pesquisa)”. Ainda atualmente não há um bar ou boate voltado especificamente às lésbicas, entretanto em meu período de campo ocorriam festas praticamente exclusivas delas (Vencato, 2002: 107).

Segundo relatos de algumas mulheres em meu campo, houve no centro da cidade, há cerca de quatro anos a experiência de um barzinho administrado por uma mulher, com música ao vivo e voltado às mulheres da cena GLS. Teria durado menos de um ano e seu fechamento teria a ver, segundo os relatos, não ao número de freqüentadoras, pois em quase todas as festas permanecia com uma quantidade satisfatória de clientes, mas, entre outras questões, a problemas devido à “perseguição policial”108. A dona ainda tentaria abrir outro bar em uma cidade no continente, mas aparentemente a iniciativa não teve sucesso.

Além do caráter minoritário, nas últimas décadas nem sempre as mulheres foram bem recebidas nas festas cujo público majoritário era os homens. Córdova (2006) traz o relato dos acontecimentos na boate Oppium, aberta nos anos 1980 na área da escadaria do Rosário, no centro da cidade. O dono da boate, segundo relatos trazidos pelo autor, não gostava da presença das “lésbicas” e as tratava de maneira discriminatória109.

No período de minha pesquisa pude perceber que os donos, gerentes e promoters dos bares e boates (os mesmos que tendiam a propagar o já citado discurso igualitário acerca dos

108 A questão da perseguição policial aos estabelecimentos foi algo relatado por quase todos os promoters ou gerentes com os quais conversei. Estes tendiam a confirmar a existência de uma política constante de extorsão por parte dos oficiais de polícias para que não houvesse batidas policiais e fechamentos arbitrários de casas noturnas, o que tenderia a assustar e afastar os clientes dos estabelecimentos, etc. Os “pagamentos”, segundo os relatos, variavam de “dinheiro vivo” a produtos oferecidos pelas casas, desde alimentos a garrafas de bebidas caras.

109 Uma das entrevistadas de Córdova (2006), Leila (44 anos) cita que: “[o dono da boate] tinha muito preconceito contra as mulheres. (...) a gente sofreu um tipo de preconceito e brigas. Muitas mulheres deixaram de freqüentar. Ele era gay, mas era um empresário da noite, um cara muito dinheirista eu acho, ele só queria tirar o dele. (...) era uma pessoa que realmente não gostava, na época, que as mulheres freqüentassem as casas dele. Por qualquer coisa ele botava pra fora, uma discussão, uma coisa... Inclusive, ele, às vezes, cobrava mais caro para as mulheres, para desestimular elas de irem à boate” (Córdova, 2006: 184).

freqüentadores da cena GLS) eram praticamente todos homens, sendo que grande parte se reivindicava gay. Dentre os promoters os quais tive maior proximidade, apenas um era mulher, sendo exatamente aquela que organizava a popular festa mensal para mulheres, e que lotava os ambientes da Perspective. É interessante notar que assim como nos anos 1980 o dono da Oppium chegou a “sobretaxar” as mulheres, tentando desencorajá-las a entrar (Córdova, 2006), nessa festa mensal para as lésbicas ocorria coisa semelhante, entretanto, dessa vez os “sobretaxados” eram os homens. Enquanto elas pagavam R$15,00 em média, eles pagavam R$25,00.

Entrevistando os funcionários, especialmente gerentes, barmen e seguranças das casas noturnas (a esmagadora maioria homens) estes me diziam que aquelas que eram “mais encrenqueiras”, que davam “mais trabalho”, e eram mais “briguentas” não eram “as bichas”, mas sim “as sapas”. Essas vozes acusatórias, é necessário frisar, eram vozes de homens. Eu especialmente não percebi mudanças significativas em termos de conflitos e brigas nas festas para lésbicas em relação às festas para gays. Essas acusações recorrentes nos bares e boates (e quase sempre provindas de homens) me fizeram perceber algumas das representações sociais acerca das lésbicas advindas desses pontos de vista masculinos. Para parte dos sujeitos ligados à indústria do entretenimento GLS, essas mulheres tendiam a ser vistas, em termos gerais, como agressivas, grosseiras, mal educadas, descontroladas, intempestivas, provocadoras, ciumentas, bagaceiras110, pessoas sempre propensas a agredir fisicamente a outrem, etc. Essa carga acusatória tendia a diminuir conforme “o grau” de feminilidade performatizado pelo indivíduo. Quanto mais feminina a mulher aparentasse, menos se tendia a associá-la às acusações anteriormente citadas, sendo que ocorria a correlação inversamente proporcional: quanto mais masculina, maior era a tendência de associá-la a toda a carga negativa e acusatória citada.

Essa representação social de caráter negativo em relação às lésbicas também é reflexo do fato da maior parte das festas ser pensada, programada e desenvolvida para agradar à tradição de público majoritário das casas: os homens. E a presença grande numericamente de mulheres tende a causar reclamações dos homens interessados em se socializar centralmente com outros homens (questão reforçada e algumas vezes justificada pela propagação dessas

110 Uma das justificativas para estarem associadas à categoria bagaceirice, (além daquelas que eram mais velhas, mais gordas ou mais masculinizadas, as quais já tendiam a ser associadas), era o fato do gosto musical dessas mulheres para o som tocado nas festas. Uma relevante parcela gostava de escutar “pagode”, “axé” e “MPB”, estilos de música considerados por parte dos freqüentadores como “de mau gosto” e muito destoantes dos sons que dominavam as pistas das festas gays (house music e suas variantes). Córdova (2006), abordando espaços específicos voltados para mulheres na boate Chandon, no centro de Florianópolis nos anos 1990 afirma que: “As mulheres ficavam mais onde o ‘som’ era mais nacional, com muito axé e pagode; os homens preferiam o Techno” (Córdova, 2006:196).

representações sociais negativas em relação às lésbicas). Cheguei a ouvir de um promoter que uma “festa lotada, mas com mulheres demais é sinal de festa ruim, as pessoas [leia-se, os homens] vão reclamar e falar mal”.

De certa forma é conveniente para a estrutura organizativa dessas festas, que o número de mulheres permaneça relativamente controlado, não ultrapassando os seus 30%, como média aparente no conjunto dos freqüentadores. Considerando esses fatores, interpreto essa “invisibilidade” relativa das lésbicas nesses contextos não necessariamente como um fenômeno comportamental espontâneo das mulheres, (como se fossem menos propensas ou interessadas nas sociabilidades em bares e boates GLS)111 mas em grande parte como um fenômeno entre outros fatores, fruto de um projeto político (consciente ou não) dessas figuras ligadas à indústria do entretenimento citada, que opta claramente por priorizar a satisfação dos interesses de uma parcela desses freqüentadores: os gays112.

Esse projeto político se materializa de múltiplas maneiras, a começar pela própria idealização das festas, a maneira como se pensa a propaganda com os materiais de divulgação (os quais, como se verá na análise dos flyers, mais adiante, priorizam a representação imagética de homens, brancos, musculosos e jovens e mantêm mulheres representadas apenas nas parcas festas voltadas a elas, ou seja, minoritariamente), assim como os estilos musicais escolhidos para tocar nas festas (optando pela house music e suas variantes - as sonoridades mais presentes nas festas gays - e ignorando a MPB, o “pagode” e o “axé”, estilos que agradam grande parte das mulheres), assim como, por fim, o tratamento seco e sem deferências dado às mulheres em especial quando estas se encontram em número “ameaçadoramente” expressivo em festas voltadas aos homens.

Como conseqüência desse quadro, as mulheres interessadas em encontrar outras mulheres para fins erótico-afetivos acabam muitas vezes freqüentando esses locais por falta de alternativas em relação a bares e boates - o que não quer dizer que não possuam alternativas de sociabilidades, uma vez que aparentemente tendem a ter programas coletivos até mais variados do que os gays: campeonatos de futebol, encontros em locais “não GLS” como barzinhos tradicionais da cidade, e em bailões nas periferias, como pesquisado por Godoy, (2001), etc.

111 Um promoter quando perguntei os motivos das mulheres serem minoritárias, me respondeu dizendo que achava que era uma característica das mulheres permanecerem em ambientes mais pessoais (privados), e por isso serem menos interessadas que os homens em sair em bares e boates. Desta forma, seu discurso reproduzia as relações de assimetria sexual discutidas classicamente pelo feminismo como a distinção: esfera pública/masculina versus esfera privada/feminina, discutida entre muitas outras autoras, por Rosaldo (1995). 112 Embora, como Vencato (2002:107), eu também não tenha encontrado festas ou casas noturnas exclusivamente para homens ou para mulheres, não seria espantoso frente ao quadro descrito, se nos próximos anos surgissem experiências proibitivas para uns ou outros.

Sendo assim, a intenção desta discussão foi relativizar (e apontar algumas possíveis interpretações sobre) a “invisibilidade” das lésbicas nas casas noturnas pesquisadas, segundo a visão de um projeto político local que opta pela satisfação de uma parcela desses freqüentadores. Outra questão explicitada diz respeito às representações sociais negativas referentes a essas mesmas mulheres (condicionadas à percepção de suas performances de feminilidade) emanadas principalmente dos discursos de alguns homens ligados às casas noturnas. Essas representações, em alguns casos servem para reforçar/justificar o citado projeto político, assim como a lógica das configurações hierárquicas locais (a qual tende a manter os gays em pontos mais valorizados e com maiores benefícios e possibilidades que os disponibilizados às lésbicas).

A seguir entro na discussão sobre distintas categorias de transgêneros: as drag queens as travestis, e os critérios sociais locais que diferiam e hierarquizavam as duas categorias, segundo o olhar de algumas drags pesquisadas, e através da análise de um caso específico. Discuto também as lidas e os jogos locais entre tais categorias acerca da economia do estigma.

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