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CAPÍTULO 3. AS DIFERENÇAS NA DIFERENÇA: RECORTES DE

3.1 Gay tem prazo de validade, sabia? Geração, corporalidades e discriminação

3.1.5 Sapinhas, bibinhas e tias

Outra experiência percebida em campo foi a relação desses jovens com alguns daqueles indivíduos que também vivenciam experiências erótico-afetivas com pessoas do mesmo sexo, mas que têm bem mais idade que elas. Essas relações foram percebidas em vários momentos na convivência com sapinhas e bibinhas, a começar pela minha inserção em campo, uma vez que àquela época estava com 25 anos de idade e já me diferia socialmente dos sujeitos estudados, seja por já não ser adolescente, seja pelo vestuário, pelo comportamento menos “brincalhão” e “solto”, enfim. Foi necessária uma grande adequação de minha parte à dinâmica do grupo para poder fazer parte, integrar-me, na procura por estabelecer um “encontro etnográfico”, seguindo os conselhos de Roberto Cardoso de Oliveira (2000).

Após muitas idas à campo, passadas várias semanas de convivência, pude perceber, em uma tarde em que estávamos todos nas mesas em frente ao Sahara, um exemplo do trato que principalmente os gays jovens manifestavam em relação às tias. Estávamos todos conversando e rindo, quando um homem de cerca de cinqüenta anos de idade se aproximou e acabou por sentar em nossa mesa (onde estávamos eu e mais cinco pessoas: quatro garotos e uma garota) sem nos pedir permissão. Eu nunca o vira, mas pelas reações dos meus acompanhantes ele já era bem conhecido e também um elemento claramente indesejado.

João era um homem de aproximadamente 1,75m de altura, calvo da testa à nuca, tendo cabelos apenas sobre as orelhas. Era magro, mas tinha uma “barriguinha”, usava óculos de

98 Como se verá na análise de gênero, a qual ocorre na segunda parte desse capítulo, apesar de existirem festas mais voltadas aos homens, e outras mais voltadas às mulheres, não era incomum essa convivência fraterna entre homens e mulheres com práticas homoeróticas nos âmbitos dos bares e boates GLS.

armação antiquada, uma camiseta xadrez e calça jeans velha. Mais tarde, o grupo que estava comigo comentaria que “para piorar”, além de ser uma tia, João era também bicha pobre (categoria analisada mais adiante, na discussão de classe), o que combinaria a interseção de características desvalorizadoras para as pessoas ligadas à cena GLS na cidade: idade mais avançada e baixo status sócio-econômico.

Todos faziam questão de demonstrar explicitamente que o achavam feio e que sua presença era inconveniente. Durante alguns minutos todos na mesa o ignoraram solenemente, mesmo tendo ele tentado “puxar papo”. Como queria ver qual era o comportamento usual do grupo, não interferi. Em vários momentos João procurava “apimentar” nossa conversa, falando algumas obscenidades e fazendo perguntas que eram deixadas constrangedoramente sem resposta, até que Alexandre99, um garoto que se tornou um dos meus “informantes privilegiados” irrompeu:

- Tá, tia! Tá! A tia tá atacada, hoje. Tá querendo chamar atenção!? Vai lá pro banheirão100 que a tia encontra uma neca101, vai!

Eu fiquei chocado com a agressividade da reação de Alexandre, mas procurei disfarçar para observar o que o restante das pessoas faria. O próprio João não pareceu nada chocado e ainda riu como quem está acostumado com o tratamento. Tia, como ouviria ainda diversas vezes, era um termo local que denominava homens mais velhos com práticas homoeróticas (vistos geralmente como não atraentes, às vezes como repulsivos), e que em alguns casos tentavam ter encontros erótico-sexuais com os gays mais jovens, não raro lhes propondo algum tipo de pagamento. Tia é também utilizado contextualmente para depreciar homens não tão velhos, mas que também se aproximam ou se interessam pelas bibinhas, e pelos quais, por diversas razões, elas não têm interesse.

Alexandre me diria alguns momentos mais tarde, que João costumava pegar102 sempre alguém no banheiro do Sahara. Ouvi diversas histórias sobre encontros erótico-sexuais naquele banheiro, sendo que aqueles que costumam fazer pegação ali e em outros banheiros de uso público, são chamados de bichas banheirudas ou então de piranhas do banheiro, termos que tendem a denotar uma posição hierárquica mais baixa, moralmente mal vista. Passados alguns minutos, João acabou sendo tolerado, mesmo que ainda muitas vezes

99 Alexandre tinha 18 anos de idade, embora parecesse mais jovem. Estudava no segundo ano do ensino médio e morava na Barra da Lagoa (bairro distante cerca de 40 minutos do centro da cidade, para quem vem de ônibus e em dia sem engarrafamento).

100 O termo banheirão é utilizado para designar relações sexuais entre homens e que se estabelecem em banheiros públicos e de estabelecimentos comerciais de grande circulação.

101 Neca significa pênis. 102 Sinônimo de fazer sexo.

ignorado em suas perguntas e comentários. Eu o encontraria perambulando pelos espaços pesquisados em várias outras ocasiões, e a impressão que sua visão me dava era a de um espectro, um fantasma que passava pelos jovens tentando fazer contato e sendo ostensivamente ignorado por quase todos.

Certa vez, ao perguntar a Alexandre se ele já cogitara ficar com algum homem mais velho, ele me respondeu dizendo que não suportava a aproximação “dessas bichas velhas”:

“[as tias] não se enxergam, pelo amor de Deus, né!? Porque é que eu ficaria com uma criatura dessas? Se não se cuidou quando era novo e ficou esse ‘bagaço’ aí, eu é que não tenho culpa! Não sou a madre Tereza pra ficar fazendo caridade! Ah, não sou não. (...) E tem gente que faz, né... Mas faz por dinheiro, eu conheço várias que fazem. Eu nunca faria! Nunca!”. Alexandre, 18 anos. Estudante. Transcrição de Entrevista Gravada.

Essa fala ilustra algo que esteve bastante constante em meu campo: há uma clara e expressiva discriminação para com sujeitos mais velhos que mantém relações erótico-afetivas com pessoas do mesmo sexo, não apenas nesse contexto do Sahara, mas também em todo o conjunto mais amplo da cena GLS na cidade, como também constatou Córdova (2006). Andrei, um de meus entrevistados, em uma das boates afirmou: “Gay tem prazo de validade,

sabia? O meu já expirou!”. Estava com cerca de 40 anos e afirmava já não ter muita vontade de sair para bares e boates GLS, pois “há muito preconceito com quem é mais velho”. Algo importante a se pontuar é que essa lógica de discriminação geracional, entretanto, foi percebida nos relatos de campo com mais expressividade entre homens do que entre mulheres.

As representações sociais, em termos gerais, dos freqüentadores mais jovens (tanto da região do Sahara quanto dos bares e boates GLS da cidade) sobre as tias denotam que esses homens mais velhos seriam: infelizes, solitários, decadentes, frustrados, fora de forma, indesejados, inconvenientes, desagradáveis, sendo que a própria presença deles nesses espaços de sociabilidade seria sinal de uma falta de percepção “do seu lugar” na ordem social da cena GLS (o qual estaria mais ligado a ambientes privados, como se o lugar dos gays mais velhos fosse dentro de casa e não convivendo com jovens em bares e boates).

A visão das pessoas mais velhas como intimistas, com menor propensão a sair para festas, a paquerar, com libido controlada e rasa, porém, extrapola o universo pesquisado, uma vez que a sociedade brasileira tende a retratar dessa maneira, grosso modo, as pessoas mais velhas ou idosas. Uma diferença encontrada nos contextos de pesquisa era uma austeridade e

rigor talvez mais acentuados do que na sociedade em geral na separação entre aqueles que são “jovens” e aqueles que deixam de ser “jovens”, e talvez até certa precocidade na eleição daqueles que já não são “jovens”. Segundo conversas que estabeleci em campo o período áureo para os homens nesse contexto parece ser relativamente estreito: da adolescência até antes dos 30 anos de idade.

Concomitante a essas representações sobre os gays mais velhos, se estabelecem também algumas representações principalmente sobre os gays mais jovens, as quais tendem a dar uma noção quase frenética de urgência de experiências, como se o campo de possibilidades de vivências erótico-afetivas estivesse restrito apenas a um determinado gradiente geracional, frente ao qual, uma vez extrapolado o pólo máximo, se estaria compulsoriamente excluído. Esta urgência não deixa de causar certa angústia também nos jovens, uma vez que cheguei a encontrar, por exemplo, homens por volta dos 30 anos de idade que já se sentiam desconfortáveis com as exigências de rostos e corpos viçosos.

Como citado no segundo capítulo, na análise do bar Hypefull, há margem de manobra para lidar com o fato de já não ser “jovem”, uma vez que homens mais velhos, com pele e cabelos bem cuidados (alguns utilizando técnicas de cirurgia plástica), que freqüentam academias de ginástica, usam roupas “antenadas” com as últimas tendências da moda (e especialmente se aliado a esses fatores possuam alto poder aquisitivo) tendem a ser excluídos da categoria tias e inclusos na categoria tiozão.

Segundo os relatos de sete entrevistados no trabalho de Córdova (2006:200) os bares e boates GLS seriam espaços indubitavelmente mais freqüentados por jovens. A maior parte desses entrevistados (de 44 a 71 anos) afirma preferir festinhas nas casas de amigos a sair em bares ou boates. Alguns relatam uma maior resistência à exposição pública da orientação sexual (talvez uma característica de gerações mais velhas), outros, como Maria (48 anos), na juventude desqualificavam traços associados aos “velhos” e hoje sentem essa desqualificação se voltar contra eles:

“Antes eu me considerava a rainha do gueto, mas hoje em dia eu não gosto [de ir à bares e boates GLS], me sinto velha, me sinto super mal, não me sinto legal. [...] Acho que por causa da diferença de idade. Aquilo que nós víamos nas outras pessoas mais velhas, na nossa época, eu acho que as pessoas estão achando a mesma coisa de mim, então, não gosto disso” (Córdova, 2006:200).

Córdova (2006:201) afirma parecer “ser um consenso que estas pessoas [mais velhas] preferem se reunir em casa dos amigos”. Tal fato talvez seja dialeticamente produto e

produtor das visões afirmadas anteriormente de que gays mais velhos deveriam permanecer em ambientes privados. E que algumas das justificativas dadas pelos pesquisados:

“estão baseadas em outros valores que, todavia remetem à idéia de que um dia suas vidas foram diferentes, possivelmente se referiam ao tempo em que eles também foram jovens. Atualmente, a casa de cada um ou a dos amigos, apareceu como um porto seguro, protegido, festivo” (Córdova, 2006:201).

A desqualificação social das diferenças, uma das questões centrais de minha dissertação, a qual costuma ser vista na cena GLS como referida apenas na visão dos “heterossexuais” discriminando os “homossexuais” (obliterando-se as próprias desqualificações sociais que se impõem dentro da cena GLS) é também trabalhada por Córdova (2006):

“Esta lógica [da desqualificação social da diferença] que vem perdurando há bastante tempo, (...) e que faz com que muitos homossexuais se sintam discriminados pelos heterossexuais e não percebam que também eles discriminam o seu diferente, os gueis às lésbicas, os de mais idade, os menos favorecidos social e economicamente, entre outros” (Córdova, 2006: 197).

Não apenas no Sahara, no pátio do museu e na escadaria é possível perceber traços dessa discriminação geracional: a descrição dos espaços sociais de bares e boates GLS no segundo capítulo demonstra que em grande parte desses contextos, pessoas mais velhas tendem a permanecer nos espaços com menor visibilidade social, assim como nos pontos menos valorizados. Elas também tendem a ser ignoradas ou a não ser alvo de olhares desejosos.

Essa desqualificação social quase absoluta de atributos de “velhice” não é um fenômeno que se estabelece apenas na noite GLS, se trata de uma característica que extravasa esse contexto e engloba não apenas a sociedade brasileira, mas grande parte das sociedades ocidentais; e uma vez que os espaços pesquisados têm porosidade social, não se tratando de caixas herméticas, há um intenso reflexo (embora com características próprias locais) de configurações valorativas e hierárquicas da sociedade em geral, quanto à idade, a classe social, à cor da pele, às relações de gênero, à corporalidade, etc.

Nessa discussão, por fim, procurei apresentar basicamente a importância dos espaços públicos e semi-públicos pesquisados para a o estabelecimento do aprendizado social no contexto das sociabilidades de gays e lésbicas mais jovens, assim como os traços de discriminação geracional que são imputados a pessoas que mantêm práticas homoeróticas e são mais velhas, em especial no caso dos homens, que aparentemente sofrem mais que as

mulheres com essa desvalorização no mercado erótico, e como esse processo de discriminação reflete e reforça a lógica das configurações hierárquicas vigentes na cena GLS.

Uma questão premente que pode ser discutida após essa discriminação geracional ser vislumbrada é a inclusão mais efetiva, no âmbito do quadro programático do movimento LGBTTT103, da questão geracional, haja vista ainda ser bastante vilipendiada no âmbito político e trazer sofrimento assim como conseqüências limitadoras às subjetividades de um grande número de pessoas com práticas homoeróticas. Facilitaria esse processo o questionamento da superlativização absoluta de atributos da “juventude” como os únicos para os quais seria digno se cantar versos, fazendo uma referência ao poema que abriu este capítulo de minha dissertação.

A seguir, prosseguindo nos recortes de marcadores sociais que refletem as configurações hierárquicas locais, parto para uma análise de gênero considerando a relativa invisibilidade e o caráter minoritário das lésbicas no contexto das festas em bares e boates GLS do centro da cidade. Analiso também as relações entre distintas categorias de

transgêneros, no caso, a interpretação local dos critérios que diferem drag queens de

travestis, segundo o discurso de algumas drags locais e a partir do relato do caso de Britney Pop, a qual se considera drag queen e é considerada socialmente como travesti.

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