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Povoamento e poder local em Itapipoca no período colonial.

2. A CÂMARA MUNICIPAL DE ITAPIPOCA: PERSPECTIVA SÓCIO HISTÓRICA

2.1 Povoamento e poder local em Itapipoca no período colonial.

Figura 2.1- Mapa do Ceará 1800.

Mapa do Ceará de Gregório Amaral, 1800

Detalhe à direita: sítio São José e sua paróquia, na Serra de Uruburetama.

O mapa acima é de autoria de Mariano Gregório Amaral, elaborado a pedido do Governador da Capitania do Ceará, em 1800. A Província do Ceará havia se tornado autônoma de Pernambuco um ano antes, em 1799. O povoamento da capitania se desenvolveu principalmente no século XVIII, motivado pelas correntes migratórias que

vinham da Bahia e de Pernambuco. A economia da capitania, que até então se limitava a pequenos e isolados núcleos de subsistência, passou a se expandir com a comercialização, primeiro, do gado verde, e depois, do charque, para outras províncias (GIRÃO, 1984). Conforme Valdelice Carneiro Girão,

A instalação das charqueadas propiciou transformações econômicas, sociais e políticas de grande importância para a Capitania. As charqueadas marcaram o encontro do homem do litoral com seu irmão sertanejo; contribuíram com o primeiro impulso monetário para desenvolver as fazendas de gado com as divisas de sua própria indústria possibilitaram o surgimento de núcleos urbanos e inicio de um mercado interno, tornaram efetivo um comércio marítimo com os centros consumidores mais desenvolvidos da Colônia, abrindo com eles também as importações; além de tornarem mais afetivos os laços administrativos entre as duas zonas: sertão e litoral.

(GIRÃO, 1984, p.130)

A comercialização da carne-seca foi a principal atividade econômica da província até o último decênio do século XVIII, quando a necessidade dos mercados internacionais pelo algodão, a entrada do Rio Grande do Sul na competição pelo fornecimento de charque e as estiagens de 1777-1778 e 1790-1793 extinguiram o ciclo do charque no Ceará.

Rompido o exclusivismo pastoril, a economia do Ceará se voltou para a agricultura de exportação, com foco na produção de algodão. Consequentemente, “[...] aumentou [na capitania] a necessidade de uma comercialização direta com Portugal, intensificando-se as solicitações neste sentido pelas autoridades representativas da Capitania à Coroa” (GIRÃO, 1984. p. 133). A importação de mão de obra escrava também se intensificou, motivada pelo cultivo do algodão no sistema de plantation (CALHOUB, 2012).

“A desvinculação político-administrativa de Pernambuco [...] possibilitou um comércio direto com a Metrópole, criando um mecanismo independente de administração financeira” (GIRÃO, 1984. p.134). Concentrada em Fortaleza, a Junta da Fazenda permitiu à Província suprir as necessidades de matérias primas de Portugal e, após 1808, de outras nações do globo, inserindo-se diretamente no mercado internacional. Durante todo o período colonial, foram as Câmaras Municipais que detiveram a autonomia política para a representação junto à Metrópole. Primeiras instituições propriamente nacionais, as Câmaras Municipais foram em todo o país os únicos centros políticos e econômicos brasileiros.

No detalhe do mapa acima (Figura 2.1), pode-se ver a localização do Sítio São José, encravado na serra da Uruburetama. Acredita-se que é na formação do Sítio São José que encontramos os primeiros vestígios da ocupação portuguesa na região do município que hoje conhecemos como Itapipoca. O estuário do Rio Mundaú hoje corresponde aos distritos de Baleia e Marinheiros, distantes aproximadamente 10 km da atual sede do município. Sua barra é considerada um porto natural cuja localização já constava nas cartas náuticas de franceses, holandeses, portugueses e ingleses do século XVI que o usavam para escambo de matéria prima (MACIEL, 1997). O Sítio São José situava-se em cima da serra, onde hoje se localiza o distrito de Arapari (também chamado de Vila Velha).

Pesquisas indicam que o Sítio São José foi fundado por volta de 1744, quando a primeira sesmaria foi oficialmente doada na região. Soares Bulcão (BULCÃO,1935) registra como patriarcas das primeiras famílias portuguesas na região Jeronymo de Freitas, Francisco Pinheiro do Lago (dono da primeira sesmaria) e Tomé de Pires Queiroz. No final do século, outros portugueses fixaram residência na povoação de São José, são eles: Miguel Antonio da Rocha Lima, José de Agrela Jardim, Francisco Moreira de Sousa, Domingos Rodrigues Chaves, Antonio Manoel Alves, Gregório Pires Chaves, João de Agrela Jardim, Antonio José dos Santos, Antonio Barroso de Sousa, Manoel de Oliveira Dias, Luiz Antonio Alves Cordeiro e Francisco Barroso de Sousa Cordeiro.

Esses sobrenomes irão estabelecer os núcleos familiares “tradicionais” em torno dos quais os mais proeminentes políticos locais irão referenciar-se no futuro, como uma de suas “marcas” de distinção. Muitas gerações e troncos destas “respeitáveis” famílias vão dar aos seus filhos nomes iguais ou semelhantes ao dos primeiros habitantes oficiais do território, evocando o mito da fundação.39

Em abril de 1744, já consagrado como sargento-mor, o português Francisco Pinheiro do Lago requereu ao capitão-mor João de Teive Barreto Meneses, Governador da Capitania do Ceará, a posse oficial de uma sesmaria em seu nome, onde já exercia

39 O mito da fundação é um símbolo evocado no discurso político como marca de distinção e prestígio. Por um lado, é uma construção fictícia no qual a sinalização “minha família descende dos fundadores” equivale a dizer se é membro de um grupo de prestígio, mostrando-se distinto e confiável. Por outro lado, se é possível verificar, empiricamente, uma continuidade de poder muito acentuado em torno de um mesmo grupo familiar coeso, ao longo de um período extenso de tempo, seria a sinalização de uma tendência à concentração de poder e à monopolização dos recursos em torno por esse grupo.

atividades agropecuárias. A sesmaria, de três léguas de terra, situava-se na serra e foi dividida em dois sítios: Sítio São José e Sítio Santo Amaro. Em torno destas duas localidades, o povoado desenvolveu-se, atraindo forasteiros e outros membros das famílias assentadas.

Em 1772, Jeronymo de Freitas construiu uma capela próxima ao povoado de São José, onde a partir de então se instalou a Freguesia de Nossa Senhora das Mercês. A Capela foi inaugurada em 1777, quando o então vigário da Freguesia de Amontada realizou o primeiro batismo. O primeiro padre da Freguesia de Nossa Senhora das Mercês foi Francisco José Rodrigues Pereira. Em 1800, a freguesia é transferida para o povoado de São Bento de Amontada, fixando sede numa capela construída pelo fazendeiro Manuel Gomes do Nascimento, permanecendo nessa localidade até 1846.

Durante o século XVIII, a povoação cresceu rapidamente. A economia - baseada no cultivo e na comercialização de produtos agrícolas como a mandioca, o feijão, o milho e o algodão - impulsionou o crescimento do município. O crescimento da produção de sal na Barra do Mundaú (MACIEL, 1997) sugere ainda um crescimento da indústria do charque na região, principal destinação da produção de sal. No período vai de 1795 até 1824, o município gozou de ascensão econômica, tornando-se o principal núcleo de cultivo do algodão da Província (POMPEU SOBRINHO, 1873). Produzia também açúcar, gado e cereais. Contudo, sucessivas secas impuseram restrições a esse período de prosperidade. Em 1824, acometido pela seca e pelas epidemias de varíola e febre amarela, o prejuízo das safras dos agricultores em Itapipoca foi de mais de 50% (MACIEL, p.100).

No período que vai de sua fundação em 1720 até 1773, o povoado, incluído na categoria de termo, pertencia à Fortaleza como parte de sua jurisdição. Em dezembro de 1773, passou a pertencer a Sobral até sua emancipação em 1823, um ano após a Independência do Brasil.

A Resolução Imperial de 17 de outubro de 1823 (ANEXO 1), elevou a povoação de São José à categoria de vila. A distância de 30 léguas que tinha de ser transposta para o acesso aos serviços da administração pública,

lhes occasionava [aos moradores] gravissimos incommodos, assim nas suas dependencias civis, como criminaes, de que resultava tambem o detrimento do bem publico, pela dificuldade de se punirem os delictos com a promptidão que convem, e de se executarem igualmente muitas, e importantissimas

diligencias do serviço nacional; ao mesmo tempo que, sendo a sobredita serra de uma povoação numerosa, o vantajoso commercio, ella se augmentaria cada vez mais pelos progressos da agricultura consideravelmente adiantada, uma vez que se lhe abrisse, e facilitasse o caminho da sua prosperidade, erigindo-se na referida povoação de S. José uma villa na fôrma que supplicavam, em a qual os povos com a creação das respectivas justiças achassem o amparo e recursos das leis, sem se verem obrigados a ir demandal-os a tão grande distancia, desamparando para este fim as suas casas e lavouras. (RESOLUÇÃO IMPERIAL DE 17 DE OUTUBRO DE 1823) Os incômodos, possivelmente eram mais de ordem civil que propriamente criminal. Thomaz Pompeu, em estudo estatístico sobre o Ceará na primeira metade do século XIX, afirma que o número total de crimes na Província e nos distritos estava bem acima daqueles julgados oficialmente: “os particulares, ou porque não confiam nos tribunaes ou para evitarem despesas ou intrigas, não se queixam; por isso é tão limitado o numero desses crimes nos mappas, quando na verdade elle é abundante.” (BRASIL, 1861. p.815). O autor sugere que para boa parte dos crimes a solução se dava de forma privada, e não pública. Assim, apesar do tom de apelo da petição, é possível desconfiar de que o problema não estivesse especificamente na ausência de varas criminais.

Poderíamos dizer que a autonomia das instituições locais foi parte importante do projeto político de uma elite em ascensão, que passava a ter ao seu alcance um aparelho político, administrativo e judicial próprios, que foram muito importantes na consolidação e manutenção de seu domínio. Na administração colonial portuguesa, um povoado, ao ser elevado a categoria de vila, adquiria automaticamente o direito de ter organizada uma Câmara Municipal, símbolo do poder local. E isto, muito mais que a formalização do aparelho jurídico, pode ter sido o principal motivo pelo qual as elites locais buscaram a autonomia política.