• Nenhum resultado encontrado

4. Investigação criminal fiscal – O crime de fraude fiscal

4.3 Prática da investigação do crime de fraude fiscal

À semelhança do que escrevemos a propósito do crime de abuso de confiança fiscal, partilhamos agora alguns exemplos práticos:

1. Sociedade comercial que tinha como objeto o comércio de água engarrafada

Os autos tiveram origem em denúncia apresentada pelo TOC, nos termos do artº 58º do Código Deontológico da Ordem dos Técnicos Oficiais de Contas.

A participada não entregava declarações de IVA desde o ano 2009, entregara as declarações Mod 22 (IRC) em branco como se não tivesse atividade, bem como não entregava a declaração anual modelo 10, apesar de ter trabalhadores no ativo.

Mais resulta da denúncia que inscrevia na segurança social trabalhadores a quem eram vendidos contratos de trabalho e mensalmente exigiam a esses mesmos trabalhadores o pagamento da contribuição à Segurança Social, quantias das quais a empresa se apropriava. Tratava-se de empresa criada e dirigida por cidadão estrangeiro, a qual tinha como fim, unicamente, a contratação de estrangeiros para posterior legalização.

96 [s. n.] – A corrupção numa abordagem de âmbito criminológico, [s. l.: s. d]. Procuradoria – Geral da República –

83 Paralelamente, foi apresentada participação pelo SEF.

Mais uma vez, foi consultado o relatório da Inspeção Tributária no âmbito de anterior ação de inspeção.

A propósito da interconexão entre a inspeção tributária e o processo penal tributário, escreve Prof. Doutor Germano Marques da Silva:

"O processo administrativo de inspeção não se confunde teoricamente com o processo penal tributário; são procedimentos diversos e com finalidades também diferentes.

Sucede, porém, que na grande maioria dos casos, pelo menos no âmbito fiscal, a notitia criminis é obtida pelos agentes da administração tributária no decurso das inspeções tributárias. Se no decurso de uma inspeção tributária os inspetores adquirirem notícia de um crime tributário, devem transmiti- la ao órgão da administração tributária com delegação para a realização do inquérito, sem prejuízo de praticarem, em caso de urgência ou perigo de demora, os atos cautelares necessários e urgentes para assegurar os meios de prova (artº 37º do RGIT). (...)

Os poderes dos inspetores, na perspetiva da inspeção tributária, são limitados. Mas (...) os elementos obtidos na inspeção podem ser utilizados no processo penal, desde que validamente obtidos na inspeção e sejam legalmente admitidos no inquérito."97

No processo em causa, os valores corrigidos foram apurados com recurso a métodos indiretos. A este propósito, acrescenta o autor:

"Tem sido questionado se a avaliação indireta (v.g. quantificação da vantagem patrimonial suscetível de causar diminuição das receitas tributárias na fraude fiscal) pode servir para efeitos de punição criminal.

A resposta a esta questão encontra-se lapidarmente no Acórdão do Tribunal Constitucional: «Em consequência, uma ampla corrente sustenta que a responsabilidade penal não pode ser aferida com base na determinação do lucro tributável em falta por recurso a métodos indiciários por parte da Administração Fiscal. E isso porque em matéria penal vigora um princípio ou presunção de sentido contrário decorrente, antes de mais, do artº 32º nº2 da CRP. Assim, a fixação da matéria coletável por recurso a métodos indiretos ou meramente indiciários é válida unicamente para efeitos tributários estritos ou, quando muito, de jaez contraordenacional, jamais o podendo ser para efeito de responsabilidade penal.

97

84

Pelo que a condenação dos arguidos com base em tais presunções, para além dos vícios apontados, volver-se-ia numa manifesta inconstitucionalidade que aos tribunais compete fiscalizar e impedir a respetiva verificação. (...) O que equivale a dizer que a existência de uma vantagem ilegítima por parte do arguido deverá ser concretamente apurada em sede de audiência de julgamento, inclusive se devendo discutir o método utilizado» (Acórdão nº 180/07, de 8 de março de 2007).

Acrescentamos só que a prova indireta ou indiciária é uma prova válida também em direito criminal (Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II)."98

Sem prejuízo, no processo em causa foi proposto o arquivamento, porquanto nem o IRC a corrigir nem o IVA a liquidar originaram por período, valor superior a 15.000 €.

No exemplo apresentado destacamos o facto de não ter havido lugar a investigação criminal no conceito que temos vindo a desenvolver, porquanto mais uma vez decorreu um lapso temporal significativo entre o início do procedimento de inspeção e a instauração do processo crime, não tendo havido um trabalho conjunto da Inspeção Tributária e da Divisão de Processos Criminais Fiscais.

2. Sociedade comercial que tinha como objeto a compra e venda de viaturas, importação e exportação

Tendo já apresentado um caso prático de investigação criminal fiscal no setor de atividade em causa ( 3.3 Prática da investigação do crime de abuso de confiança fiscal - 3.), também o que se segue nos parece pertinente porquanto nos permite considerar outras perspetivas: em primeiro lugar investigou-se a prática de um crime de fraude fiscal e não de abuso de confiança fiscal; em segundo lugar, permite-nos compreender que as metodologias utilizada pela Inspeção Tributária e pela Divisão de Processos Criminais Fiscais (DPCF) são necessariamente diferentes, pelo que a constituição de equipas conjuntas pode obviar à duplicação de trabalho, à redução do tempo de trabalho alocado a cada processo, bem como anular o deferimento temporal entre a prática dos factos, o inicio do procedimento de inspeção e a instauração de processo crime, com vantagens evidentes na preservação e recolha da prova.

O processo de inquérito ora apresentado teve origem numa informação preliminar da Inspeção Tributária.

98

85

À semelhança do exemplo apresentado em 3.3 - 3, não foi possível aceder à contabilidade do sujeito passivo, pelo que a documentação fornecida pela Alfândega e pela Conservatória do Registo Automóvel e a consulta à base de dados da AT "Cadastro de veículos nacionais" permitiram identificar os adquirentes das viaturas, os quais foram notificados pela Inspeção Tributária, por via postal, para responderem a questionário escrito previamente definido, tendo a maioria respondido às notificações, remetendo documentos comprovativos da aquisição e pagamento dos veículos.

Pela DPCF foi ouvido o TOC na qualidade de testemunha e emitidas cartas precatórias a outras Direções de Finanças para inquirição dos adquirentes.

Pela Inspeção Tributária foram efetuadas correções técnicas e correções com recurso a métodos indiretos.

Procurou-se reunir a prova documental recolhida pela Inspeção Tributária e a prova testemunhal recolhida pela DPCF, tendo sido provados a gerência de facto e o recebimento do IVA liquidado e proposta a acusação contra a Sociedade e o gerente de facto pela prática de um crime de fraude fiscal.

3. Investigação de denúncia contra pessoa singular por suspeita da obtenção de rendimentos não declarados

Deu entrada na Divisão de Processos Criminais Fiscais denúncia anónima contra particular representante de associação sem fins lucrativos, o qual alegadamente teria organizado em 2013 e se preparava para organizar em 2014 evento anual artístico, para o qual venderia entradas sem emissão das respetivas faturas e recibos, apropriando-se das receitas obtidas.

Foi solicitado ao Banco de Portugal, por intermédio do Ministério Público, o levantamento do sigilo bancário sobre a conta do suspeito.

Foi feita diligência externa, designadamente visita aos locais onde alegadamente seriam vendidas as entradas e realizado o espetáculo, a fim de recolher prova testemunhal.

Foi consultado o processo da Inspeção Tributária, porquanto os colegas se dirigiram ao local durante a realização do e vento, não tendo detetado irregularidades.

Considerados os movimentos na conta bancária do suspeito bem como as conclusões do relatório da Inspeção Tributária foi proposto o arquivamento.

86

No que concerne ao último exemplo apresentado, apenas se nos oferece louvar o trabalho desenvolvido pelos colegas da Inspeção Tributária, os quais perante denúncia prévia à data dos factos passíveis de configurarem a prática de crime fiscal, se deslocaram ao local durante a realização do evento (o qual decorreu ao fim de semana), a fim de testemunharem a eventual prática de crime e levantar o competente auto de notícia.

87 CAPITULO V

Dos Inspetores da Autoridade Tributária enquanto órgãos de polícia criminal