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Capítulo 1 – Bandos, provisões e regimentos minerários: entre práticas e normas

1.3 Práticas costumeiras e mineração nos morros das Minas Gerais

Nos artigos do regimento de 1702, a grande preocupação era garantir a arrecadação da Coroa sobre o ouro extraído. Esses não versavam sobre o uso de componentes essenciais na mineração, como água e madeira, ou sobre as técnicas que deveriam ser empregadas nessa atividade. Apesar de garantir ao superintendente a jurisdição sobre as contendas que viessem a surgir entre os mineradores, o regimento não conseguia dar conta das várias situações conflituosas que iriam surgir e, portanto, não oferecia meios para a resolução das mesmas.

Na elaboração do documento já se previa tal fator, pois seu último artigo estabelecia que o superintendente deveria informar ao rei se percebesse que alguma determinação devia ser acrescentada, ou modificada. As lacunas deixadas pelo regimento abriram espaço para que os próprios mineradores fossem construindo, em sua prática cotidiana, meios para solucionar tanto os problemas referentes às técnicas, quanto ao convívio social nos locais de exploração, e as contendas resultantes desse convívio.

Algumas práticas, sendo adotadas repetidamente pelos mineradores na solução das situações encontradas, acabariam se transformando em direitos costumeiros, reconhecidos pela população como legítimos. É o que vemos, ao analisar os processos cíveis, em frases do tipo “como é costume nessas Minas”.66 Esses direitos costumeiros, construídos pelos exploradores, regularam, por exemplo, os direitos de uns e outros nas associações minerárias, e a forma de ocupação das terras auríferas nos morros. Esses costumes, algumas vezes, seriam

incorporados posteriormente pelo direito legal. Isso foi possível porque no período colonial, em alguns casos, observou-se a adequação das ordens régias aos usos e costumes praticados pela população. Os representantes da coroa adaptavam a lei positiva aos padrões costumeiros, deixando que ambos convivessem lado a lado.67

Antônio Manuel Hespanha, analisando o caso de Portugal, mostra que até finais do Antigo Regime o direito letrado coexistiu, ainda que de forma conflituosa, com tradições jurídicas populares.68 Porém, a relação entre ambos não era de oposição total. Era aceitável, pelo direito erudito, que o costume local se impusesse ao direito comum, porém o costume não poderia ter preferência ante a lei nacional. No entanto, havia várias disposições legais baseadas no costume, e não na lei. O juiz local (ordinário) havia surgido como um oficial da comunidade com a função de resolver conflitos de acordo com as normas que ela própria estabeleceu para si, e não como o delegado de um poder superior, como o do rei. A ideia de que o poder de julgar era um atributo do soberano, e a jurisdição do juiz era apenas delegada, só viria mais tarde. Porém, a autonomia jurisdicional dos corpos inferiores não irá desaparecer antes do fim do Antigo Regime.69

Hespanha continua dizendo que o direito local ou particular era o direito tradicional das comunidades, difundido como tradição e “publicado por bando ou pregão, ele materializava a tradição comunitária acerca do justo e do injusto, sendo, em principio, um direito intensamente vivido e conhecido por todos”.70 Parece-nos que o que ocorreu com relação à exploração aurífera nos morros das Minas Gerais guarda semelhanças com isso. Como, inicialmente, a legislação nada dizia a respeito da ocupação e exploração do ouro nesses locais, os próprios exploradores foram criando, cotidianamente, seus códigos de conduta, que com o tempo seriam conhecidos e aceitos pelos agentes que por ali perambulavam. É claro que isso não ocorreu de forma totalmente harmônica, existiram sim

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GONÇALVES, Jener Cristiano. Justiça e direitos costumeiros: apelos judiciais de escravos, forros e livres em Minas Gerais (1716-1815). Dissertação (Mestrado em História) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2006. p. 17.

68 HESPANHA, Antônio Manuel. Sábios e rústicos: a violência doce da razão jurídica. Revista crítica de ciências sociais. Coimbra, nº 25/26, dez. 1988, p. 31.

69 Idem. Imbecillitas, as bem aventuranças da inferioridade nas sociedades de Antigo Regime. São

Paulo: Annablume, 2010. p. 182.

70 Idem. Sábios e rústicos: a violência doce da razão jurídica. Revista crítica de ciências sociais.

desentendimentos entre os exploradores desses locais, mas as próprias resoluções desses desentendimentos contribuíram para que se fossem construindo as regras da mineração que deveria ser praticada ali.

Difundidas como tradição, essas regras seriam, pelo menos parcialmente, incorporadas aos bandos que começaram a ser publicados para regular a exploração nos morros a partir da década de 1720. É importante ressaltar, no entanto, que as práticas costumeiras foram sendo moldadas ao longo do tempo, e também podiam sofrer mudanças, pois, como bem observa Thompson, “longe de exibir a permanência sugerida pela palavra ‘tradição’, o costume era um campo para a mudança e a disputa, uma arena na qual interesses opostos apresentavam reivindicações conflitantes”.71 Pobres e poderosos disputavam, assim, um espaço de exploração nas serras e, ainda que esses últimos quase sempre tivessem vantagens nessas disputas, aqueles primeiros não seriam completamente banidos desses locais.

Alysson Freitas também mostra que o costume teve peso importante na conformação das relações cotidianas na colônia do século XVIII e que, mesmo não sendo um sistema codificado legalmente, foi constituindo um corpus de regras que funcionavam como reguladoras e mediadoras das relações sociais cotidianamente.72 Funcionavam ainda “como aparato de sustentação de um sistema judiciário frágil, que não respondia as várias questões inerentes à complexidade da sociedade”.73 É isso que vemos ocorrer com relação à exploração aurífera. Como as leis existentes não conseguiam dar conta dos vários problemas enfrentados na prática de tal atividade, não raro as contendas judiciais eram resolvidas de acordo com os costumes. Enfim, podemos dizer que o aparato legislativo referente à mineração foi construído ao longo do século XVIII, pois foi sendo elaborado à medida que a prática da exploração minerária se desenvolvia e surgiam, consequentemente, novos problemas a serem resolvidos.