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Até aqui, o capítulo destacou os instrumentos de ação pública. Já se discutiu que há polêmica em aproximar instrumento, e seus propósitos de organização e estabilidade, de participação, com seus propósitos de transformação. É nesse escrutínio da ambivalência da institucionalização da interação entre atores societais e estatais que se observou que os processos participativos formais são passíveis de acatar métodos de movimentos sociais, em estratégias que podem até rotinizar, mas que não são essencialmente definidas a partir de sua matriz regulatória, escapando aos regimentos e documentos formais. Nos itens a seguir, discorro brevemente sobre conceitos e exemplos de práticas conselhistas aqui estabelecidas enquanto repertórios de interação (TILLY, 2008; ALONSO, 2012; ABERS, SERAFIM, TATAGIBA, 2014). No caso da participação em arenas conselhistas, os repertórios conformam tanto a mecânica de acordos tácitos que movem a ação pública, que inclui as instituições, como também a lógica das táticas da ação coletiva informal, que extrapolam os dispositivos institucionais convencionais.

A primeira estratégia de repertório se mostra no caso das Missões do CNDH. Entre as competências previstas em regimento interno para o Conselho Nacional de

Direitos Humanos, estão: “dar especial atenção às áreas de maior ocorrência de violações de direitos humanos, podendo nelas promover a instalação de representações do CNDH pelo tempo que for necessário”, “fiscalizar a política nacional de direitos humanos“ e “acompanhar o desempenho das obrigações relativas à defesa dos direitos humanos resultantes de acordos internacionais”. O artifício que o Conselho forjou para dar conta de tal conjunto de propósitos foi estabelecer missões, verificadas enquanto estratégias de incidência in loci, que são realizadas por Grupos de Trabalho específicos instituídos em comissões do CNDH. As iniciativas deslocam conselheiros nacionais em visitas técnicas aos eventos mais proeminentes de violação de direitos humanos, em geral respondendo às denúncias realizadas ao Conselho. As visitas técnicas se somam à possibilidade de reuniões com autoridades locais e audiências públicas. Aos deslocamentos, segue-se a elaboração de relatórios que são, por sua vez, discutidos e aperfeiçoados por suas respectivas comissões temáticas e, finalmente, pelo plenário do Conselho.

De acordo com uma assessora do CNDH (SERVIDORA PÚBLICA II PARTICIPANTE DA 12ª CNDH, em entrevista em 22 de abril de 2017), o complexo repertório de missões já existia desde antes da instauração do CNDH e foi relevante ao seu antecedente, o Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa Humana (CNDPH). Essa coleção de táticas encontra estruturas mais ou menos homólogas em organismos intergovernamentais de direitos humanos e organizações não-governamentais.

Apesar de não ser chamada como tal regimentalmente, o nome “missão” intitula Relatórios do CNDH, que agregam em si um item de recomendações para a ação pública de diversos órgãos. Para trazer apenas dois exemplos, foram realizadas missões por Grupos de Trabalho com representantes do CNDH no caso do desastre ambiental de Mariana, em Minas Gerais em 2015, e no mesmo ano o caso da situação de desalojados pela Usina de Belo Monte, em Altamira, no Pará (CNDH, 2017). Segue trecho de relatório37 concernente a Altamira, que aponta para os sentidos auditorial e prescritivo do repertório de missões:

37 Relatório parcial preliminar da missão realizada entre os dias 8 e 12 de outubro de 2016, na área de

influência da usina hidrelétrica de Belo Monte e da Belo Sun Mineração, pelo grupo de trabalho sobre os direitos da população atingida pela implementação da UHE Belo Monte, criado no âmbito da comissão permanente dos direitos dos povos indígenas, dos quilombolas, dos povos e comunidades tradicionais, de populações afetadas por grandes empreendimentos e dos trabalhadores e trabalhadoras rurais envolvidos em conflitos fundiários. O excerto destacado está disponível em: http://www.sdh.gov.br/noticias/pdf/relatorio-parcial-cndh-belo-monte-belo-sun. Acesso em 14 de abril de 2017

Dentre as falhas apontadas pela Fundação Nacional do Índio (FUNAI) nos estudos do componente indígena protocolados pela Belo Sun, saltam aos olhos a ausência de dados primários das terras indígenas (foram usados dados de fontes secundárias, isto é, dados não colhidos diretamente e in loco pela empresa), bem como o desrespeito ao check list e demais parâmetros insculpidos no Termo de Referência (TR) enviado pela Fundação Indigenista. Neste diapasão, conclui-se, sem maiores esforços, que o estudo apresentado pela Belo Sun não retrata a situação atual dos indígenas habitantes da Volta Grande do Xingu, isto é, ignora por completo os impactos decorrentes do início da operação da UHE Belo Monte, ocorrido no começo de 2016. Assim, deve a FUNAI finalizar o protocolo de consulta com a comunidade, ao passo que deve a Belo Sun prosseguir com os estudos nas aldeias indígenas que circundam o local em que se pretende instalar a mina, tudo de acordo com o Termo de Referência enviado pela FUNAI à Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Sustentabilidade (SEMAS), ainda no ano de 2012. Nada obstante todo o exposto, no dia 02 de fevereiro do corrente ano, a SEMAS/PA expediu licença de instalação em favor do Projeto Volta Grande de Mineração, autorizando a Belo Sun a iniciar a efetiva instalação do empreendimento na Volta Grande do Xingu.

RECOMENDAÇÃO: Neste cenário, vem o CNDH RECOMENDAR à SEMAS/PA que SUSPENDA A LICENÇA DE INSTALAÇÃO EXPEDIDA EM FAVOR DA Empresa Belo Sun Mineração S/A, haja vista o não cumprimento da condicionante 26 da Licença Prévia, consistente na elaboração dos estudos de impacto ambiental do componente indígena (EIA- CI) nos moldes indicados pela FUNAI no termo de referência (TR). Os estudos entregues foram rejeitados pela FUNAI, que restou impossibilitada de se manifestar quanto ao mérito dos estudos apresentados.

(CNDH, 2017).

Os relatórios subsidiam outras ações conselhistas mais formais, como recomendações (conforme aconteceu com o caso de Belo Monte), moções, resoluções, criação de novos grupos de trabalho específicos e, conforme os relatórios e atas verificados, articulações com órgãos externos ao Conselho. Em especial, as recomendações e articulações são ações emblemáticas do CNDH, que incitam os três poderes do Estado a aferirem maior atenção aos direitos humanos. Assim, as missões são importantes lógicas articuladoras de ação transversal pelo CNDH, que foram estabelecidas antes por um conjunto articulado de práticas e rotinizações de dispositivos e repertórios interacionais do que por um único regulamento específico que as inaugurem.

4.4.1 Conceito de repertório de interação

Charles Tilly, um dos expoentes da teoria do processo político e do conflito político na sociologia política dos movimentos sociais, é o autor fundacional do conceito de repertório de ação coletiva. O conceito não é inaugurado para esse fim, mas permite compreender a interação entre estado e sociedade e entre as interfaces ora

analisadas. Os repertórios de ação coletiva de Tilly (2006, ALONSO, 2012) são práticas de confronto38 de movimentos sociais que estão imbuídas de significados culturalmente compartilhados. As performances, as unidades mínimas do repertório, são relacionais, situadas entre reivindicador e objeto de reivindicações. É a agregação de performances orientadas por grupos que compartilham de sentidos comuns que congrega um repertório de ação coletiva.

Greves, protestos e petições são exemplos de performances. A noção de repertório musical é a inspiração do autor para os leques de maneiras de fazer ação coletiva, ou melhor, os padrões de rotinas de interação que se expressam como conjuntos de modos de ação dos atores coletivos. As lógicas de confronto de cunho informal, operam como arranjos que enredam atores em torno de pautas reivindicatórias. A repetição dessas estratégias pode ser mais ou menos frequente, uma vez que os desafiantes do poder instituído podem ser afeitos a novas estratégias, mais criativas, flexíveis e improvisadas (ALONSO, 2012).

Abers, Serafim e Tatagiba (2014) preocuparam-se em adaptar a teoria tillyana para o contexto brasileiro contemporâneo e afastam-se da noção do confronto com o Estado para identificar lógicas colaborativas. Elas se debruçaram sobre o período de governo do presidente Lula (2003-2010) e encontraram quatro repertórios de interação entre Estado e sociedade: protestos e ação direta; participação institucionalizada; política de proximidade; e ocupação de cargos na burocracia. Nos repertórios de participação institucional, as autoras observam que os atores estatais seriam centrais na criação e condução de processos. E seriam nas rotinas, agendas e formas de ação direta, como dos protestos que instauram ou pressionam negociações socioestatais, que os movimentos sociais seriam centrais. Os distintos repertórios de interação podem, entretanto, se imbricar para estabelecer ações mais complexas.

Mais além, é frutífero compreender que atores, tais quais os fóruns entre Estado e sociedade analisadas, passam a estabelecer seus próprios repertórios. É o caso das missões do CNDH, mas também de Conferências específicas do CNS, de atos públicos como Marchas ou de resoluções referentes a temas complexos, conforme discutido no item a seguir.

4.5 Instrumentação da ação pública transversal e participativa no CNDH,

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