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a sociedade supostamente justa e cega às diferenças é não só inumana (porque suprime identidades) mas também, de modo sutil e inconsciente, altamente discriminatória (TAYLOR, 2000).

A estabilização da ação coletiva através de procedimentos que conferem sentido e organizam as práticas interacionais não precisa, necessariamente, ser enquadrada enquanto cerceadora dos potenciais de interação entre atores do Estado e da sociedade. De fato, esses procedimentos podem fortalecer as dinâmicas dialógicas, dando vazão às vozes difusas que ficam, convencionalmente, silenciadas em processos decisórios.

A consideração de pressões societais por atores governamentais portadores de novos projetos políticos pode ser um estopim para garantir algo que Callon, Lascoumes e Barthe (2009), tratariam por democratização técnica. A técnica ora enfatizada, antes que referente à expertise de atores, é aquela da criação de dispositivos que regulamentam as interações. O exemplo do Conselho Nacional de Saúde é fundacional e emblemático para pensar essa possibilidade de institucionalização (ou, se quisermos, procedimentalização ou instrumentalização) do dialogismo. Conforme uma ex-conselheira entrevistada,

O Conselho Nacional de Saúde tem mais de setenta anos. Ele se tornou mais representativo e de um campo mais popular com a entrada de muitos movimentos sociais e dos trabalhadores a partir da construção do SUS. Então, ele vai ser realmente mais expressivo, representativo e com uma função de controle público, de controle social, na década de 1990 e principalmente em 2003, quando começamos a fazer uma série de alterações num instrumento, a Resolução 333. A Resolução 333 é um marco que dá um caráter mais amplo, participativo, popular, e principalmente dos movimentos que começaram a ver na saúde um espaço muito grande da afirmação de sua identidade política e coletiva. Então, os povos indígenas, os camponeses, os movimentos feministas, os movimentos LGBT... E aí eu acho que está essa a inovação transversal. Para além da formalidade do controle do orçamento público, da garantia de formalidade, ou da garantia de serviços de qualidade, o inovador é o que não está formalizado: o discurso, a narrativa sobre o que é o direito universal à saúde, o que é saúde integral para esses movimentos. Quando os povos indígenas vão para lá [o CNS], eles vão para dizer que são povos, que são nações, que querem respeito à sua auto-determinação, que querem apoio da sociedade na luta pela demarcação de seus territórios, etc. Quando o movimento de mulheres vai para lá, vai para discutir um SUS de qualidade e seus serviços sim, mas traz também a pauta dos direitos sexuais e reprodutivos, tem a pauta do feminismo e da autonomia das mulheres. Isso chama muita atenção: para se ver o espaço da narrativa, o espaço da identidade sendo reafirmado e querendo legitimidade por outros atores da sociedade. Por outro lado, você tem os trabalhadores, com uma luta de classe e de categoria comuns, e ao mesmo tempo que pensam a saúde trazem outras bandeiras, como a da seguridade. (ex-conselheira nacional de saúde,

representante dos usuários do SUS no segmento rural, suplente entre 2008 e 2009, titular entre 2010 e 2015, em entrevista em 22 de março de 2017).

Na ocasião, a entrevistada discorreu por mais alguns minutos sobre os grupos identitários, demais atores e seus papéis no CNS. Ela menciona, além desse destaque à origem e pertença dos atores de movimentos sociais, os atores acadêmicos, as forças do mercado e os representantes governamentais, todos considerados na composição do Conselho Nacional de Saúde. Tal consideração acrescenta um outro “quem” ao questionamento sobre “quem pode atuar nessas interfaces socioestatais?” no intuito de considerar as dimensões da equidade, da identidade e da diferença na produção do complexo processo participativo sanitário. Esses atores, que portam consigo projetos e sentidos específicos sobre seus próprios propósitos identitários e a questão sanitária, agregam à arena um potencial de dissenso e de promoção de mudança, devido aos seus múltiplos propósitos de reinscrição sobre o que deve ser considerado relevante à saúde pública pelo estado brasileiro.

Os alcances da referida regulamentação são ainda efeitos das lutas que encontraram eco no advento da constituição cidadã, depois nas Leis 8.080 e 8.142, ambas de 1990, que dispõem sobre o direito à saúde e consideram a dimensão da participação. Compartilho trecho da destacada Resolução 333/2003 do CNS, por ampliar a orientação concernente à diversidade de grupos da sociedade civil compondo os Conselhos das três esferas federativas e permitindo a pluralização de atores societais.

A representação de órgãos ou entidades terá como critério a representatividade, a abrangência e a complementaridade do conjunto de forças sociais, no âmbito de atuação do Conselho de Saúde. De acordo com as especificidades locais, aplicando o princípio da paridade, poderão ser contempladas, dentre outras, as seguintes representações:

a) de associações de portadores de patologias; b) de associações de portadores de deficiências; c) de entidades indígenas;

d) de movimentos sociais e populares organizados; e) movimentos organizados de mulheres, em saúde; f) de entidades de aposentados e pensionistas;

g) de entidades congregadas de sindicatos, centrais sindicais, confederações e federações de trabalhadores urbanos e rurais;

h) de entidades de defesa do consumidor; i) de organizações de moradores.

j) de entidades ambientalistas; k) de organizações religiosas;

l) de trabalhadores da área de saúde: associações, sindicatos, federações, confederações e conselhos de classe;

m) da comunidade científica;

n) de entidades públicas, de hospitais universitários e hospitais campo de estágio, de pesquisa e desenvolvimento;

o) entidades patronais;

p) de entidades dos prestadores de serviço de saúde; q) de Governo.

Conforme outro documento, esse estabelecedor do fluxo de trabalho do CNS (s/ano, acesso em 2017), as resoluções são, tais como as recomendações e moções, o modo como o Conselho manifesta suas deliberações. Em especial, as resoluções são atos de caráter normativo, que requerem tempo para aprofundamento e debate entre os conselheiros. As resoluções, conforme será caracterizado nas próximas páginas, são instrumentos para a organização da própria ação, relevantes às dinâmicas de composição desses fóruns, para desenhar e constranger estratégias de interação e, ainda, passíveis de viabilizar a proliferação das determinações dos Conselhos para além da própria arena. Fica como agenda inicial para este capítulo percorrer essa conceituação de instrumentos, tão cara para tratar tanto da organização como dos produtos da ação conselhista.

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