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Práticas lúdicas dirigidas: cenário de expressão do vivido

B) Realinhando a trajetória: novos instrumentos de intervenção

4. DANÇA DAS CADEIRAS: REARRANJOS NO MAPA DE RELAÇÕES

4.1 Práticas lúdicas dirigidas: cenário de expressão do vivido

Podemos analisar a predominância ao favorecimento de expressão e elaboração das atividades lúdicas de caráter dirigido: contação de histórias, construção de histórias a partir de imagens, teatro de fantoches, sociograma, berlinda e o momento de integração, bem como as repercussões mais relevantes destas expressões e elaborações no estabelecimento da identidade étnica das crianças.

Contação e construção de histórias a partir de imagens, teatro de fantoches, dinâmica de integração.

Estas atividades ofereceram especial visibilidade sobre representações fundamentais constituídas em torno das identidades étnicas, favorecendo, desta forma, especialmente os movimentos de expressão.

Na contação de histórias, expressões positivas foram relacionadas às personagens brancas e negras das histórias trabalhadas, coerentes com os enredos e imagens presentes nas histórias. Expressões negativas, no entanto, sem eco nas histórias, também foram manifestas, desta vez relacionadas apenas às personagens negras: feiúra (relacionada à personagem Benedita, a qual é afirmada bonita pelo texto e pelas imagens), marginalidade (relacionada à personagem negra que na realidade ia à busca do policial pedir ajuda para pôr fim a uma confusão) e incompetência (novamente relacionada à personagem Benedita, que domina com destreza o brinquedo pião e pula corda com alegria) não apenas incoerentes, mas até mesmo contrárias ao enredo das histórias. Surge então a hipótese de que o negro ocupando espaço de afirmação é capaz de provocar incômodo, a qual é reforçada nas expressões manifestas nas atividades de construção de histórias a partir de imagens e teatro de fantoches. Nestas atividades, a representação do sujo aparece relacionada a objetos de crianças negras representadas de forma positiva, os quais foram alvo de inveja e em seguida de desqualificação: a casa, o vestido branco, as fivelas e os ursinhos de pelúcia das personagens foram desqualificados e destruídos. Tais representações são indicativas de preconceito étnico-racial, o qual pode ser definido como um julgamento antecipado e negativo de pessoa ou grupo ético-racial que ocupe outro papel social significativo (GOMES, 2005).

Diante destas observações, perguntamo-nos, então, se a atitude de Henrique, ocupando um lugar de afirmação e visibilidade, inclusive dono de brinquedos (objetos de desejo), os quais sempre levava à escola, pode ter deflagrado o movimento de tentativa de sua exclusão do grupo.

Também é importante lembrar que as representações afirmativas difundidas pelos livros de literatura infantil apresentados encontraram eco nas expressões positivas manifestas pelas crianças, as quais apresentam a possibilidade concreta de ressignificação destas representações a partir da repercussão de atividades análogas a esta como referenciais positivos no estabelecimento da identidade das crianças afro-descendentes.

Estas representações negativas indicam sérias repercussões quando, observando o quadro de participação ativa nas construções de histórias, as relacionamos ao silenciamento das crianças com fenótipo negro da turma, com uma mínima voz representativa no grupo, apenas 10,5% contra 21% das crianças negras que permanecem em silêncio. Ao passo que inversamente, as crianças de fenótipo branco apresentam 31% de voz no grupo diante 5,2% de crianças brancas sem voz. Na atividade de manipulação de fantoches para toda a turma, nenhuma criança negra ou parda aceitou o convite para participar. Esta posição de extrema exposição foi recusada por elas e aceita por quatro crianças brancas. Podemos avaliar que

representações tão negativas gratuitamente relacionadas ao fenótipo negro pode repercutir prejudicialmente sobre o espaço de voz e visibilidade no grupo a ser ocupado pela criança negra.

Para WOODWARD (2003) “Os discursos e os sistemas de representação constróem os lugares a partir dos quais os indivíduos podem se posicionar e a partir dos quais podem falar”. (P.17). Neste caso, também define a noção de que a partir de lugares, os indivíduos podem calar e não se posicionar.

Durante a dinâmica de integração, chamou atenção o comportamento da criança negra na dinâmica do grupo, logo retornando aos seus lugares após abraçar os colegas, diante de uma atitude mais relaxada e espontânea das demais crianças. Podemos observar que as crianças negras, deste grupo, se restringem em suas expressões, se estabelecemos paralelo com o comportamento das crianças de fenótipo pardo ou branco. Poderia esta diferença ser fruto, já, das repercussões das expressões negativas das representações do negro que, apesar de escamoteadas e diluídas nas tramas do cotidiano, capazes de minar a auto-estima da criança negra?

→ O sociograma e a berlinda: termômetro da sensibilidade relacional.

Análises importantes puderam ser feitas a partir da visibilidade ensejada por estes instrumentos sobre a teia de relações da turma. A confirmação de invisibilidade de uma criança negra (única não citada seja por aprovação ou rejeição), como o maior saldo positivo coube a uma criança branca (combinando grande índice da aprovação (06) e pequeno índice de rejeição (01)). Apesar da invisibilidade confirmada, as pistas nos levaram, por intermédio de suas escolhas no sociograma, ao desejo de Maiara (P. N) ter voz e espaço no grupo. E, neste sentido, as práticas lúdicas de brincadeira livre ofereceram um espaço singular para o exercício de posicionamento ativo de Maiara em prol deste desejo.

A percepção do olhar dos outros sobre si, proporcionada pela berlinda, repercutiu no grupo como um todo pela agitação que desencadeou, no entanto, a repercussão para Túlio foi sugestiva de um movimento de elaboração, pois alterou seu comportamento, dando princípio a um momento de introspecção salutar diante da expressão do grupo, demonstrativa de desaprovação de suas atitudes relacionais.

Encontramos elementos para pensar sobre os diferentes níveis de percepção das crianças sobre suas relações interpessoais na turma. As crianças que demonstraram mais sensibilidade, inferindo corretamente a autoria dos adjetivos positivos e negativos atribuídos

de escolhas recíprocas no sociograma, foram, em sua maioria, crianças de fenótipo negro: Denise (P, N), Letícia (B), Henrique (P, N) e Bruno (B, N) – 3N e 1B -e entre as menos sensíveis houve uma predominância dos brancos: Neto (B), Lígia (P), Bernardo (B, N), e Jander (B) (2B, 1P e 1N). Seria este mais um indício (a ser somado com o silenciamento) de que as crianças negras, sensíveis aos processos invisíveis de exclusão (e não ‘vistos’, mas sentidos) discriminação e preconceito, aprendem desde cedo a perceberem, mais que as outras, o olhar do outro sobre si? Reguardar-se da exposição como estratégia antecipada de defesa?

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