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Práticas lúdicas livres: cenário da releitura do vivido

B) Realinhando a trajetória: novos instrumentos de intervenção

4. DANÇA DAS CADEIRAS: REARRANJOS NO MAPA DE RELAÇÕES

4.2 Práticas lúdicas livres: cenário da releitura do vivido

As práticas lúdicas livres ensejaram a mostra de movimentos tanto de expressão como de elaboração das crianças. A elaboração faz referência à composição ou feitura, ou seja, é utilizado, aqui, como sinônimo que um processo ativo e crítico de (re) constituição de vivências, que se põe em andamento e que pode ser observado pela mudança de comportamento, bem como por uma tomada de posição resolutiva diante de um determinado conflito.

O desenho de Bruno (B, N) relativo ao trágico desfecho dado à história construída por meio da imagem do livro “Tanto, tanto” (COOKE, 1994), ele ficou sozinho na sala e o babau comeu ele. A mãe dele acordou, viu o sangue e chorou muito, uma bola de cristal, através da qual: ...a mãe podia ver o filho, depois que o babau comeu ele, tem a função de elo entre mãe e filho depois do trágico final da história e é bem representativa da elaboração realizada a partir do desenho, superando o final desagradável a partir de uma tomada de posição na iniciativa de fazer um final alternativo positivo para a resolução do conflito. Freitas (2003) faz referência à seletividade que ocorre na leitura de imagens, de forma que a relevância adquirida por determinado aspecto corresponde aos objetivos do leitor da imagem. Bruno (B, N) que possui fenótipo negro, tal qual o bebê protagonista da história, elabora no desenho o que é mais relevante para ele: um final positivo para a personagem.

Algumas cenas foram bem representativas dos movimentos de elaboração favorecidos pelas brincadeiras livres. Especialmente, evidenciaram momentos processuais (exercício de reversibilidade de papéis, de assumir desejos, de ocupar espaços) de algumas crianças que possibilitaram a compreensão de um percurso que desenharam a partir de suas relações interpessoais no grupo ao longo do ano letivo.

Como nosso foco de análise se concentra no estabelecimento da identidade étnica, constituída a partir das diferenças e nas relações, desde alguns protagonistas, relacionando-se

em vivências lúdicas analisadas de forma contextualizada, encontramos elementos para pensar as dinâmicas que perpassam a constituição destas identidades. A cultura molda as identidades: oferece uma gama variada de possibilidades a serem ‘optadas’ ao mesmo tempo em que somos constrangidos pelas nossas relações sociais e experiências (mídia, tradições...) as quais vão processando significados preferenciais e logo representações desejadas e rejeitadas. Os sistemas de representações formulam assim as identidades (WOODWARD, 2003).

As expressões foram indicativas de que os fenótipos são peças determinantes na elaboração das representações identitárias étnicas. Todas as práticas de significação que produzem significados

envolvem relações de poder, incluindo o poder para definir quem é incluído e que é excluído.

(WOODWARD, 2003,p.18). Os lugares ocupados pelas crianças, portanto, passam por estas representações identitárias e estão marcados por elas (assim como pelas de gênero, idade, de classe social).

As relações e posições ocupadas pelas crianças, vivenciadas ao longo do ano letivo pelo grupo, puderam ficar visíveis e estabelecer novos contornos a partir de elaborações e expressões possibilitadas desde a brincadeira livre. Esta dinâmica vivenciada pelos sujeitos protagonistas cujo percurso analisamos no cap. 3 pode evidenciar o caráter cambiante destas representações e lugares de poder nas teias relacionais.

→ Helena (P, N) x Daiana (P, B)

Helena e Daiana vivenciaram uma disputa de espaço, desde a brincadeira, que resultou em um movimento de elaboração resolutivo, a partir do qual as meninas afirmaram seus espaços de maneira positiva, sem prejuízo ao espaço da outra.

→ Sabrina (ND,B)

Sabrina foi a criança com maior aceitação no sociograma. Participou ativamente de todas as atividades lúdicas e contou com grande espaço na turma, inclusive voz - nas rodas de conversa, construção de histórias a partir das imagens e nas contações de histórias – expressando representações positivas e negativas sobre as personagens negras. Protagonizou, nas sessões de brincadeira livre, deu vida a personagens multiétnicas nas cenas de faz-de- conta mais significativas sobre as representações identitárias manipuladas, as quais ocuparam papéis de dominação, resistência e poder reveladoras da constituição de referenciais complexos de gênero e étnicos no imaginário infantil. A partir de um triângulo amoroso, representou os poderes: do masculino (em uma personagem branca - objeto da disputa entre as personagens femininas), da fragilidade feminina (em uma personagem branca) e da resistência feminina (numa personagem negra).

As inúmeras cenas, de cuidado e carinho dedicado aos bebês negros, vivenciadas por mais de 70% das meninas da turma, e especialmente por Sabrina, são movimentos de expressão e elaboração positivas diante da representação do negro. A identificação de Sabrina com o bebê chega à boneca o desejo de ser sua filha – Mulher, ela quer ser minha filha, que produz uma identidade materna para Sabrina:

A representação, compreendida como um processo cultural, estabelece identidades individuais e coletivas e os sistemas simbólicos nos quais ela se baseia fornecem possíveis respostas às questões: Quem sou eu? O que eu poderia ser? Quem eu quero ser? (WOODWARD, 2003:17). Grifo meu.

→ Maiara (P, N)

Maiara vivenciou, em um contexto mais amplo, um movimento de afirmação dentro do grupo e progressiva visibilidade. Embora alguns elementos deste processo estejam fora do nosso alcance (como o período escolar ministrado pela estagiária não localizada), alguns indícios observáveis nos momentos de brincadeira livre caracterizam a própria brincadeira como importante espaço de elaboração, onde Maiara exercita a afirmação de desejos e a possibilidade de assumir e resguardar espaços.

→ Túlio (P) x Henrique (P, N).

A dinâmica dos diferentes espaços e papéis ocupados por Túlio e Henrique foi fortemente vivenciada, expressa e elaborada a partir das brincadeiras livres, ainda que permeada pelos contextos cotidianos e pelas outras atividades lúdicas. As primeiras tentativas de dominação de Túlio (imposição de brincadeira) atitude de resistência silenciosa de Henrique (resistência corporal), a tentativa de excluir Henrique do grupo (quem for amigo de Henrique não brinca com o grupo), a recusa de Henrique à autoridade de Túlio (“Pois, então não vamos mais brincar com ele”), o movimento de elaboração do comportamento de Túlio (movimento de voltar atrás para dividir as peças do jogo), a culminância quando as meninas assumem o lugar de poder diante de Túlio e este mais uma vez dá mostras da elaboração do comportamento (aceita, embora não sem contrariedade) que existam outras configurações de poder no grupo.

A complexidade do cotidiano perfaz relações para além dos estereótipos. Apesar de confirmações lamentáveis da realidade de uma rede de discriminação e preconceito, especialmente perversa por sua invisibilidade e silêncio, que atinge as representações de nossas crianças sobre o negro de forma negativa, prejudicial à constituição identitária de todas elas, mais especialmente a das negras pelo impacto em sua auto-estima, lócus de voz e relações na turma, as identidades negras também vivenciam positividades e resistências a

despeito das adversidades. Helena e Henrique asseguram esta identidade positiva, pois, ainda que inconscientes de sua negritude, suas atitudes falam por eles. Já a experiência de Maiara, confirma para nós que o investimento em ações afirmativas (seja em termos de lei, de ações educativas, de valoração cultural, intelectual, estética...) é imprescindível diante da possibilidade de reelaboração destas representações negativas e empowerment por parte destas crianças.

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