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Práticas restaurativas no âmbito da violência doméstica e familiar contra

3 JUSTIÇA RESTAURATIVA: UM CAMINHO PARA

3.4 Práticas restaurativas no âmbito da violência doméstica e familiar contra

A Justiça Restaurativa tem se expandido e é adotada em vários países em casos de crimes, inclusive, graves. Dentre elas, relembramos o uso dos círculos, reconhecidos como um espaço seguro para a solução de conflitos, primando pelo respeito, criatividade e sensibilidade na escuta de vítimas e ofensores. No Brasil, conforme narrado acima, a Justiça Restaurativa é aplicada em alguns Tribunais, experimentalmente, em diferentes tipos de crimes, há pouco mais de dez anos.

Contudo, vale destacar que existe grande controvérsia sobre a aplicação das práticas restaurativas aos crimes de violência doméstica e familiar contra a mulher. Há uma preocupação no que diz respeito ao desequilíbrio de poder entre homens e mulheres, os quais, como exposto no primeiro capítulo desse trabalho, são sócio histórico-culturais e fazem parte do contexto conflitivo, não podendo ser desconsiderado durante o processo restaurativo. Além disso, há possibilidade de revitimização das mulheres em situação de violência, caso o facilitador/guardião não tenha clara a percepção da complexidade dessa questão, na condução das práticas restaurativas. Neste sentido, buscou-se saber sobre as experiencias em curso.

No âmbito internacional, a pesquisa do CNJ (2018), apresenta experiências de uso da justiça restaurativa em casos de violência doméstica contra a mulher, a saber:

O caso Austríaco é frequentemente destacado na literatura estrangeira, como país precursor do uso de práticas restaurativas em casos de violência doméstica (desde dos anos 1990) e, também, local de onde sai a maioria das evidências empíricas publicadas acerca do tema (GAVRIELIDES, 2017). O modelo adotado na Áustria, denominado de “resolução-de-ofensas-fora-da-corte” (out-of-court-offence-resolution), tem sido utilizado apenas nos casos de violência conjugal (partnership violence) e utiliza como metodologia restaurativa a mediação vítima-ofensor. Em 1999, uma pesquisa qualitativa (PELIKAN, 2000) concluiu que o potencial das mediações nesses casos reside em reafirmar processos de empoderamento (da mulher). O estudo, então, foi repetido dez anos depois (PELIKAN, 2010), quando foram enviados cerca de 900 questionários àqueles que participaram da mediação vítima-ofensor; 33 sessões de mediação vítima-ofensor foram observadas e 21 entrevistas qualitativas de follow-up foram realizadas. Dentre os resultados encontrados, 83% de todas as vítimas de violência doméstica que passaram pela mediação direta não reportaram mais violência; 80% das que não reportaram mais nenhuma violência, afirmaram que isso foi em razão da mediação. Segundo as vítimas entrevistadas, o processo de justiça restaurativa acarretou em empoderamento. Finalmente, 40% das mulheres que continuaram o relacionamento com o agressor ou ainda mantinham contato com ele, mas sem ter experimentado nova violência, afirmaram que o parceiro mudou como resultado da mediação (CNJ, 2018, p. 261).

Naquela pesquisa a mediação vítima-ofensor é apontada como uma possível alternativa em casos de violência doméstica e familiar contra a mulher. Destaca-se ainda que referida pesquisa expressa que não existe unanimidade de critérios sobre quais as situações dentre os casos de violência doméstica e familiar contra a mulher em que poderiam, ou não, ser aplicada a justiça restaurativa, conforme segue:

Em todos os países europeus pesquisados [...], existe legislação possibilitando e regulamentando o uso da mediação vítima-ofensor em casos de violência doméstica. Os critérios e regras de encaminhamento de casos a programas de justiça restaurativa, entretanto, diferem muito de país para país. Por exemplo, na legislação grega, apenas crimes de menor potencial ofensivo podem ser encaminhados para mediações, o que, naquele país, exclui crimes de lesão corporal e ameaça. Já na Áustria, os programas de mediação vítima-ofensor podem receber casos puníveis com prisão de até cinco anos, desde que, por exemplo, ninguém tiver morrido em consequência do crime. Na maioria desses países, houve projeto-pilotos antes da implementação das legislações nacionais, como uma espécie de experimentação. Por exemplo, tanto na Finlândia como na Áustria, foram encontrados registros de projetos-pilotos de introdução de justiça restaurativa ainda nos idos dos anos de 1980, porém só nos anos 2000 é que foram introduzidas leis regulamentando a justiça restaurativa (CNJ, 2018, p. 267).

Diante da constatação de que a mediação vítima-ofensor é citada como a prática restaurativa mais utilizada em casos de violência doméstica, faz-se necessário entender melhor do que se trata e qual a diferença entre a mediação penal (justiça tradicional) e a mediação aplicada como prática restaurativa.

Paz e Paz (2016, p. 131) trazem que “a mediação penal [...] busca, com a intervenção de um terceiro, [...] uma solução, negociada livremente entre as partes, para um conflito nascido de uma infração penal, no marco de um processo voluntário, informal e confidencial". Ainda sobre o tema:

a recente busca da autocomposição como meio de composição de controvérsias é decorrente, principalmente, de dois fatores básicos do desenvolvimento da cultura jurídico-processual: (i) de um lado, cresce a percepção de que o Estado tem falhado na sua missão pacificadora em razão de fatores como, dentre outros, a sobrecarga dos tribunais, as elevadas despesas com os litígios e o excessivo formalismo processual; (ii) por outro lado, tem se aceitado o fato de que o escopo social mais elevado das atividades jurídicas do Estado é eliminar conflitos mediante critérios justos, e, ao mesmo tempo, apregoa-se uma “tendência quanto aos escopos do processo e do exercício da jurisdição que é o abandono de fórmulas exclusivamente positivadas (AZEVEDO, 2016, p. 139)

A mediação no Poder Judiciário se dá em Centros Judiciários de Solução de Conflitos e Cidadania – CEJUSCS, com base na Lei 13.105/15 e no artigo 9º da Resolução nº. 125/2010 do CNJ e, ainda, em Juizados Especiais Cíveis e Criminais, com base na Lei 9.099/1995. Na justiça brasileira, o Código do Processo Civil - CPC, em seu art. nº 165, dispõe que:

Art. 165. Os tribunais criarão centros judiciários de solução consensual de conflitos, responsáveis pela realização de sessões e audiências de conciliação e mediação e pelo desenvolvimento de programas destinados a auxiliar, orientar e estimular a autocomposição.

[...]

§ 2o O conciliador, que atuará preferencialmente nos casos em que não houver vínculo anterior entre as partes, poderá sugerir soluções para o litígio, sendo vedada a utilização de qualquer tipo de constrangimento ou intimidação para que as partes conciliem.

§ 3o O mediador, que atuará preferencialmente nos casos em que houver vínculo anterior entre as partes, auxiliará aos interessados a compreender as questões e os interesses em conflito, de modo que eles possam, pelo restabelecimento da comunicação, identificar, por si próprios, soluções consensuais que gerem benefícios mútuos (Lei 13.105/15, 2015, art. nº 165, grifos nossos).

Aqui, faz-se uma pausa na diferenciação entre as mediações penal e restaurativa para pontuar que no art. 165 do CPC há indicação de uso da mediação entre partes processuais que tenham vínculo anterior, possivelmente, isso seria sugestivo para recomendar o uso de tal prática em casos de violência doméstica, uma vez que as partes litigantes têm esse vínculo, mas, há que se ter maior acuidade com essa indicação, como será tratado adiante.

Prosseguindo na diferenciação entre a mediação penal e mediação restaurativa, traz-se o conceito de mediação na justiça restaurativa. Larrauri apud Palamolla coloca que “consiste num encontro vítima-ofensor ajudadas por um mediador com o objetivo de chegar a um acordo reparador” (2015, p. 4, tradução nossa). Respondendo, ainda, à questão sobre qual é a relação entre mediação e justiça restaurativa, Pallamolla explica:

É certo que ambas possuem histórias diferentes mas que, ao final, cruzam-se. Conforme Miers (2003, p. 51), cada um dos conceitos é mais amplo e mais restrito do que o outro, simultaneamente. Assim, segundo este autor, por um lado a justiça restaurativa é mais restrita do que a mediação porque se aplica somente à esfera criminal, enquanto a mediação é utilizada em conflitos criminais e de outras esferas. Por outro lado, a justiça restaurativa é mais ampla em relação às possíveis respostas que o ofensor pode dar, alcançadas por outros meios que não a mediação (trabalhos prestados com a finalidade de reparar a vítima e, em alguns países, indenizações determinadas pelo tribunal, etc.), ao passo que a mediação, na esfera criminal, refere- se apenas às relações entre vítima e ofensor que são estabelecidas na mediação.[...] No entanto, é preciso salientar que a diferenciação feita por Miers – há mais de dez anos – encontra algumas limitações na atualidade, visto que existem programas de justiça restaurativa direcionados a conflitos que extrapolam os limites do sistema de justiça criminal, a exemplo de programas desenvolvidos para lidar com conflitos escolares, conflitos na comunidade, ou ainda, conflitos desencadeados no ambiente de trabalho (PALAMOLLA, 2015, p. 4).

No intuito de estabelecer a comparação de forma mais elucidativa, apresenta-se abaixo uma tabela descritiva com as principais diferenças entre as mediações penal e restaurativa: Quadro 3 – Modelos de mediação vítima-ofensor

Mediação na justiça tradicional. Mediação na justiça restaurativa. Voltada ao termo de composição civil de

danos (acordo).

Voltada ao restabelecimento do diálogo. Centrada no ofensor. Centrada na vítima.

Não há prévia preparação individual com a vítima e ofensor antes da sessão de mediação.

Há prévia preparação individual com a vítima e ofensor, visando identificar interesses, necessidades e outros pontos.

Em regra, não há preparação acerca do que ocorrerá no desenvolver da mediação.

Há debates sobre a reparação civil dos danos e enfoque no diálogo sobre o impacto do crime nas pessoas envolvidas.

Não é dada escolha de foro ou local, nem opção de pessoas apoiadoras.

Existe a opção de foro ou local e de pessoas apoiadoras.

Menos oportunidade de comunicação. Oportunidade para vítimas e ofensores se comunicarem diretamente.

O mediador descreve a ofensa ou crime e posteriormente o ofensor tem a oportunidades. A vítima restringe-se a apresentar ou responder perguntas.

O facilitador/mediador estimula que as partes assumam posição ativa. Há tolerância a expressões de sentimento e debates (diálogo direto).

Agentes públicos são usados como mediadores

Membros da comunidade são utilizados como mediadores, independentes ou monitorados por agentes públicos

Voluntário para a vítima e compulsório para ofensores

Voluntário para a vítima e ofensores Direciona-se a determinar a quantificação da

reparação civil a ser paga.

Direciona-se a estimular ofensores para que percebam seu comportamento, assumam responsabilidades e busquem reparar os danos. Em regra, a sessão demora de 10 a 15 minutos. Em regra, a sessão demora pelo menos uma hora.

Fonte: adaptada da tabela de Mark Umbreit

Esclarecida essa diferença mediação vítima-ofensor nos dois modelos de justiça, destaca-se que as experiencias de diversos países apontam uma tendência ao uso desta em casos de violência doméstica e familiar contra a mulher. Contudo, a partir da Lei Maria da Penha (Lei 11.340/06) a legislação brasileira proibiu a possibilidade de uso dessa prática nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher. Segundo o entendimento do Supremo Tribunal Federal - STF, a suspensão condicional do processo (prevista no artigo 89 da Lei 9.099/1995) não se aplica aos crimes de violência doméstica contra a mulher (Lei 11.340/06).

Destaca-se ainda a impossibilidade de aplicar quaisquer institutos despenalizadores, incluindo-se a transação penal, a composição civil dos danos e também a suspensão condicional do processo. Apregoa-se que essa rigidez visa não banalizar os crimes de violência doméstica contra a mulher e evitar revitimização. Haja vista as situações quando estes eram contemplados pela Lei 9.099/95 e o pagamento de cesta básica tornava o agressor “quite” com o Estado.

Ressalte-se ainda a fala da procuradora federal dos Direitos do Cidadão do Ministério Público Federal, Débora Duprat, a qual expressa que:

usar a justiça restaurativa em casos de violência doméstica contra mulher é inviável. [...] já houve decisão nesse sentido do Supremo Tribunal Federal para não colocar em risco a vida da mulher vítima da violência. "Sempre se soube que a conciliação é um modelo reprodutor da violência. Nós só vencemos a violência contra a mulher, mediante sanção típica do Direito Penal. A justiça restaurativa aparece na contramão, porque o Supremo Tribunal Federal reconheceu que a Lei Maria da Penha

despenalizadores da Lei dos Juizados Especiais Criminais (Lei 9.099/95)"

(ALESSANDRA, 2017, p.1)19

Diante das experiencias internacionais, a pesquisa CNJ (2018) sugere a possibilidade de revisão da legislação brasileira, propondo o “retorno” da suspensão condicional do processo, por considerar este o momento processual mais oportuno para o uso da justiça restaurativa em casos de violência doméstica contra a mulher, como segue:

Ainda sobre os resultados do estudo europeu (LUNNEMANN et al., 2015), no que diz respeito ao momento processual para realização do encontro restaurativo, foram mapeadas práticas em diversos momentos [...] Contudo, na Europa, é mais recorrente que se ofereça a possibilidade de mediação logo no início do processo, geralmente por iniciativa do Ministério Público. Esse, de fato, parece ser um momento processual mais oportuno para a implementação de práticas restaurativas nos casos de violência doméstica, já que o uso dessas práticas, por exemplo, depois da sentença, importaria em submeter as partes [...], por um lado, a vítima teria que passar pelas mesmas experiências de revitimização antes de atingir o “momento restaurativo” do processo. Por outro lado, ao agressor seriam impostos dois processos, o tradicional e o restaurativo, num perigoso exercício de bis in idem. Em Portugal, existe legislação (Lei 112/2009) possibilitando a realização de “encontros restaurativos” por ocasião da suspensão condicional do processo (SANTOS, 2014). Esse, talvez, fosse um momento processual oportuno para o caso brasileiro, o que nos exigiria travar um diálogo mais incisivo sobre o “retorno” da suspensão condicional do processo em casos abrangidos pela Lei Maria da Penha – tema esse, vale lembra, recorrente nas falas dos magistrados entrevistados (CNJ, 2018, p. 264, grifos nossos).

Tal argumento é reforçado pelos abolicionistas penais20, que argumentam a rigidez da lei e os encarceramentos e defendem avançar para além do direito penal, mediante o uso de formas alternativas de resolução de conflitos, inclusive a justiça restaurativa, em casos de violência doméstica contra a mulher.

Entretanto, salienta-se que as prisões em decorrência da violência doméstica contra a mulher tornam-se poucas, se comparadas às denúncias. Segundo o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias: “2.439 homens estavam presos por crimes de violência doméstica até junho de 2014. [...] no mesmo ano, 52.957 mulheres denunciaram casos de violência – entre eles violência física, psicológica, moral, sexual, etc. –, uma média de 145 por dia”.21

19 ALESSANDRA, Karla. Agência Câmara Notícias, 2017. Disponível em: http://www2.camara.leg.br/

camaranoticias/noticias/DIREITOS-HUMANOS/543639-ESPECIALISTAS-CRITICAM-USO-DA-JUSTICA- RESTAURATIVA-EM-CASOS-DE-VIOLENCIA-DOMESTICA-CONTRA-MULHER.html. Acesso em 20 Jan 2019.

20 Guilherme de Souza Nucci, in Direito Penal , Parte Geral 2ª parte, Ed. CPC, p. 14 e 15, diz trata-se de uma nova

forma de pensar o direito penal, uma vez que se questiona o verdadeiro significado das punições e das instituições, com o objetivo de construir outras formas de liberdade e justiça, o qual vem ganhando adeptos entre penalistas, especialmente, na Europa, (...) fruto de estudos e artigos de Louk Hulsman (Holanda), Thomas Mathiesen e Nils Christie (Noruega) e Sebastian Scheerer (Alemanha).

21 Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2015/12/151209_obstaculos_violencia_mulher_rm.

Entretanto, diante dos impedimentos legais para uso da mediação vítima-ofensor pelo Poder Judiciário no âmbito da violência doméstica e familiar contra a mulher a pesquisa do CNJ (2018) aponta para a possibilidade de uso dessa ferramenta pela sociedade civil (organizações não governamentais), em instâncias extrajudiciais, seguindo a experiencia de diversos países:

A referida pesquisa europeia também indicou que, nos países pesquisados, a sociedade civil realiza papel importante na prestação de serviços restaurativos. Por exemplo, no caso da Áustria, Dinamarca, Alemanha, Itália, Letônia, Malta, Holanda, Polônia, Portugal, Eslováquia, Eslovênia, Espanha, Suécia e Reino Unido, existem programas de justiça restaurativa voltados para casos de violência doméstica em que o próprio serviço de mediação vítima-ofensor é prestado por organizações não- governamentais. [...] muitos desses programas têm servido de modelo [...] reforçando o argumento de que a base comunitária da justiça restaurativa não pode ser ignorada ou atropelada por legislações que lancem requisitos muito restritos em torno da oferta de serviços restaurativos (CNJ, 2018, p. 263 e 264, grifos nossos).

Contudo, não é apenas a instância de intervenção o ponto a considerar, mas também os possíveis riscos no uso da justiça restaurativa (mediação vítima-ofensor) em casos de violência doméstica contra a mulher, senão vejamos:

Em 2015, foi realizada uma pesquisa empírica de mapeamento de programas de Justiça Restaurativa no Reino Unido (GAVRIELIDES, 2015), voltados especificamente a casos de violência doméstica [...]. Foram encontrados 11 programas, sendo a maioria de mediação vítima-ofensor e implementados depois da sentença (post sentencing), mas com o poder de suspender a execução da pena. [...] Quanto aos possíveis riscos, o coordenador da pesquisa (GAVRIELIDES, 2015; 2017) lembra que as discussões acerca do uso da justiça restaurativa em casos de violência doméstica não podem ignorar questões em torno da desigualdade de gênero, da posição da mulher nos sistemas de justiça criminal tradicionais, nem tampouco deixar de questionar se os procedimentos restaurativos podem, na prática, mudar o tratamento judicial tipicamente dispensado às vítimas. [...] a prática restaurativa mais utilizada nos países europeus é a mediação vítima- ofensor. Um dos riscos atribuídos pela literatura estrangeira ao uso da mediação vítima-ofensor em casos de violência doméstica contra a mulher é o problema da “pressão dupla” (DROST et al., 2015). Ocorre double pressure quando a vítima se sente pressionada não só pelo agressor mas também pelo cenário da mediação, o que pode fazer com que ela participe do encontro mesmo que não sinta vontade de fazê-lo ou que ela aceite algum resultado específico por achar que é o que ela deveria fazer (como, por exemplo, aceitar um pedido de desculpas, mesmo sabendo que é um pedido falso) (CNJ, 2018, p. 262 e 265, grifos nossos).

Além disso, os processos de mediação vítima-ofensor pressupõem que haja uma relação isonômica entre as partes conflitantes, o que de fato não ocorre em casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, pois a violência atua como mecanismo de submissão:

A composição civil igualmente tem sido vista como momento privilegiado para a vítima. No entanto, pressupõe a existência de dois litigantes em igualdade de condições. Ocorre que invariavelmente, nos casos de violência doméstica, os dois atores apresentam-se em disparidade. A violência atua como mecanismo de submissão da diversidade, impedindo o livre exercício da vontade. As relações assimétricas de poder funcionam como impeditivos às relações de igualdade, pressuposto da

composição civil. [...] . Se, por um lado, a convivência durante muitos anos revela o padrão da relação (violenta), a busca da solução judicial revela a tentativa de ver restabelecido o equilíbrio rompido. Por isso, nessa situação não há possibilidade de relações isonômicas. Por outro lado, qualquer proposta de composição necessita da plena aceitação por parte do autor do fato e, em caso de recusa, a vítima fica “afônica”, perdendo novamente sua capacidade de fala. O desconhecimento do significado da violência contra as mulheres pela tradição jurídica (operadores e teóricos do direito) tem permitido igualar relações assimétricas de poder (CAMPOS, CARVALHO, 2006, p. 415, grifos nossos).

Ainda com relação aos processos alternativos de resolução de conflitos em contextos de violência doméstica e familiar contra a mulher, também é importante destacar o que diz a Convenção sobre a eliminação de todas as formas de discriminação contra as mulheres - CEDAW (ONU), que em sua Recomendação Geral nº 33 que trata sobre o acesso das mulheres à justiça, coloca que

ao mesmo tempo que esses processos podem proporcionar maior flexibilidade e reduzir os custos e atrasos para mulheres que buscam justiça, também podem levar a outras violações de seus direitos e impunidade para perpetradores, na medida em que geralmente operam com base em valores patriarcais, tendo assim um impacto negativo sobre o acesso das mulheres à revisão e remédios judiciais (CEDAW, 2015, p. 24)

A Recomendação Geral nº 33 do CEDAW, expressa ainda aos Estados partes que:

a) Informem às mulheres sobre seus direitos de utilizar mediação, conciliação, arbitragem e resolução colaborativa de disputas; b) Assegurem que procedimentos alternativos de resolução de disputas não restrinjam o acesso pelas mulheres a remédios judiciais e outros em todas as áreas do direito, e não conduzam a novas violações de seus direitos; c) Assegurem que casos de violência contra as mulheres, incluindo violência doméstica, sob nenhuma circunstância sejam encaminhados para qualquer procedimento alternativo de resolução de disputas (CEDAW, 2015, p. 24, grifos nossos).

Então, de acordo com o CEDAW, há uma proibição no que diz respeito a aplicação de quaisquer procedimentos alternativos de resolução de conflitos nos casos de violência doméstica contra a mulher, isso reforça o impedimento do uso de conciliações ou mediações. Corroborando, Fabiana Severi, professora de Direitos Humanos da Universidade de São Paulo, afirma que

a aplicação da Lei Maria da Penha vai além de simplesmente punir, porque prevê uma rede de atendimento interdisciplinar para a mulher. Ela lembrou que já existem estudos que mostram que a conciliação não é a forma mais adequada de se tratar casos de violência doméstica. "O próprio sistema interamericano de direitos humanos já aponta riscos e proíbe o uso de conciliação e mediação nos casos de violência doméstica. Demoramos 30 anos para entender que esse mecanismo não é adequado