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2. RELAÇÕES ENTRE CULTURA E IDENTIDADE

2.3 Práticas socioculturais e representações sociais

Os comportamentos sociais, as manifestações artísticas, as relações com o meio- ambiente e social, as formas de lazer e diversão, as temáticas que colocamos como prioridade em nossas discussões, os hábitos e tradições que trazemos do passado e as novas maneiras de viver e fazer o presente constituem um conjunto de situações que aqui traduzimos como práticas socioculturais e que são representadas pela mídia. Como o rádio está fazendo esta representação na região da fronteira por meio das emissoras locais que estão na web, nos interessa para observar espaços importantes e diferenciados por onde circulam elementos que podem ajudar a pensar esse novo horizonte que se vislumbra na sociedade contemporânea e que envolve a questão cultural.

A língua, considerada um dos patrimônios culturais de um povo e referência de identidade nacional, na região de fronteira, reveste-se de outras características, pois os idiomas se misturam, expressões novas e híbridas despontam para serem empregadas muitas vezes somente naquele contexto. Falantes de línguas diferentes compreendem o idioma do outro. E, geralmente não o falam, retiram dele palavras e expressões, adaptam-nas para a sua língua e o seu cotidiano e fazem fluir a comunicação diária, construindo identificações. E isso se repete dos dois lados da fronteira, produzindo trocas, vendas, negociações, amizades e até casamentos. O estrangeiro da fronteira geopolítica não é o cidadão do outro país que mora naquela faixa vizinha de 150 km. O estrangeiro pode ser aquele que vem de longe, às vezes de dentro de seu próprio país, mas não domina os códigos de comunicação que ali são corriqueiros.

Para exemplificarmos o modo como a questão da língua aparece como elemento da identidade entre os povos fronteiriços, pensemos, por exemplo, no universo de emissoras de rádio brasileiras e argentinas. Embora os locutores falem idiomas diferentes, existem situações na apresentação de programas que as línguas se mesclam, e misturam-se vocábulos

65 dos dois idiomas, sem nenhum prejuízo para a comunicação local. Ao contrário, isso demonstra que aquilo que poderia servir como uma distinção, uma marca da identidade de cada um, já não é mais uno, é divisível, transforma-se pela interação e pelo contato. As marcas lingüísticas de espaços territoriais limítrofes são marcas de identidades fronteiriças que se conectam para formar novas formas de identidade.

Em emissoras de rádio da fronteira essas práticas ganham visibilidade todos os dias, pois é muito comum ouvir locutores usando expressões do país vizinho misturadas às de sua língua materna. Existe uma aceitação natural em relação a isso, resultado até dessa convivência, e não um cerceamento ou protecionismo lingüístico. Afinal, é preciso comunicar-se, entender um ao outro e esse processo provoca quebras e rupturas, mas também faz nascer outros elementos dentro das culturas, que são sinais de uma adaptação ao meio e à cultura do outro. Podemos dizer que é nessa mescla e diversidade que se mostram as marcas das identidades de fronteira.

As práticas socioculturais estabelecidas na fronteira têm uma relação direta com a comunicação; a comunicação constitutiva da cultura a que se refere Martín-Barbero (2003, p.68), ressaltando que “[...] as culturas vivem enquanto se comunicam umas com as outras e esse comunicar-se comporta um denso e arriscado intercâmbio de símbolos e sentidos.” Não podemos pensar as práticas socioculturais sem considerar que reconhecemos nossas identidades quando as confrontamos com as identidades do outro, e quando percebemos e respeitamos nossas diferenças, pois a cultura não é algo isolado, é construção permanente a partir daquilo que apreendemos do meio e das relações que estabelecemos com os outros em sociedade.

Essas relações formam um grande sistema que incluem percepções, incorporadas ao conjunto das práticas que vão se estabelecendo à medida que vamos vivendo. Aquilo que aprendemos com as experiências cotidianas, os comportamentos e o conhecimento adquirido no decorrer da vida forma o habitus, que nos permite um movimento dentro do mundo social em que nos relacionamos, propagamos nossas idéias e produzimos cultura: “O habitus é esse princípio gerador e unificador que retraduz as características intrínsecas e relacionais de uma posição em um estilo de vida unívoco, isto é, em um conjunto unívoco de escolhas de pessoas, de bens e de práticas” (BOURDIEU, 1996, p. 22).

Portanto, as práticas socioculturais estão relacionadas ao habitus, entendido como princípios geradores de práticas distintas e distintivas que se definem no corpo da sociedade e constituem-se diferenças simbólicas, aqui para nós, traduzidas para o cotidiano como

manifestações diferenciadas da cultura. Uma obra de arte, um produto cultural ou midiático reflete não só uma faceta dessas práticas como um universo social com todas as tensões peculiares aos campos e às forças que nele habitam. Assim, um programa radiofônico, por exemplo, carrega em seu conteúdo, em sua linguagem, uma parte do habitus desencadeador de práticas socioculturais dentro de um complexo esquema de formas simbólicas.

A cultura é um espaço importante que pode reproduzir e legitimar as estruturas de dominação, como formas simbólicas capazes de contribuir para que os sujeitos compreendam melhor a realidade e o mundo objetivo. As práticas socioculturais estão intimamente ligadas à sociedade porque nela acontecem e ali se expressam, formam um acervo, guardado na memória das populações e executados no cotidiano das sociedades. Elas são um conjunto de saberes, de regras estabelecidas na convivência diária e circulam na esfera social. Algumas práticas identificam este ou aquele grupo social ou instituições porque são próprias deles ou neles geradas por determinados mecanismos de produção. Mas elas são móveis, mutáveis, vão se difundindo e se transformando no tecido social de acordo com os paradigmas de uma época ou pelas forças do campo social.

Existem neste campo de intersecção muitos agentes impulsionadores dessas práticas e relações objetivas e subjetivas que regem anonimamente a condução do processo. Poderíamos dizer que a questão situa-se mais no subjetivo do que objetivo, porque não há um só fator determinante da natureza ou da duração das práticas na sociedade. É sim um conjunto estrutural e dinâmico, guiado por fatores sociais, políticos, econômicos e culturais capazes de expressar uma dimensão diferenciada das experiências humanas. Mas, a questão central das práticas socioculturais é a sua relação com a vida cotidiana e isto é fundamental para compreender a cultura de uma sociedade e os traços que ela apresenta como comuns na sua forma de organização e de expressão.

Nas formas de apresentação, podemos considerar essas práticas tanto relacionadas ao plano intelectual, estético e artístico como aos seus aspectos utilitários e comportamentais. Sendo assim, podemos falar em práticas relacionadas às mais diversas formas de difusão da arte, como a música e a literatura, e também à gastronomia, à linguagem, às crenças, às histórias de vida, às experiências e aos fazeres que compõem a vida cotidiana. Até mesmo os costumes e os hábitos da população cabem dentro dessas práticas e se materializam de uma forma ou de outra.

67 que estabelece com o mundo que o cerca. O conteúdo do processo representacional está ligado a um tipo de conhecimento e só a relação intersubjetiva entre os sujeitos proporciona a compreensão das representações. Esse processo implica a existência e a relação entre um sujeito, um objeto e outros sujeitos. Se quisermos entender como isso funciona é preciso entender as relações entre esses elementos. Segundo Habermas (1989), o processo de representação passa por uma ação comunicativa que prevê um sujeito, um objeto, um contexto e um tempo histórico. Considerando esse contexto, os saberes e os conhecimentos não têm propriedade individual, mas social, e as representações funcionam como processos, através dos quais o conhecimento é produzido e transformado.

As representações sociais nasceram da idéia original das representações coletivas de Durkheim – para quem a vida é feita de representações sociais – e ganharam forma definida em Moscovici (2003). Para ele, as questões sociais relacionam-se diretamente à difusão das mensagens pelos veículos de comunicação, ligadas a um contingente de elementos que se processam no cotidiano por meio de teorias, ideologias, experiências e vivências.

As representações não devem ser olhadas como um conceito, mas como um fenômeno, e do ponto de vista de Moscovici (2003, p.46), “[...] devem ser vistas como uma maneira específica de compreender e comunicar o que nós já sabemos”. As representações são consideradas como meios de re-criar a realidade, produtos de uma história que se constrói no quotidiano, por meio das relações estabelecidas, das mediações, das idéias e imagens que vão se processando. Trata-se de algo refeito, re-construído e não de algo recém-criado, pois a única realidade disponível é a que foi estruturada pelas gerações passadas.

Essas representações são reproduzidas por nós no mundo exterior e por isso “[...] aquilo que nós criamos, na verdade, é um referencial, uma entidade à qual nós nos referimos, que é distinta de qualquer outra e corresponde a nossa representação dela” (MOSCOVICI, 2003, p.90). Por outro lado, pode-se, partindo desse ponto de vista, chegar ao ponto de dizer que tudo é representação. O senso comum e a ciência produzem representações sociais e de certa forma, a ciência hoje trabalha justamente dentro de uma perspectiva de universo consensual, embora o senso comum também produza representações. As formas como elas são elaboradas ou recriadas pelos meios de comunicação é o que nos interessa de fato.

Os meios de comunicação se apropriam das representações do senso comum e as reelaboram de tal forma que na maior parte das vezes elas se transformam em universo consensual. “Sendo a observação reveladora da existência de um tipo de fenômeno conhecido como representação, com características específicas que o distinguem de outros fenômenos

naturais, é inútil comportar-se como se o fenômeno não existisse” (MOSCOVICI, 2003, p.93).

Enquanto se expressam, as pessoas criam representações, que podem sobreviver, algumas, por algum tempo, e outras se institucionalizar, pois a sociedade precisa de elementos reguladores, precisa de relações relativamente duráveis que dão aos sujeitos status e poder e fornecem para o conjunto social as categorias do pensar e códigos de conduta, os elementos que chamamos de reguladores da ordem e do bem-estar social. Afinal, se não houver algum grau de controle social, não sobrevive a estrutura social. E boa parte desse controle se estabelece pelo campo de forças ali existentes.

Se considerarmos nosso objeto de estudo, ou seja, as emissoras de rádio FM de fronteira que estão na web, elas não escapam a esse processo. Embora façam parte de um universo sem fronteiras como a internet, por serem emissoras locais no canal de FM, estão sempre relacionadas a uma ideologia e a alguma instância de poder, ligada a outras, marcadas pelas relações que a emissora estabelece no contexto em que está inserida, ou seja, relações de ordem política e, principalmente, econômicas. Só depois destas relações é que o ouvinte aparece com algum tipo de influência exercida pelas formas de participação que a emissora lhe concede. Mesmo esta participação se dá de modo vertical, pois é definida pela emissora e propiciada pela tecnologia. Portanto, o poder do ouvinte em relação à emissora ainda está relacionado ao grau de interação que lhe é concedido por ela.

Entretanto, por lhe permitir algum tipo de participação e liberdade de expressão, esse ouvinte cria uma determinada representação da emissora que ouve e isso define audiência e determina o grau de identificação entre ambos. É interessante observar que essas representações circulam num determinado universo de afinidade e produzem uma espécie de círculo invisível onde se dão todas as relações que funciona mais ou menos do seguinte modo: o ouvinte sintoniza determinada emissora porque a programação lhe interessa, porque a música é de seu gosto, porque as informações atendem aos seus interesses e principalmente porque ele pode participar da programação, nem que seja para pedir aquela música que gosta ou ouvir seu nome sendo anunciando pelo locutor. Automaticamente, ele cria um vínculo com a rádio e uma representação dela, produzida pela própria dinâmica da emissora. Quase sempre a representação que o ouvinte tem da rádio é a mesma que a rádio imagina que o ouvinte tenha dela, porque quando isso não acontece, o ouvinte migra para outra freqüência.

69 estilo de comunicar são representações de um universo que está sendo recriado para atingir a um determinado público, tendo sempre como pano de fundo um contexto sociocultural, político e econômico. As representações são as formatações daquilo que a emissora acredita ser importante para a audiência. Mas no momento de assimilação de tudo o que vai para o ar, ela não o faz de modo uniforme. É aí que reside a especificidade das representações sociais. Cada ouvinte cria a sua própria em cima de fatos e imagens sonoras, dependendo de sua experiência pessoal. Do mesmo modo que a emissora extrai do mundo exterior as representações e as recria, também os ouvintes estão continuamente extraindo do senso comum e dos meios a que têm acesso, como o rádio, por exemplo, outras representações. Como se pode notar, esse é um processo muito complexo e que não se dá de uma forma exata, pois está sempre se transformando continuamente.

Embora as pesquisas de audiência em rádio sejam raras, elas são fontes muito importantes para compreender qual é de fato a representação que o ouvinte tem da emissora. As pesquisas são amostras significativas e por isso devem ser consideradas. Mas um feedback valioso é o comportamento que o ouvinte tem em relação à emissora quando participa de sua programação. A tecnologia web permitiu uma interação muito maior entre público e emissora e de modo imediato os produtores têm um retorno sobre aquilo que está indo ao ar. Não que antes da internet essa interação não acontecesse, pois o telefone e as cartas eram rotina, mas hoje esse fluxo se dá com muito mais velocidade, refletindo instantaneamente no fazer radiofônico.

Falávamos antes em instâncias de poder e influência na programação e, por essa ótica, percebemos que o poder do ouvinte ampliou-se pela rapidez com que ocorre essa participação. As representações que ele tem da emissora e as dela em relação a ele cruzam-se de forma considerável porque as práticas associadas a este comportamento aparecem como conteúdo simbólico dentro da programação.

Levando em consideração todas as discussões feitas até aqui em relação à cultura, à identidade e às fronteiras, aprofundamos nossas reflexões neste espaço acerca da comunicação e do rádio de fronteira, o foco principal do nosso estudo.