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A lembrança da vida da gente se guarda em trechos diversos, cada um com seus signo e sentimento, uns com os outros acho que nem não misturam. Contar seguido, alinhavado, só mesmo sendo as coisas de rasa importância... Tem horas antigas que ficaram muito mais perto da gente que outras de recente data.

(Guimarães Rosa)

Non seulement le souvenir ne rend pas compte d’un événement, mais encore ne garantit pas la véracité du souvenir lui -même, toujours susceptible d’être remanié par un souvenir ou un événement ultérieur.

(Michel Neyraut)

Todas as versões do texto denominado “Prólogo” falam sobre a iniciação literária de Carolina de Jesus e de como a escritora toma para si a percepção de que era uma poetisa, acrescentando na versão 2 que essa trajetória teria sido aflorada por sua nova vida na cidade de São Paulo, pois: “As pessoas que vivem em São Paulo, são obrigadas a pensar com intensidade porisso é que o meu cérebro desenvolveu-se (...)”, ou quando diz “Eu ignorava as minhas qualidades poéticas. Nunca esperei que um dia me tornasse poetisa para mim foi uma surpresa”, ou ainda quando diz “São Paulo é uma bolsa elástica, tudo cabe”.

Ela conta que foi nos primeiros anos de educação infantil que aprendeu a tomar gosto pela leitura, embora num primeiro momento tivesse hesitado em ir à escola, o que foi resolvido através da violência psicológica que marca toda sua infância e, consequentemente, todo o texto. Nas entrelinhas desses contos podemos pressentir uma violência socavada, marcada por certa herança de moralidade, marcante no pensamento de Carolina Maria de Jesus. Ela parece reafirmar a necessidade desses mecanismos de violência ao colocá-la como elemento impulsionador para seu processo de aprendizado. O que foi reelaborado com maior força, na adaptação francesa desse texto, Diário de Bitita.

Nas três versões pode-se perceber uma massiva influência de pessoas abastadas e brancas, a quem sua mãe obedecia e nutria admiração, as quais foram selecionadas por Clélia

Pisa da edição de Diário de Bitita, de modo a mostrá-las como caridosas tutoras e incentivadoras no processo educativo da primeira infância de Carolina de Jesus:

Minha mãe era pobre. Dona Maria Leite insistiu com mamãe para enviar-me à escola. Eu fui apenas para averiguar o que era escola. A dona Maria Leite residia na Estação do Chapadão. Visitava a cidade de Sacramento duas vezes ao ano para assistir à sessão espírita em comemoração à data de nascimento do senhor Eurípedes Barsanulfo. Ela dava roupas para as crianças pobre, as roupas e os livros eram novos. Para estimular e nos deixar vaidosos. Se as crianças ricas iam com roupas novas, os pobres também. E não havia complexos. O que eu admirava é que a Dona Maria Leite não auxiliava os brancos, só os pretos, e nos dizia:

_Eu sou francesa. Não tenho culpa da odisseia de vocês; mas eu sou muito rica, auxilio vocês porque tenho dó. Vamos alfabetizá-los para ver o que é que vocês nos revelam: se vão ser tipos sociáveis, e tendo conhecimento poderam desvia-se da delinquência e acatar a retidão. (...) Minha mãe era tímida. E dizia que os negros devem obedecer aos brancos, isto quando os brancos têm sabedoria. Por isso, ela devia enviar-me à escola, para não desgostar a Dona Maria Leite (JESUS, 1986, p.123).

Estes recortes deixam escapar um elemento importante na formação da escritora, que foi a preocupação e incentivo de sua mãe para com seus estudos, independentemente de conselhos “esclarecedores” e valorização do “paternalismo” ou da filantropia das pessoas deste segmento social. Nas palavras da Carolina de Jesus: “Quando você completar sete anos vai entrar na escola para aprender a ler. Os que sabem ler conhecem o mundo, os que não sabem, vê o mundo” (IMS: CMJ Pi, 002 – “Um Brasil”, F. 135).

A partir daí a menina Bitita não parou mais de desejar: “Que inveja eu tinha do Dr. Cunha quando ele lia o jornal. Hei de ler o jornal. E fiquei alegre. Então o saber ler algo importante assim” (idem). E as associações inesperadas não paravam por aí: “Queria ser igual o José Patrocínio47, que ajudou a libertar os nêgros e foi o primeiro homem que comprou o Ford aqui no Brasil”. (IMS: CMJ, Pi, 002 – “Um Brasil”, F. 141).

47 No Rio de Janeiro em 1897 o automóvel já causava furor. José do Patrocínio famoso homem das letras

brasileiras, vivia a se gabar de seu maravilhoso automóvel movido a vapor passeando pelas ruas esburacadas do Rio, causando imensa inveja no compatriota Olavo Bilac. Certa feita, José do Patrocínio resolveu ensinar o amigo a dirigir seu carro, e Olavo Bilac conseguiu arremessá-lo de encontro a uma árvore na Estrada Velha da Tijuca. José do Patrocínio ficou muito chateado, mas Bilac, com uma gargalhada comemorava o fato de ter sido protagonista do primeiro acidente automobilístico no país! Disponível em: <http://www.v8ecia.net.br/artigos/a_historia_do_automovel.htm>

Vale lembrar também que a figura marcante da professora Dona Lanita – jamais citada nos textos publicados anteriormente – era uma mulher negra, como Carolina de Jesus fez questão de registrar:

27 de abril de 1960:

Eu tive uma professora bôa

_ Ela podia se chamar bondade, Inteligência e santa.

Que mulher! Eu achava ela tão bonita. Ela era preta. Dona Lanita. Eu achava a lêtra dela bonita e procurava imita-la.

Quando os alunos faltavam a aula ela ia busca-los em casa e dizia: se você faltar a aula eu vóu mandar uma carta para o expetor vir aqui ele te espeta no garfo. Ele tem um garfo dêste tamanho. Ela abria os braços. Eu ficava com medo. Não faltava as aulas. Ela dava livros para eu ler. A moreninha, Inocência, Escrava Isaura. Dêpois tinha que explicar a historia do livro. E foi por intermédio da minha ilustre e saudosa professora que eu aprendi escrever versos e contos e a gostar de lêr.

Ela dizia: envez de você ficar na esquina você lucra muito mais lendo um livro. Eu nasci na época dos professôres Naturais. E os meus filhos na época dos professôres fantasiado de professores (MAB, “Caderno 20”, F. s/n).

Além de exaltar a figura da professora, fazendo questão de frisar que ela era negra, Carolina de Jesus conta também que a mestra lhe emprestava “bons livros para ler”; dentre esses, ela cita a Bíblia, outro sobre a vida de santa Terezinha e livros escolares, que iam “transferindo-se de irmãos para irmãos” (IMS: CMJ Pi 001, - “Um Brasil para brasileiros”, F. 14). Na versão 1, a escritora diz que foi a professora, Dona Lanita, que lhe emprestou “A escrava Isaura” para leitura, informação extinta da versão 2 e 3, mas rememorada na anotação do diário de 1960, e, modificada na versão publicada como Diário de Bitita, na qual seu primeiro contato com um livro haveria sido feito por intermédio de uma vizinha. A importância dessa professora negra não aparece nas versões publicadas, estando apenas presente na versão 1. Então, parece que ao longo do contato com os seus “incentivadores”, a escritora passou a ser instruída a ressaltar os grandes feitos da cidade de Sacramento e de seus “patrocinadores”, como pode ser consultado nas anotações de seus diários após o encontro com Audálio Dantas, como Perpétua bem analisou (2015).

Entre outros exemplos, cita-se o acréscimo de Pisa que, corrompendo a lógica do original, desloca a passagem em que Carolina de Jesus cita a figura de outro professor fundador do colégio, no lugar de Dona Lanita, à entrada desse importante capítulo: (...) o professor era o senhor Halmilton Wilson, irmão do fundador do Colégio Allan Kardec. Quem

fundou o colégio foi o senhor Eurípedes Barsanulfo (JESUS, 2014, p.125). Este deslocamento realizado pela editora reforça a observação de que havia uma necessidade de demonstrar a influência fundamental desse segmento social na formação da escritora negra, reiterado mais uma vez pela segunda nota de rodapé que acompanha esse acréscimo demonstrando ao leitor francês, inclusive, sua vinculação desse público ao fenômeno Carolina de Jesus: Ce spirite français a connu une grande fortune au Brésil. Se adeptes se comptent par millons48 (JESUS, 1982, p.147).

Na sequência vem a história da contribuição filantrópica da “utilitaríssima Dona Maria Leite”, passagem que não está na versão 1, e que na versão 2 está marcadamente sinalizada com ajustes e confirmações da ortografia, evidenciando uma segunda leitura mais cuidadosa diferente do próprio texto, talvez porque Carolina de Jesus tivesse optado por seguir essa segunda versão e estivesse no ato de preparação da versão 3. Na segunda versão aparecem dois dados intrigantes, o acréscimo da palavra: “esquecer” e a utilização do advérbio latino “sic”, demonstrando assim uma possível preocupação com a elevação da imagem de Dona Maria Leite, uma personagem histórica em Sacramento, reutilizada na publicação:

Quem insistiu com a minha mãe para enviar-me a escola foi a ^utilitarís sima^ Dona Maria Leite Ela residia em ^Chapadão^ e visitava a cidade de ^Sacramento^ uma vez, pór ano. ^Sua^ visita anual, era para assistir a ^s eção^ espírìta em comemoração ao ^aniversário / +esquecer+/ do falecimento do saudoso Eurípedes Barsonulfo. O que eu achava interesante é que a Dona Maria Lêite nos dava ^livros^ nóvos e róupas novas para nos estimular e nos deixar vaidosós. O que eu adimirava é que Dona Maria Lêite, não auxiliaria os brancos +a+ irem para a escola. Auxiliava só os prêtós. ^Para^ nós incentivar, ela nos dizia: Eu gosto dos prêtos: Sabem que eu queria ser preta! E pedia a §a§ a +nós+ para ^+lermos+^ para ela ouvir. Minha mãe era tímida e dizia que os negros devem obedecer aos brancos, isto é, quando o branco tem sabedoria _sic_. por isso ela deveria enviar-me à escola para obedecer a Dona Maria Lêite. (FBN: Caderno 6 - “Poesias e textos autobiográficos”, FTG s/n)

Ademais, a utilização do “sic” por Carolina de Jesus se faz de maneira curiosa dentro desse contexto, pois deixa a impressão de que foi empregada a título de reprovação à submissão da mãe no tocante à obediência ao homem branco. Tanto é que na versão 3 essa passagem foi suprimida:

48 Este espiritualista francês conheceu grande fortuna no Brasil. Seus adeptos contam-se em número de milhões

(...) Fui a escola com a curiósidade tão própria da infância. Para averiguar o que era escola e qual a sua utilidade na nossa vida. Quem insistiu com a minha mãe para enviar- me a escola e qual a sua utilidade foi D. Maria Lêite. Ela, era branca. Eu pensava: É pôr causa de sua pele tão branca que ela se chama D. Maria Leite? Mas, ela era tão carinhosa deveria se chamar D. Maria Santa. Ela residia na estação do Chapadao... (IMS: CMJ, Pi , 001 - “Um Brasil para Brasileiros”, F. 1 e F.2)

Novos itens, entretanto, entram na versão 3 exaltando ainda mais o maternalismo branco que foi tão vital à pobre Bitita, em que sua pele transfigurada no leite vital ao desenvolvimento dos mamíferos. Um certo naturalismo parece envolver essas descrições. Carolina de Jesus, ao fim de sua vida, entrega-se à venalidade que a transportou do lixo ao luxo e, no desespero de ser publicada, teria abdicado de sua própria memória para ser novamente aceita e quem sabe envolvida em novas armadilhas do mercado editorial. Este enredo a escritora não pôde escrever, pois sequer pôde saber da existência da publicação póstuma de Journal de Bitita.

Retornando ao primeiro parágrafo das versões 1, 2 e 3 é interessante notar que, entre uma e outra, o adjetivo poético foi alterado para literário da versão 1, assim como foram feitas correções na acentuação e na paragrafação das palavras. À vista disso, para este estudo, considera-se como sendo uma segunda versão do texto “Prólogo” a que está mais arranjada e apresenta mais pormenores, ampliando os acontecimentos narrados. Ao que parece, a escolha pelo termo “poético” parece estar associada ao desejo de reafirmação e reconhecimento de Carolina de Jesus enquanto escritora, mas este afloramento do passado está combinado com o deslocamento espacial, temporal e corporal da percepção, de tal modo que o lembrar, se souvenir, o “lembrar-se” funciona na poética de resíduos da escritora como o trazer à tona uma percepção mais complexa de si, como se o termo “poético” estivesse mais à altura do que ela se tornou no desenvolvimento de seu trabalho estético, que vai além do termo “literário” que poderia se aplicar a qualquer tipo de escrita.

A seguir, em ambas versões manuscritas, Carolina de Jesus conta a pressão que sofreu quando chegou ao ambiente escolar, suas expectativas e dificuldades ao iniciar os estudos que posteriormente a teriam despertado para o mundo das letras. Ademais, na versão 2, ela ainda acrescenta um episódio de violência psicológica sofrida na escola e considerado por ela como tendo sido necessário para sua elevação intelectual (mantido na versão 3 e na publicação), no qual a professora a humilhou porque, aos 7 anos de idade, ela ainda mamava,

e devido ao seu apelido “Bitita”49, o mesmo que posteriormente estampou a capa do livro, outra jogada de marketing, derivada da terceira versão publicada em Journal de Bitita.

(1)

Eu era indolente. Quando eu faltava a escola a minha professora mandava um aluno ir buscar-me em casa

Ela percebendo que eu não interessava pelos estudos desenhou um homem no quadro negrò. Que trepassava uma menina no tridente E disse-me Carolina, êste homem é o expetór E a criança que não aprender ler até o fim do ano êle espéta no garfo.

No fim do ano êle vem aqui. E eu vóu apressentar-te a êle Aquêle desenho no quadro imprecionóu-me . Eu olhava o desenho , e olhava o livro. Sonhava com o desenho e bradava:

_Mamâe! Olha o espétôr! A mamãe dizia-me: dórme menina! Vocês está delirando. pór _fim, decidi estudar

(2)

Quando entrei na escola fiquei com mêdo dós quadros dós esqueletos humanos que estavam espalhados pélas paredes. Tremia de mêdo o primeiro ano era no período da uma a cinco.

Eu estava com sete anós e ainda mamava.

Quando senti vontade de mamar começei a chórar _Eu quero ir-me embora! Eu quero a mamãe! Eu quero mamar!

Minha saudósa professôra Dona Lonita Solvina perguntou-me:

_Então a senhóra ainda mama?

_Eu gosto de mamar! As alunas sórriam Então a senhóra não têm

vergónha de mamar! _Não tenho!

_A senhóra está ficando mocinha e têm que aprender à

49 Talvez o apelido Bitita advenha do fato de ela mamar até grandinha, pois no interior é comum chamar de

lêr e escrever e não vai ter tempo de mamar pórque necessita preparar as lições. Eu gósto de ser obedecida Estais ouvindo-me Dona Carolina Maria de Jesus. Fiquei furiosa e responde com insôlencia:

_O meu nome é Bitita _O teu nome é Carolina Maria de Jesus!

Era a primeira vez que ouvia pronunciar o meu nome. _Eu não quero êste nome. Vou tralá-la pôr outro

E a professora deu-me Umas reguadas parei de chórar Quando cheguei na minha casa tive nôjo de mamar na minha mãe.

^professora^

Observamos como nesse momento a narrativa apresenta um preparo mais avançado, em que ela cria uma atmosfera de terror ao descrever o espaço escolar, antes de inserir a fala da professora, conduzindo os fatos com gestos semânticos sensoriais: “fiquei com medo” “senti vontade de mamar”, “tive nojo”, etc. Na segunda versão, Carolina de Jesus repassa a seu leitor os recônditos de suas memórias, retrabalhando por meio dessa retórica implícita os valores de defesa dessa outra pedagogia, uma pedagogia da opressão psíquica que favoreceu sua formação mais que “literária”, “poética”.

Em seguida, ela conta como finalmente começou a ler, mas dessa vez os episódios são diferentes embora estejam intercalados na mesma forma sintática como os inicia e os finaliza: na versão 1, a primeira leitura, mais detalhada, é de um anúncio de cinema e, na segunda, mais geral, ela diz que lia nomes de lojas:

(1)

E estudava com assiduidade Trêis mêses depois, eu percibi que já sabia ler.

Era uma quarta _ fêira ao sair da escola eu vi uma tabolêta escrita. Era o reclame de cinema Hoje puro sangue. “ Som mix Exclamei contentíssima! _Eu... já... sei lêr!

Eu ia lendo os nomes das ruas Das farmacias. Ate ´ aquela data, aquelas lêtras nada significativa para mim.

Eu fui correndo pra casa. Entrei rapida como os raios Solares .

Mamãe assustóu-se Interrogóu-me:

_ O que è isto ? Esta ficando Louca!

(2)

E estudava com assidui- dade Três mêses depóis, eu percebi que já sabia ler

Que bom! Senti um contentamento interiór e exterior.

Lia os nomes das lojas. “Casa Brasileira”, de Aimónd Goulart”. Eu fui correndo para

casa. Entrei rápida como os raios solares.

Mamãe assustou-se. _O que é isto? Está ficando louca!

^Lia^ >”< +”+

Mais interessante do que os diferentes episódios para contar o mesmo fato, o que pode ocorrer como um próprio jogo da memória que não se constitui como algo seguro, o que chama atenção é como Carolina de Jesus procura manter uma mesma forma para iniciar e terminar a narração desses acontecimentos, dando em primeiro lugar a informação de que “estudava com assiduidade” e, segundo, como procurou manter um tom narrativo ao reutilizar a frase “entrei rápida como os raios solares”.

Como diria Deleuze e Guattari (1997), a memória em si não delineia o percurso artístico. Portanto, salienta-se que mesmo no caso autobiográfico há um descentramento dos fatos que cedem o lugar prioritário à forma, pois como diria Ricoeur (1983), narra-se para dar ordem ao caos, ou melhor, para criar um simulacro de ordem e ter a sensação de que há algum sentido na vida. E, por mais precário que seja, Carolina de Jesus vê na escritura desse quase memorial um caminho para alcançar a busca desse “sentido”, permeado por lacunas e pela

imaginação, que incorrem no risco da não veracidade que privilegia o viés do olhar, o que favorece a prática da verossimilhança em sua escrita.

De acordo com Antonio Candido em A personagem de ficção uma obra literária só se realiza em toda a sua plenitude quando prima pelo princípio da verossimilhança, ou seja, quando procura convencer o leitor, através de suas personagens, de que tudo o que nela vai escrito pode ser verdade (1976, p.55), sobretudo o romance; este só se realiza plenamente quando comunica aos leitores “a impressão da mais lídima verdade existencial”, por meio “de um ser fictício” (CANDIDO, 1976, p.55).

Neste texto de Carolina de Jesus, assim como noutros, será a “falta da verdade” ou a necessidade de adequação de seus discursos ao intento de seus “predominadores” que irá recriar com verossimilhança uma história mais condigna para si. Assim, é nos próprios textos e nas vozes de outros autores que cercavam a escritora que ela vai traçando teias em sua poética de resíduos como pontos de fuga, materializados em estratégias discursivas e não em fios condutores a atravessar seus leitores de um ponto fixo a outro. Nesse lembrar e escrever, Carolina de Jesus, mesmo sem saber, confirma o que disse o pensador Agostinho, quando trata da questão da memória na temporalidade: “É impróprio notar que os tempos são três: pretérito, presente e futuro. Mas talvez fosse próprio dizer que os tempos fossem três: presente das coisas passadas, presente das [coisas] presentes, e presente das futuras” (AGOSTINHO, 1973, p.249).

Para sair das percepções vividas, não basta evidentemente ter uma memória que convoque somente antigas percepções, nem uma “memória involuntária”50 que acrescente a reminiscência como fator conservante do presente. A memória intervém pouco na arte, mesmo e, sobretudo, em Proust (1987), como nos exemplos suscitados para discutir os limites entre a memória voluntária e involuntária. Toda obra de arte é um monumento, mas como mostra Carolina de Jesus, este não seria um tipo de edifício majestoso em comemoração ao passado; é ele, sim, um bloco de sensações presentes que só devem a si mesmas sua própria conservação, e dão ao acontecimento o composto que o celebra, pois em suas narrativas o ato- monumento não é a memória, mas a fabulação desta.

50 De acordo com Bergson (1999) o que distingue a memória volutária da involuntária é a experiência a -histórica

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