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Processo criativo nos manuscritos do espólio literário de Carolina Maria de Jesus

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Academic year: 2021

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INSTITUTO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM

RAFFAELLA ANDRÉA FERNANDEZ

PROCESSO CRIATIVO NOS MANUSCRITOS DO ESPÓLIO

LITERÁRIO DE CAROLINA MARIA DE JESUS

CAMPINAS

2015

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PROCESSO CRIATIVO NOS MANUSCRITOS DO ESPÓLIO

LITERÁRIO DE CAROLINA MARIA DE JESUS

Tese de doutorado apresentada ao Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas para obtenção do título de Doutora em Teoria e História Literária, na área de Teoria e Crítica Literária.

Orientadora: Prof.ª Dr.ª Vera Maria Chalmers

Este exemplar corresponde à versão final da Tese defendida por Raffaella Andréa Fernandez, orientada pela Prof.ª Dr.ª Vera Maria Chalmers.

CAMPINAS, SP

2015

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Ficha catalográfica

Universidade Estadual de Campinas Biblioteca do Instituto de Estudos da Linguagem

Crisllene Queiroz Custódio - CRB 8/8624

Fernandez, Raffaella Andréa,

F391p FerProcesso criativo nos manuscritos do espólio literário de Carolina Maria de Jesus / Raffaella Andréa Fernandez. – Campinas, SP : [s.n.], 2015.

FerOrientador: Vera Maria Chalmers.

FerTese (doutorado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Estudos da Linguagem.

Fer1. Jesus, Carolina Maria de, 1914-1977 - Manuscritos. 2. Jesus, Carolina Maria de, 1914-1977 - Crítica e interpretação. 3. Poesia brasileira - Escritores negros. 4. Criação (Literária, artística, etc.). 5. Marginalidade social na

literatura. 6. Periferias. I. Chalmers, Vera Maria,1941-. II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Estudos da Linguagem. III. Título.

Informações para Biblioteca Digital

Título em outro idioma: Creative process in the literary of Carolina Maria de Jesus's literary

assets

Palavras-chave em inglês:

Jesus, Carolina Maria de, 1914-1977 - Manuscripts

Jesus, Carolina Maria de, 1914-1977 - Criticism and interpretation Brazilian poetry - Black authors

Creation (Literary, artistic, etc.) Social marginality, in literature Inner cities

Área de concentração: Teoria e Crítica Literária Titulação: Doutora em Teoria e História Literária Banca examinadora:

Marcos Antonio de Moraes Mário Augusto Medeiros da Silva Mirhiane Mendes de Abreu

Therezinha Apparecida Porto Ancona Lopez Vera Maria Chalmers

Data de defesa: 31-08-2015

Programa de Pós-Graduação: Teoria e História Literária

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Dedico essa pesquisa à memória de Carolina Maria de Jesus.

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AGRADECIMENTOS

Em primeiro lugar devo agradecer a agência de fomento CNPq pelo financiamento de todo o trabalho em solo nacional, que possibilitou o desenvolvimento e a dedicação exclusiva à pesquisa desde a graduação;

Agradeço a Capes/PSDE pelo fomento que viabilizou parte fundamental da pesquisa realizada em solo internacional;

Agradeço ao auxílio Faepex por fomentar atividades desenvolvidas no “Centenário Carolina Maria de Jesus” em Portugal;

Agradeço especialmente à professora Vera Maria Chalmers, por ter assumido o encargo da orientação pela confiança e liberdade intelectual a mim dispensada nos anos desse trabalho;

Toda minha gratidão, in memoriam, à coorientadora Catherine Viollet, pelo carinho e atenção a mim dedicados durante o período de estágio de doutorado em Paris, pela ajuda na consulta dos manuscritos de Carolina de Jesus e sugestões bibliográficas preciosas;

Também a Phillipe Lejeune, pela acolhida e pelo profundo debate junto aos membros do “Séminaire Genèse et Autobiographie” no Institut des Textes et Manuscrits Modernes (ITEM/CNRS) alocado na École Normale Supérieure de Paris;

Um agradecimento especial vai para a família Jesus, principalmente a Vera Eunice de JESUS Lima que muito me tem ajudado nesses anos de pesquisa da obra de sua mãe, pelos depoimentos, pela disponibilização de originais e, sobretudo, pela confiança, carinho e partilha que me aproximam ainda mais de Carolina de Jesus;

Não poderia deixar de agradecer aos protagonistas de primeira hora, onde tudo começou, isto é, a Unesp de Marília com a presença de meu amigo poeta e filósofo Milton Mello, que me presenteou com uma publicação rara de Quarto de despejo, encontrada por ele no lixo de uma biblioteca e imediatamente entregou a mim porque na ocasião lia e pensava em estudar a obra Cidade de Deus, de Paulo Lins;

Agradeço minha primeira orientadora Célia Tolentino que acreditou no envio do primeiro projeto proposto ao CNPq na árida área da Sociologia da Literatura pouco aceito nos cursos de Ciências Sociais;

Agradeço atenciosamente aos Professores Sérgio Barcellos e Valéria Rosito por compartilharem dados, descobertas e inquietações mobilizadas pelos arquivos de Carolina de Jesus ao longo de nossas investigações;

Agradeço em imenso às professoras Vania Chaves e Isabel Lousada, assim como a bibliotecária Maria Coutinho pelo convite de montagem de uma exposição e diversas

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Agradeço as leituras, abordagens e sugestões sobre o aparato genético do professor Carlos Pittella Leite;

Agradeço especialmente ao professor Mário Augusto Medeiros por todo seu tempo a mim dispensado para conversas precisas e interesses comuns que envolveram não somente os estudos sobre a obra de Carolina de Jesus, mas toda a literatura marginal periférica em sua fundamental existência e criatividade;

Agradeço a Mirhiane Mendes de Abreu pela inspiração intelectual, leitura atenta, precisa e paciente, além de seu apoio incondicional;

Não poderia esquecer de deixar meu muito obrigado aos professores Telê Ancona, Marcos de Moraes e às alunas Ângela Grillo e Tatiana Longo pela acolhida junto ao IEB num primeiro momento dessa pesquisa, quando ainda buscava suporte para conhecer os debates em torno da Crítica Genética;

Agradeço ao Museu Afro Brasil na figura de Romilda Silva e Izabel Monteiro, bibliotecárias queridas e carolineanas de fé, gestoras da biblioteca Carolina Maria de Jesus;

Agradeço ao Arquivo Público de Sacramento, a Fundação Biblioteca Nacional e ao Instituto Moreira Salles por viabilizarem minhas pesquisas nesses espaços públicos;

Agradeço ao poeta Oswaldo de Camargo pelas conversas que me situaram não apenas no mundo da literatura negra, em São Paulo, como também seu encontro com a obra e pessoa de Carolina Maria de Jesus;

Agradeço o Allan da Rosa por suas poéticas do revide, pelas discussões e pelos nós que colou em minhas orelhas de coelha;

Agradeço minha amiga poeta Dinha que possibilitou a realização de um sonho com a parceria para a publicação de Onde estaes felicidade?, de Carolina Maria de Jesus. Nesse sentido, não poderia deixar de manifestar minha gratidão pela intervenção da escritora Cidinha da Silva junto à Fundação Cultural Palmares;

Toda minha gratidão mais profunda a minha mestra de todas as horas e em todas as instâncias Josefina Neves Mello, pela leitura, discussão e revisão atenta deste trabalho, companheirismo e ensinamentos para a vida;

Agradeço aos alunos do Haiti que chegaram em 2012 na Unicamp, e que para terminarem seus estudos pós-terremoto em seu país, fizeram do meu encontro com a língua francesa, e cultura crioula, uma matéria viva para além dos livros;

Não poderia deixar de agradecer a todos os funcionários e amigos da UNICAMP que souberam dispor suas mãos, ombros e abraços nos mais diversos tipos de apoio por mim solicitado;

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Agradeço a todos os meus companheiros carolinianos queridos, cujos nomes não cito porque, de tão extensa, a lista não caberia nesta folha de papel;

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RESUMO

Esta tese consiste na organização cartográfica e analítica do processo criativo das narrativas esparsas, recolhidas no espólio literário de Carolina Maria de Jesus. Partindo da evidência de que a escritora criou uma “poética de resíduos”, procurou-se delinear os percursos e as escolhas estabelecidas por ela ao longo de seus manuscritos, a fim de decifrar as estratégias de sua forma de invenção. A natureza de seus escritos é híbrida e fragmentada e, como tal, pede uma postura quase arqueológica de escavação. Assim, para chegar ao desvendamento de sua poética de resíduos, optou-se por um olhar mais detido para as narrativas que comporiam seu livro de contos. A autobiografia serve de base para suas criações literárias; dessa maneira a escritora apoia-se sobre si mesma, reconstituindo sua memória e seu cotidiano para produzir no leitor um dado efeito. Carolina de Jesus quer que ele seja afetado pela concretude de sua escritura. No decorrer das análises foram cartografados os trajetos (de vaivém, de fuga, de abandono e retorno) do “eu” fraturado que percorre resquícios das próprias lembranças, misturadas às suas experiências de leitura, com fatos de sua vida imediata, no afã da construção de sua obra. Uma extensa produção composta pelo encontro entre o “de-si-mesma” de dentro e o “de-si-“de-si-mesma” de fora, na movimentação de suas várias faces, compondo o que se deve considerar a elaboração de sua “identidade narrativa”. Por iminência compreendemos algo que está a ponto de acontecer, um vir-a-ser que na poética empreendida por Carolina de Jesus está expresso através de resíduos de discursos literários e não literários, apresentando-nos uma nova voz a romper cânones; ao mesmo tempo em que emblematiza um novo acontecimento na história de nossas letras: a assim denominada, por seus escritores provindos das periferias paulistanas, “Literatura marginal periférica”.

Palavras-chave: Carolina Maria de Jesus; Literatura Marginal Periférica; Manuscritos; Poética de resíduos; Processo criativo.

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RÉSUMÉ

Cette thèse vise à organiser cartographiquement et analytiquement le processus créatif des narrations éparses, recueillies dans le Patrimoine de Carolina Maria de Jesus. Compte tenu de l’évidence selon laquelle l’auteure a créé une ‘poétique du résidu’, nous chercherons à délimiter son parcour et ses choix établis tout au long de ses manuscrits afin de mettre en évidence les contenus de sa forme d’invention. La nature de ses écrits est hybride et fragmentée, et de ce fait demande une posture quasi archéologique d’excavation. Pour parvenir au dévoilement de la poésie de résidus, nous avons choisi de nous focaliser sur les narrations que l’auteure elle-même considérait comme des textes qui pourraient composer son livre de contes. L’autobiographie lui sert de base pour ses créations littéraires; de cette manière, l’auteure s’appuie sur elle même, en reconstruisant sa mémoire et son quotidien en vue d’impressionner le lecteur. Carolina de Jesus veut que le lecteur sente quelque chose à travers la concrétude de son écriture. Tout au long de nos analyses, nous avons démontré les trajectoires (de va-et-vient, de fuite, d’abandon et de retour) du moi fracturé qui a suivi les vestiges de ses souvenirs, mélangées avec ses expériences de lecture et les faits de sa vie immédiate dans l’ardeur de la construction de son œuvre. Cette œuvre, constituée de la rencontre entre le moi et le surmoi, dans ses multiples formes, constitue ce qui peut être appelé son « identité narrative ». Nous comprenons l'imminence d'un événement proche de s'accomplir, une réalisation qui, dans la poétique employée par Carolina de Jesus, s'exprime à travers le résidu d'un mélange de discours littéraire et non-littéraire, et qui nous apporte une voix nouvelle apte à rompre les canons usuels ; et qui en même temps emblématise un événement nouveau dans l'histoire de notre écriture : la « littérature marginale périphérique », comme elle est dénommée par les écrivains en provenance de la périphérie de la ville de São Paulo.

Mots-clés: Carolina Maria de Jesus; Littérature Marginal Périphérique; Poétique du résidus; Processus créatif.

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ABSTRACT

This thesis consists in a cartographic and analytical organization of the creative process of the sparse narratives collected in the assets of Carolina Maria de Jesus. Starting from the evidence that the writer created a “poetic of residues” we aimed to outline the paths and choices established by her along the manuscripts in order to decipher her creative process. The nature of her writing is hybrid and fragmented, which almost calls for an archaeological process of excavation. Therefore to unveil her poetic we closely investigate the narratives that would take part in her book of short stories. The autobiography is the basis for her literary creations, the author leaning on herself to reconstitute her memories and everyday life in order to produce on the reader a given effect. Carolina de Jesus wants the reader to be affected by the concreteness of her writing. During the analyzes we drew a map of the trajectories (the shuttles, the fugues, the desertions and the regresses) of the fractured “self” that travels through the remnants of one’s own memories mixed with one’s reading experiences and with facts of one’s immediate life, in the effort of building the work of art. Her work is composed by the encounter between her “self from inside” and her “self from outside”, considering the circulations of her various faces – what ends up constructing that which we can name her “narrative identity”. By imminence we will comprehend something that is about to happen, a devenir that in the poetic of Carolina de Jesus is expressed through the residues of literary and non-literary discourses, presenting a new voice breaking canons; as well as serving as an emblem of a new event in the history of the Brazilian literature: one that the writers from the peripheries of S. Paulo call “marginal literature”.

Keywords: Carolina Maria de Jesus; Creative Process; Manuscripts; Marginal Literature; Poetic of Residues.

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SUMÁRIO

Notas introdutórias ...015

I – PROCESSO CRIATIVO DE UMA POÉTICA DE RESÍDUOS...029

III.1 Narrativas da iminência e identidade narrativa...030

III.2 Refração e frestas identitárias ...051

III.3 Organicidade e fissura ...064

II – GESTOS E GENEALOGIA: DIFERENTES ESTADOS DE UM TEXTO ...085

II.1 Manuscritos dispersos versus palimpsestos de narrativas... ...086

II.2 Percursos de preâmbulos ...096

II.3 Prólogo(s) para “Cliris” ...114

II.4 Prólogo para “Provérbios” ...133

III – TRAJETO DA VIDA E DOS DOCUMENTOS ...153

III.1 Percurso de uma catadora de palavras na recolha de sentidos ...154

III.2 Fontes dos originais...162

III.3 “Diario 20”, um journal de travail ...213

III.4 Histórico das edições ...221

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IV.1 A escrita como devir ...250

IV.2 Nas pegadas do devir-trapeiro da literatura ...256

IV.3 Vida autobiografada como imperfeição ou (hiper)feição de Si ...267

IV.4 O canto triste: a escrita como ofício ou do devir-escritora...272

À guisa de conclusão ...284

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Notas introdutórias

Agradeço ao destino por ter-me feito nascer pobre. A pobreza foi-me uma amiga benfazeja; ensinou-me o preço verdadeiro dos bens úteis à vida, que sem ela não teria conhecido. Evitando-me o peso do luxo, devotou-me à arte e à beleza.

(Anatole France, 1844-1924)

Tua vida é uma página da história/ Do teu eu, vivido e experimentado.../ Se tua visão, acaso, é notória, é que há muito tu tens caminhado...

(Auta de Souza, 1876-1901)

Como a maioria dos pesquisadores que se dedicam à obra de Carolina Maria de Jesus (1914/15/16-1977), o primeiro livro a que tive acesso foi Quarto de despejo: diário de uma favelada. Li essa obra numa tarde de domingo, no meu quarto, na moradia estudantil da Unesp de Marília, onde cursei Ciências Socais de 1999 a 2004. O desejo de saber o que iria ocorrer ao final do testemunho daquela escritora favelada acompanhou minha leitura com a mesma intensidade e curiosidade de compreender as surpreendentes passagens que evocavam lirismo, mescladas à linguagem comezinha falada na favela.

Capturada por Carolina de Jesus, naquele dia estava decidido meu projeto de pesquisa de iniciação científica, meses depois financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), e que foi o início de uma construtiva obsessão, movida pelo fascínio que conduziu meus passos até aqui. Durante o trabalho de conclusão “Em todo e nenhum lugar: vozes da marginalidade”, defendido em 2002 no curso em Ciências Sociais da UNESP de Marília, orientado pela professora de Sociologia Célia A. F. Tolentino, foram observadas as relações entre Quarto de despejo: diário de uma favelada e o livro Esmeralda: por que não dancei, relato da ex-menina de rua de Esmeralda do Carmo Ortiz, a fim de compreender como se davam as condições sociais experienciadas por essas duas mulheres negras e pobres, que viveram à margem da cidade de São Paulo durante os cinquenta anos que as separavam. Além da observação de como se davam os mecanismos de perpetuação da marginalidade, mudando apenas as personagens e mantendo os cenários da pobreza e do racismo, pudemos notar a força literária dos escritos de Carolina de Jesus. Tal

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constatação me conduziu rumo ao aprofundamento dessas características, no curso de Literatura e Vida Social, na UNESP de Assis, onde foi desenvolvida a dissertação de mestrado “Carolina Maria de Jesus, uma poética de resíduos” defendida em 2006, sob a orientação de Tania de Macedo e Heloisa Costa Milton.

Na dissertação foi identificada a multiplicidade de discursos que compõem Quarto de despejo. Realizamos um levantamento da trajetória da vida de Carolina de Jesus, observando possíveis imbricamentos existentes entre as vozes de escritora, narradora e protagonista, e apresentamos um panorama de sua fortuna crítica. A partir das ideias de “desterritorialização”, “rizoma”, livro-radícula” e “literatura menor”, “linhas de fuga” e “devir” (devir-fome), desenvolvidos pelos fundadores da Esquizoanálise, Gilles Deleuze e Félix Guattari, ao longo do conjunto das seis obras intituladas Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia I e II (1995-1997), e ainda de outras, como Kafka: por uma literatura menor (1977) e Crítica e clínica (1997), pude analisar os gestos estruturais da “literatura menor” empreendida pela escritora.

Foram delineados os aspectos que, no sentido da reciclagem de discursos por ela empreendida, dão à obra de Carolina de Jesus características de uma bricolagem discursiva. O “diário de uma favelada” está montado sobre restos de discursos, assim como as habitações da favela são construídas com os restos da cidade. Nos escritos de Carolina de Jesus encontra-se uma forma análoga à de um barraco, que aglomera material-argumentos temporários, frase-arquitetura imprecisa, sempre em mutação geográfico-discursiva. Sua escritura1 tortuosa se revela na expressão mais fiel da dura rotina que marca o cotidiano de trabalho de uma mulher negra, que percorre incansavelmente as ruas de São Paulo em busca dos restos que vão garantir a ela as mínimas condições de vida, para suprir tanto a si quanto a seus filhos. No entanto, mesmo sendo uma escritura obscura, ela foi trabalhada com recursos do lirismo dos românticos que, na busca de uma perfeição formal parnasiana, confunde-se com a linguagem das radionovelas, do romance policial, da fábula e da crônica. Carolina de Jesus inventa a língua da fome, da escassez, do descarte, fazendo seu texto valer por si mesmo.

1 Neste trabalho, parte-se da ideia de escritura como aquela que traz um dado novo para a escrita, pois

desenvolve a criação, retratando novas línguas e elementos terceiros na criação de história e de palavra, que variam entre o oral e a língua escrita. Para Barthes (2002), a escritura requer para si o clamor artístico, enquanto a escrita visa o rigor linguístico, sendo ela transitiva predispondo -se mais a falar sobre algo. O conteúdo não importa tanto quanto a forma que cria o conteúdo como uma série de elementos linguísticos cronologicamente situados.

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Em toda a obra de Carolina de Jesus, sobretudo em seus manuscritos inéditos, pode-se acompanhar uma tensão discursiva que encaminha o leitor para o que denominamos uma poética de resíduos, oriunda dessa condição de marginalidade de onde ela escrevia. Mescla elementos notáveis, se atentarmos para passagens realistas em atrito com aquelas mais propriamente românticas, revelando as múltiplas facetas da escritora. Ela mesma afirma que é preciso criar um instante de devaneio para que aconteça a fruição de sua escrita (JESUS, 1960, p.59-60). Em contraposição às misérias cotidianas, encontramos momentos em que ela fala das valsas vienenses que escutava em seu barraco, da beleza do céu estrelado que ela queria usar para fazer um vestido, do voo do colibri, como se a poesia pudesse transportá-la para um lugar diferente, longe do odor fétido da favela e da lama que a cercava. Carolina de Jesus era, antes, uma sonhadora quixotesca. Algumas vezes é poética na própria miséria, em sua forma mais agressiva. Por exemplo, quando escreve que a “fome é amarela” e que os “favelados são corvos” sobrevivendo de restos, à beira do rio Tietê. A partir da plasticidade dessas imagens, sua obra pode ser vista como expressão significativa da re-apresentação de uma realidade expressa por meio do “povo que faltava” (DELEUZE e GUATTARI, 2004). A escritora se dispõe a significar e vai, ela mesma, retalhando sentidos pré-moldados, fornecendo condições de possibilidade de expressão para o lugar social da paisagem, expondo a semiótica dinâmica e particular das margens.

Assim, durante os estudos desenvolvidos no mestrado, perfilaram-se algumas evidências daquela poética de resíduos que vieram dar origem à tese de doutoramento, orientada por Vera Maria Chalmers. Nesse novo trabalho, então, objetiva-se cartografar os processos criativos das narrativas de Carolina de Jesus, mediante a aglomeração de gêneros literários, não literários e/ou quase literários, sobretudo pelos rastros de autobiografia que marcam seus escritos. Foram realizadas a descrição e uma breve análise de romances (Dr. Silvio, A Felizarda, Rita, Diários de Marta ou a Mulher diabólica), outras mais detidas sobre as narrativas esparsas que foram recolhidas de dentro do espólio literário, tais como as versões de Prólogo, Carta sem endereço, O canto triste, alguns provébios, O poeta, O lenhador, narrativas sem título, pequenos projetos literários denominados por ela de “Humorismos”, trechos de suas canções, partes inéditas dos diários e de poemas, alguns trechos das obras publicadas. Todo esse material foi selecionado a fim de demonstrar eivadas relações entre uns e outros na composição de sua poética de resíduos.

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Como se sabe, hoje, os textos publicados de Carolina de Jesus foram solapados por correções, supressões, ajustes e delimitações, de modo que foram necessárias diversas visitas aos arquivos e às instituições custodiadoras que guardam seus originais (manuscritos, datiloscrito, microfilmados), até ser possível apreender as diferenças entre o texto publicado e seus originais. Todo o material está dividido entre o Museu Afro Brasil (MAB), em São Paulo, a Biblioteca Nacional (BN) e o Instituto Moreira Salles (IMS), no estado do Rio de Janeiro, o Arquivo Público Municipal Cônego Hermógenes Cassimiro de Araújo Brunswick (APMS), em Sacramento, e o Acervo de Escritores Mineiros (AEM), em Belo Horizonte, no estado de Minas Gerais. A partir daí, foi empreendida uma busca pelo conhecimento da totalidade do material e uma tentativa de reconstituição mínima da integridade do acervo deixado pela escritora, para então selecionar e analisar algumas de suas narrativas, a partir do espólio literário Carolina Maria de Jesus.

Durante os caminhos teóricos e analíticos perseguidos na exege de tal corpus não se perdeu de vista a concepção de totalidade sugerida por Arlertte Farge em Le gôut de l’archive. A autora atenta para as dificuldades da materialidade do arquivo, pois segundo ela o pesquisador não pode se esquecer de que está diante do sujeito de papel. Assim, ela problematiza o real e a falsa totalidade do pesquisador diante do arquivo, pois o olhar é construído através dos mecanismos de preservação que incidem sobre a obra, podendo afetar a disposição do processo criativo e, consequentemente, da interpretação do arquivo. O contato com o material palpável estrutura o olhar e escreve um novo arquivo, sendo os fundos de arquivos “um mar” no qual o leitor mergulha, e pode vir a se afogar, sobretudo se não observar as lacunas que dizem muito sobre o conjunto de uma obra.

Para aperfeiçoar e preencher diversas lacunas metodológicas sobre as técnicas do estudo genético dessa obra foi realizado um estágio doutoral com uma bolsa do Programa de Doutorado Sanduíche no Exterior (PDSE), financiada pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), durante o período de nove meses, junto ao seminário “Genèse et Autobiographie” no Institute de Textes et Manuscrits Modernes (ITEM), realizado anualmente na École Normale Supérieure de Paris, anteriormente coordenado por Catherine Viollet, coorientadora desse estágio, e por Phillippe Lejeune, o estudioso da autobiografia, referência na França e exterior.

O período de estágio em Paris representou um momento importante nessa pesquisa, pois após entrevista com as jornalistas Clélia Pisa, Maryvonne Lapouge e com a

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editora Anne-Marie Métaillé, elas doaram cópias da edição de dois cadernos de Carolina de Jesus – que nos anos de 1970 a escritora havia deixado com essas jornalistas. Esses cadernos contêm anotações do trabalho de tradução realizado por Régine Valbert e estabelecido por Métaillié, que deram origem ao Journal de Bitita publicado em 1982, ocasião em que recebeu diversos prêmios. As duas versões publicadas no Brasil são resultado da tradução dessa versão francesa do livro, publicado primeiramente na França. Portanto, o resgate desse material2 permitiu novas possibilidades de leitura, pesquisas no domínio da crítica genética e da tradução, e que poderá vir a ser objeto de uma publicação mais próxima do projeto literário da escritora.

Em geral, os trabalhos sobre Carolina de Jesus tendem a valorizar sua obra como um testemunho da favela, quer dizer, como sendo a verdadeira voz do “povo”; mas o trabalho individual de sua escrita permanece sem atenção. Nesse estudo, portanto, ao procurar cartografar suas narrativas, buscando compreender seus processos de criação, não somente como uma expressão simbólica de indivíduos marginalizados, mas, sobretudo, como criação artística, busca-se jogar luz sobre sua atividade de escritora, com toda a complexidade que isso representa. Por outro lado, ao cartografar as narrativas, busca-se compreender os mecanismos de associação entre realidade e ficção, estabelecida nas elisões que a escritora faz entre as dimensões literária e autobiográfica.

Na pesquisa para a dissertação já havia ficado demonstrado que a escrita de Carolina de Jesus não é relevante apenas pelo fato de contrariar a gramática. Se for considerada somente a sua capacidade de traduzir a voz própria de um tal modo de expressar e enxergar seu mundo, perdem-se as possibilidades de encontrar uma língua literária em sua obra, aquela que forneceu a matéria-prima para sua escrita. E este é o objetivo da tese.

Seguindo a acepção crítica de Deleuze e Guattari (1977), o conjunto dos manuscritos de Carolina de Jesus pode representar a “voz do povo que faltava”, uma voz que vai mostrar que, para além dos deslizes gramaticais, há uma realidade testemunhada da favela, calcada numa língua literária que se constitui matéria-prima para sua escritura, pois revela

2 O material será doado para o Arquivo de História Social Edgar Leuenroth (AEL) da UNICAMP

http://www.ael.ifch.unicamp.br/site_ael/, uma das maiores instituições da América Latina destinada à preservação, conservação e difusão de documentos relativos à história do Brasil. Em 2010, Mário Augusto Medeiros da Silva, pesquisador e atual docente do IFCH, entregou ao AEL os microfilmes de jornais e originais de Carolina de Jesus, que estão na Biblioteca Nacional, como parte de seu doutorado financiado pela FAPESP. Assim, a junção de tais arquivos permite-nos criar um fundo Carolina Maria de Jesus, a fim de preservar a memória da escritora e facilitar novas pesquisas sobre sua obra.

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devires de um tipo de escrita marginal, o devir-chiffonnier (devir-trapeiro), empreendido em e no processamento de sua narrativa, sua “poética de resíduos”.

Vale lembrar que Carolina de Jesus fez crítica ao desenvolvimentismo em voga e aos emblemas da urbanização acelerada em seu tempo histórico; no entanto, ao reciclar os tempos-espaços de sua obra, percebe-se que ela hibridiza com indiferenciação, de certo modo obedecendo aos ditames do mercado consumidor, fundado no valor de troca e não no valor de uso, de acordo com a teoria sobre a lógica do Capital (MARX, 1987), no equivalente geral do tempo especular, narcísico. A expectativa do progresso não tem a ver com o progresso, mas com a expectativa do fazer. A escritora estava abalada pelas promessas não cumpridas dos políticos e de suas promessas, mas ela conhece e escolhe o agir. E, assim, em seu agir-escritura, ela age através da força dessa sua própria escritura.

Em A educação pela noite, Antonio Candido (1987) comenta que até a década de 1930 predominou no Brasil uma percepção de que éramos um país novo, estávamos embebidos em um pensamento de que a história iria promover a transformação. Após a década de trinta, entretanto, começava-se a perceber o Brasil como um país subdesenvolvido, jovem e atrasado. E é este o país que a escritora das favelas irá mostrar ao revelar as mazelas, não apenas as da vida do pobre nas grandes cidades, mas o contraponto da modernização, expresso também na pobreza do meio rural. Daí, a temática “campo versus cidade” latente em seus escritos, tais como o “Prólogo” ou “Onde estaes felicidade?”. Mesmo de maneira ambivalente, Carolina de Jesus não conseguia definir uma escolha pelo melhor local para viver, talvez por indecisão porque gostava dos dois, ou ainda contaminada por um discurso de direita. Essa ambivalência em relação à pobreza relacionada ao êxodo rural reaparece em seus textos, em muitos momentos. Carolina de Jesus afirma ideais de uma reforma agrária, desejando o retorno ou o envio dos pobres de São Paulo para o meio rural, propondo um contra-êxodo associado ao discurso da UDN3, que era, inclusive, liderado por Carlos Lacerda, a quem ela dirigia diversas críticas. Além disso, o partido era opositor do populismo varguista. Mais um contrassenso, uma vez que Getúlio Vargas foi, não raras vezes, almejado e elevado pela escritora, como podemos ler neste poema publicado em 17 de junho de 1950

3 Quando no final de 1944 começaram a surgir no Brasil movimentos políticos que exigiam o fim da ditadura e o

retorno da democracia e liberdades civis, pressionado, Getúlio Vargas antecipa o decreto de um novo código eleitoral que garantia as manifestações e reivindicações políticas. Ent re outros, surgiu em abril de 1945 a União Democrática Nacional (UDN), um grupo liberal de oposição formado pelas oligarquias estaduais de extrema direita e de orientação conservadora, que propunha como reforma o contra-êxodo rural associado aos interesses econômicos norte-americanos.

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para o jornal “O defensor” e reescrito por ela em seu diário de 15/07/1955 – 28/07/1955 (BN, Caderno 1, 47, GAV1, 01):

É orgulho da nossa gente É opinião Brasileira Que temos um presidente Que honra a nóssa Bandeira Getulio heroico e potente Grande alma Nacional Devia ser presidente Desde o tempo de catedral Getulio é competente Para guiar a Nação Foi um grande presidente Deixo minha impressão Nas minhas orações peço Ao bom Deus, justo e potente Para ter breve regresso

O Getulio a presidência (JESUS, 2014, p.54-55).

No entanto, cinco anos após esse registro, lemos nos seguintes textos, onde a escritora tece uma reflexão sobre a desigualdade e a reforma agrária. São dois fólios transcritos de um dos cadernos guardados no Museu de Sacramento, de localização: APMS 05.02.09, que equivale ao Caderno 9 da Fundação Biblioteca Nacional (MS-565(5):

Em um pais igual ao nosso com terras inesplorada. Onde o pobre diz: não posso viver! E ser uma alma penada! Com tantas terras nêste onde o homem nunca penetrou. E o povo vive infeliz comendo pão que o diabo amassou. O diabo é o capitalista que só visa enriquecer. Alma mediocre egoísta que deixa o pobre sofrer. Com terras para agricultura para abastecer o mundo inteiro. E o povo vive na penura. Nem sei o que pensar do brasileiro. É, que o pobre quer plantar! Mas o pobre não tem terra. Quando o povo começa a reclamar o governo promove uma guerra prefere empurra os nosso filhos para lutar no campo de batalha. Enviam esses coitados para o exílio. Mas, não dá terra para o homem que trabalha.

O que nos falta é cultura Vontade e dinamismo

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O que o nosso governo procura É conduzir o povo ao habismo É fraca a nossa alimentação Não sentimos o seu efêito É igual o chefe da nação Mediocre depôis de elêito

Na campanha eleitoral Nos promete vida deçente Mas depois é um animal

Que nos ataca com unha e dente Político quer enriquecer

Para não mais trabalhar Quando o mandato vençer Deixa o cargo vai viajar!

(APMS 05.02.09, Peças teatrais: “Oh Se eu soubesse” e “A senhora perdeu o direito”, Fólio s/n).

Estes textos foram escritos no caderno que contém as entradas do diário de 17/07/60 e tem duas peças teatrais “Oh Se eu soubesse” e “A senhora perdeu o direito”. Sabemos que, diferente dos cadernos de 1955, com o poema em homenagem a Getúlio Vargas4, esse caderno não estaria entre aqueles que foram entregues a Audálio Dantas, quando da preparação de Quarto de despejo, tanto pelo conteúdo predominantemente literário das peças de teatro, quanto pelo fato de os originais por não terem sido entregues por ele à FBN, em 2011. Essas constatações relacionadas aos diferentes conteúdos expostos nos dois poemas e na reflexão de Carolina de Jesus sobre a reforma agrária apresentam, uma vez mais, a escritora que, embora ambígua, estava atenta aos fatos históricos que fatalmente recaem sobre os desvalidos. No entanto, segue a dúvida: estaria a escritora se valendo dos mecanismos midiáticos para ganhar visibilidade em 1955, e depois, mais amadurecida, demonstraria seu desencanto com a política brasileira em 1960?

Mas o que Carolina de Jesus faz com sua escritura seria um inventário ou uma invenção? Como foi possível constatar na pesquisa da tese, seus textos não se apresentam

4 Getúlio Vargas morreu em 24 de agosto de 1954, e em 1955 ela, ambiguamente, reza para ele voltar a ser

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apenas sob o fluxo do discurso oral, havendo diversas modificações ao longo das várias versões reescritas, o que lhes imputa um caráter ficcional e nos permite retornar a eles através do investimento dessas transformações (rasuras, confirmações, supressões, substituições e complementos).

No entanto, mesmo estando os documentos bastante dispersos, ainda assim, pudemos cartografar um breve dossiê. Se um maior número de teses cujos autores houvessem estudado os originais de Carolina de Jesus, haveria maior produtividade sobre sua obra, já que o contato com o conjunto dos escritos permite ver diversas possibilidades de estudos e de publicação mediante a presença dos vários gêneros experienciados pela escritora. Mas, se pensarmos que o conjunto dos escritos de Carolina de Jesus, em geral, parece ser adaptado para um público imaginado de antemão por ela, talvez se possa inferir que seu processo criativo revela mais do seu pretenso destinatário do que da própria escritora. Mas qual seria o teor dos textos e a quem se dirigem, ou seja, quem seria seu público-alvo?

Em sua obra, os locais esquecidos são reconhecidos como necessidade. Ela pinta o que deseja rever, efetuando uma reapresentação voltada para o local do esquecimento, gerando uma impressão desse porvir como escritura. Esse movimento mostra a existência de uma iminência estética, muitas vezes contraditória, por sua tendência híbrida. Assim, emergindo do limbo como nos arquivos mortos, par de chose, os arquivos de Carolina de Jesus expõem sua iminência poética na medida em que compõem a reinvenção de um modo de existência e subjetividade particulares.

Buscamos seus arquivos para conhecê-los, sobretudo. Assim, fomos encontrar para decodificar textos que fossem próximos ao gênero conto, mas nos perdemos entre teias e labirintos de textos refratados. Como mostra Derrida (2008), o arquivo é fragmentação per se, um deslocamento contínuo, e dele podemos depreender uma ideia de tempo explosivo. O autor nos leva a refletir junto a Carolina de Jesus, e perguntar: como ler aquilo que não cessa de ser escrito? Essa travessia incessante e acidentada, esse devir-obra, ou seja, o arquivo da obra que ainda não aconteceu, que vem e continua vindo, reiterado, acontecimento inacabado das narrativas inéditas, estas com as quais tivemos contato. O arquivo, então, se coloca para nós como iminência: um presente que não cessa de acontecer, um porvir obra completa de uma artista, aquilo que não aconteceu.

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De certo modo, a disponibilização do espólio literário de Carolina de Jesus gera uma memória poética, já que esses documentos permitem novos desvendamentos quando interpretados e quase poetizados por nós, leitores-autores, sobretudo ao serem vislumbrados pela crítica literária. Passa-se a olhar esse passado em movimento ou em aberto, de posse desse presente agora partilhado. Como vimos, o registro passa a narrar, pois a memória não é mera depositária de lembranças, mas é aquela ferramenta que nos permite começar com graça outro passado. Praticando uma re-interiorização do vivido e uma inauguração do ser através da palavra, a linguagem caroliniana instaura-se pela capacidade de memória, um voltar ao ponto de partida para dar princípio à vida: “no princípio era o verbo”, e se há verbo é porque há um princípio, um discurso.

Carolina de Jesus parece arquivar um futuro, desejando ficar para a posteridade, sobretudo em seus “Prólogo(s)”, sempre recomeçando um novo passado à prise d’image; assim, vemos em sua obra o presente se fazendo eternidade peremptória. Seu processo criativo é um projeto disparador de ideias e reflexões, mas também de busca do embelezamento e de encontros com a literatura.

A criação de estratégias cartográficas para acessar e experimentar o arquivo da escritora possibilitou-nos uma experiência estética inusitada, pois essas coisas-textos afetaram nosso corpo ao mobilizar formas de pensar um tipo de arquivo refratado, no qual os textos se desencontravam e se reencontravam em cadernos diferentes o tempo todo. A cada dia suscitando mais e mais questões dessas memórias encapsuladas, à margem, e repletas de germes de uma memória viva, ocultada nos mais variados esconderijos, mas à espera de ativação.

Os arquivos são fragmentos, tanto como as características imanentes a essas narrativas fraturadas (e da infração que elas denotam), de modo tal que os deciframentos e a aproximação do pesquisador com esses arquivos também é fragmentada, pois a aproximação daquele que interpreta resulta em retalhos de interpretações entre esses arquivos e a realidade. Arquivo é uma construção da realidade a partir daquele que o trabalha. Sendo assim, foi necessário delimitar o estudo para não nos perdermos no labirinto caroliniano. Um dos desafios foi pensar em como legitimar a escolha das palavras-chave para analisar partes desse arquivo. De modo que essa prática se torna, em si mesma, a geração de uma autoridade justificada como elemento necessário para organizar o passado.

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Através do exame desses arquivos foi possível observar como o fazer uma obra se diferencia do agir numa obra. Agir nos vem como um diagrama de objetos que resultam de forças iminentes em nosso corpo. Deslocamento de cartografia do presente que dá sentido às coisas; é o sujeito em ação agindo sobre seu próprio destino. O fazer conjuga-se como executar, desempenhar; como gesto traçado no mapa das intenções de até onde seu autor quer chegar; e, por mais criativo que seja, tudo permanece o mesmo, pois cada dado converge para a economia da obra vicejada por seu autor-compositor. O agir é inato, é o desinteressado tecer, como Bispo do Rosário tecia incessantemente seus estandartes dentro de sua cela-forte. Ele não objetivava fazer uma obra, apenas agia. Os manuscritos de Carolina de Jesus se aproximam desse lugar tácito, impensado, como em Bispo do Rosário: a escritura como alimento. A escritura como vida, como a própria existência; não apenas como trajeto, mas sim como instauração de um lugar. Uma vida-escrita ou por escrito repleta de uma potência impessoal emaranhada de técnicas de si e de suas infindas variações.

Do mesmo modo como Bispo do Rosário bordava a letra que faltava, Carolina de Jesus desenha a escritura que faltava – ambos materializando a palavra ao primar pelo significante –, inscrevendo seus corpos em suas obras. A borda do furo de Bispo do Rosário é a economia de cada linha miraculosamente preenchida por Carolina de Jesus5. Partindo do mesmo ponto de vista da subjetividade, que se move dentro dos limites marcados por sua condição marginal, está a “corpoeticidade” presente na expressão poética de Miró da Muribeca, um ex-morador de rua, não por acaso também negro e pobre, e nas declamações de seus performáticos poemas urbanos pelas ruas do centro de Recife (PE). Essa “corpoeticidade” vem marcada por três substantivos como dialéticas ressignificadas pelo poeta em forma de “poesia no corpo, corpo na poesia e cidade na poesia”, como analisa Rosário (2014)6.

Os manuscritos de Carolina de Jesus permitiram à pesquisadora evidenciar lacunas e diálogos transversais que se entrecruzam e se atravessam deixando pistas para iluminar os caminhos percorridos pela escritora. Pôde-se ver como a memória vai emergindo das lacunas, evidenciando abismos, fraturas, de modo que, partindo de questionamentos

5 Ver “Bispo e Jesus: poética de sucatas”, de R. FERNANDEZ (2010), apresentado no XI Encontro da

ABRALIC – Internacionalização do Regional, de 10 a 12 de outubro de 2012, na UEPB-UFCG, Campina Grande (PB). Anais da ABRALIC (2012), vol. 1, n.º 1 [ISSN 2317-157X]

6 Ver ROSÁRIO, André Telles. Corpoeticidade e a literatura performática do poeta Miró de Muribeca. Rio de

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levantados nos documentos rasurados de Carolina de Jesus, interpretam-se seus interstícios (a liberdade dos falares) e consideram-se as incertezas da memória como possíveis verdades. A não linearidade dos escritos permite adentrar por qualquer fio tecido desses textos que, a exemplo dos textos de Benjamin (2010)7, representa uma fonte mais além do testemunho da artista.

A visualização mesma do palimpsesto, do ato de riscar e escrever de novo, já se apresenta como um traço identificatório do fluxo contínuo da memória.

A “poeta da favela”, como Carolina de Jesus gostava de se autointitular, praticava em seus escritos as mais diversas formas de gêneros textuais, literários e não literários. Portanto, em seu acervo, encontramos diários, peças teatrais, contos, fábulas, romances, crônicas, cartas, provérbios, poemas; também compôs dois long-plays (LP)8 com samba, marcha-rancho, xote, canção e uma valsinha. Carolina de Jesus tocava violão, recitava seus poemas para políticos e celebridades ou mesmo pelas ruas de São Paulo, com o saco de catadora de lixo às costas. Também, encontramos registro da criação de um “vestido elétrico”, no qual ela colocava lâmpadas que acendiam; e ainda de refazer, a cada ano, uma fantasia de carnaval com penas de galinha d’angola, para contrapor às plumas e paetês das belas vedetes, que desfilavam com toda pompa nas famosas avenidas.

Todas essas criações, experimentadas em seu devir-artista, emitem certo ruído, pois estão num embate fronteiriço umas com as outras, sobretudo quando colocados diante de seus 56 cadernos com mais de cinco mil páginas manuscritas autográfos e datiloscritas9.

No dia 27 de maio de 1957, ela diz no jornal Última Hora: “Minha diversão predileta: ouvir o rádio. Gosto de novelas do Wálter (Gerhard) Forster e música de (Antonio) Rago. Quando não estou escrevendo ligo o rádio e escuto. O rádio tem me ensinado muita coisa”. Carolina de Jesus excursiona pelas artes em geral demonstrando sua versatilidade. Seu aprendizado autodidata é também em boa parte auditivo, reiterando as influências de sua

7 Ver, por exemplo, a maneira como Benjamin escreve seu texto “Sur le concepte d’histoire”. In: Ouevres III.

Paris: Gallimard, 2010, p.427-443.

8 Um dos discos foi gravado pela RCA Victor e outro foi colocado em prova pela Fermata (cf. JESUS, 1996,

p.297).

9 MEIHY, José Carlos Sebe B. Contos das ruas. Semialfabetizada, Carolina Maria de Jesus vendeu mais de um

milhão de livros só no exterior. Revista de História da Biblioteca Nacional ISSN-1808-4001. (05/05/2010). Disponível em: http://www.revistadehistoria.com.br/secao/leituras/conto -das-ruas. Acesso em: 13/02/2011.

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formação cultural com o avô griô (griot)10 e suas intermináveis conversas pelas ruas e praças de Sacramento (MG), com seus netos e vizinhos.

Iniciamos esta tese discutindo o processo criativo de Carolina de Jesus, observando como ocorrem as manifestações literárias e não literárias em algumas narrativas dessa escritora. O agenciamento de fragmentos discursivos mobilizados nos textos nos levam até processos de reconstrução identitária.

Assim, a partir das considerações de Ricoeur sobre a “identidade narrativa”, na perspectiva teórica de Willemart, sobre o papel do scriptor11 foram analisadas as interferências e influências que incidiram sobre sua escritura, que pode também ser considerada uma poética à cata ou da catação, permeada por intervensões em suas publicações. Mesmo que, no caso desses fotogramas aqui analisados, não poderem ser considerados manuscuscritos, uma vez que a escritora não usou o fotograma como um recurso para externar sua criação.

A segunda parte do estudo deu ênfase à genealogia dos textos que apresentam diversas versões, a fim de compreender como as modificações incidem sobre o conteúdo e as formas dessas versões, de acordo com os métodos da Crítica genética francesa, discutindo algumas das consequências das formas de criação da escritura de Carolina de Jesus. Foi observado em que medida as narrativas dispersas, repetidas ou inacabadas aparecem na coleta dos fragmentos de discursos da escritora em seu devir-trapeira de literatura-reciclagem que atuam tanto na sua vida quanto na sua escrita.

10 Segundo Houaiss (2012, p.1.484), Griô, no Sudão e em parte da zona guineense, poeta, cantor e músico

ambulante pertencente a uma casta especial que, além de cronis ta e detentor da tradição oral do grupo, freq. exerce atribuições mágico-religiosas. (...). No Brasil, o Mestre Griô é o detentor de conhecimentos transmitidos por gerações através da linguagem oral, sendo o indivíduo que leva em sua língua todo os saberes , teóricos e práticos, que compõem as tradições de um povo; ele é a memória viva da família. Contando estórias e fazendo história, o griô é o ser ancestral que valoriza o poder da palavra, da oralidade, das ligações afetivas dentro da comunidade. Etimologia: do fr. Griot (1688), de guiriot ‘músico ambulante da África Negra’. Para saber mais, buscar em: LIMA, T.; NASCIMENTO, I.; ALVEAL, C. (Orgs.). Griots: culturas africanas. Natal: EDUFRN, 2012.

11 Segundo Willemart (1999), o scriptor ocuparia o espaço entre a mão que começa um projeto de escritura até

chegar ao autor que assina o manuscrito final. Como os livros, publicados, de Carolina de Jesus jamais passaram pelo crivo de seu jugalmento (no processo de edição), neste estudo considera-se a presença do

scriptor como fio condutor para análise do processo criativo de uma obra em porvir, tendo sido realizadas, para

esta análise, algumas as intersecções com as edições de autoria duvidável, não do ponto de vista de quem escreveu, mas de seus editores que decidiram as versões finais das obras que foram publicadas.

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Depois dessa imersão do leitor no universo da escrita caroliniana, desconhecida para aqueles que não leram seus originais, partimos para uma apresentação do “Trajeto dos manuscritos e da vida”, dedicado a contar a história de sua vida em conjunção com a trajetória de seus manuscritos, narrada em seus textos, mas também através de fontes como jornais, revistas, artigos, como se pode acompanhar em “Percursos de uma catadora de palavras na recolha de sentidos”. Em “As fontes dos manuscritos”, procura-se realizar um mapeamento dos manuscritos de Carolina de Jesus, bem como dos estudos referentes a eles; pensamos ser necessária essa visão geral dos textos esparsos na colaboração a possíveis pesquisas sobre o assunto. Assim, estabelecemos um catálogo geral de todos os originais encontrados. Na segunda parte, apresenta-se um levantamento sobre “Histórico de publicações” e a “Recepção da obra”, pontos importantes para se pensar os movimentos de seu processo criativo, mas também as nuances entre um escritor marginal e um de centro.

Finalmente, chega-se a uma explanação do gênero textual que sustenta seu processo escritural: a autobiografia como fio condutor de sua criação. Pelas pegadas do devir-trapeiro da literatura de Carolina de Jesus identifica-se o lugar da escritura autobiográfica tanto na vertente memorialista quanto na diarística, ambas experimentadas na composição da escritora. Os traços autobiográficos, salutares aos desvendamentos da imperfeição e (hiper)feição de si, corroboram para uma gestação do seu devir-escritora. Isto levando em conta que sua obra, de um modo muito particular, como veremos adiante, se nos apresenta como uma narrativa poética.

Desse modo, pretende-se contribuir para as pesquisas sobre Carolina de Jesus e seu espólio literário, universo rico e com ainda muito a ser explorado em suas fontes originais, revelando-se como um delicado tesouro inexplorado do patrimônio brasileiro escrito.

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Capítulo I

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I.1 Narrativas da iminência e identidade narrativa

Ce que nous écrivons est nécessairemet le même, Et le devenir de ce qui est le même est, en son Recommencement, d’une richesse infinie.

(Maurice Blanchot)

Repetir, repetir – até ficar diferente Repetir é um dom do estilo.

(Manuel de Barros)

O crítico literário francês e teórico da literatura Gérard Genette, em Palimpsestos: a literatura de segunda mão (1982) observou que o objeto da poética não é o texto em si, mas o que ele denominou como a arquitextualidade do texto, definida como o conjunto das categorias gerais ou transcendentes como, por exemplo, os tipos de discurso, modos de enunciação, gêneros literários, etc. Em seu conceito de poética o autor observa a transtextualidade ou transcendência textual do texto, e diz que todo texto coloca-se em relação com outro; por isso, mantém, manifesta ou oculta, alguma semelhança com outros que o antecederam. Metaforicamente, este autor se refere à criação literária como uma prática análoga à dos antigos pergaminhos em cujo couro eram gravadas as inscrições, e estas eram sobrepostas após a raspagem do texto anterior. Segundo ele, a inscrição que foi raspada para que outra fosse escrita não é, de fato, de todo apagada, de modo que se pode lê-la por transparência, ou seja, lê-se “o antigo sob o novo”. Assim, no sentido figurado, são palimpsestos aquelas obras que fazem referência a uma obra anterior, ou que dela decorre por “transformação ou imitação”. (GENETTE, 1982)

É este gesto estrutural, figurado na prática do palimpsesto que promove a escritura de Carolina de Jesus em seu processo criativo, decodificado por meio de diferentes versões de suas narrativas, algumas manuscritas, e constituídas de diversas variantes discursivas literárias e não literárias, como um centão12 a compor sua poética de resíduos. A escritora também faz

12 CENTÃO: Composição poética ou musical, de origem greco -latina, formada por uma “manta de retalhos” (do

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palimpsesto de sua própria obra, tanto aproveitando ideias e textos alheios quanto reelaborando seus textos anteriores. Vejamos exemplos do primeiro caso, em que a escritora se vale de um poema de Olavo Bilac com a intenção de parodiá-lo. Embora nas descrições da FBN tenhamos encontrado a indicação de que no Caderno 6-MS-565(4) está um texto com dezesseis páginas com dados autobiográficos, quando esses originais são analisados com a lupa de um geneticista nota-se a existência de uma sorte de hibridismo literário, exercitado de maneira orgânica por Carolina de Jesus. Tem-se nesse caderno, assim como nos demais que compõem o MS-565(4) e MS-565(5), toda sorte de textos em um mesmo caderno: poemas, pensamentos, provérbios, narrativas curtas, quadrinhas, peças teatrais, romance, cartas, memórias autobiográficas e diário.

Na passagem escolhida, observa-se que após narrar uma empreitada diária de seu cotidiano difícil, a escritora seleciona um trecho do poema “A pátria”13 de Olavo Bilac para parafrasear sua rotina nada venturosa, ironizando o ideário ufanista (da primeira República) presente na poesia pedagógica do poeta. Este tipo de recolha do discurso alheio, como fonte inspiradora para o pastiche14, é um dos movimentos de captura de caráter crítico encontrado em sua escrita. Noutro momento, em Quarto de despejo, Carolina de Jesus parafraseia Casimiro de Abreu, autor bastante comentado por ela em suas rememorações, devido ao impacto que lhe casou, por ter sido ele o primeiro poeta que ela conheceu.

autor. É condição fundamental que o centão reconstitua os elementos dispersos dos quais parte até obter uma nova composição, com um novo sentido. Pode-se aproximar este conceito da ideia de bricolagem. Os poemas homéricos e virgilianos deram origem a muitos centões, sobretudo a partir da Era Cristã. Na Renascença italiana, Dante e Petrarca também inspiraram centões. O poema “Antologia”, de Manuel Bandeira, é um centão feito de versos seus. Bibliografia: F. Ermini: Il Centone di Proba e la poesia centonaria latina (1909); O. Delepierre e Van de Weyer: Revue analytique des ouvrages écrits en centons depuis les temps anciens jusqu’au

XIX siècle (Genève, 1968; 1ª ed., Londres, 1868); R. Herzog: Die Bibelepik der lateinischen Spätantik e, Tomo

I (1975).

13 A PÁTRIA – Ama, com fé e orgulho, a terra em que nasceste! / Criança! não verás nenhum país como este! /

Olha que céu! que mar! que rios! que floresta! / A Natureza, aqui, perpetuamente em festa, / É um seio de mãe a transbordar carinhos. / Vê que vida há no chão! vê que vida há nos ninhos, / Que se balançam no ar, entre os ramos inquietos! / Vê que luz, que calor, que multidão de insetos! / Vê que grande extensão de matas, onde impera / Fecunda e luminosa, a eterna primavera! // Boa terra! jamais negou a quem trabalha / O pão que mata a fome, o teto que agasalha... // Quem com o seu suor a fecunda e umedece, / Vê pago o seu esforço, e é feliz, e enriquece! // Criança! não verás país nenhum como este: / imita na grandeza a terra em que nasceste!

14 Segundo a teorização de Gérard Genette, em Palimpsestes, o pastiche é apontado como um recurso

transtextual, classificando-se como uma forma de hipertexto uma vez que se trata de um texto que obedece a uma lógica derivacional face a outro que lhe é anterior (o hipotexto), estabelecendo com o texto matriz relações de imitação.

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Contemplava extasiada o céu cor de anil. E eu fiquei compreendendo que eu adoro o meu Brasil. O meu olhar posou nos arvoredos que existe no inicio da rua Pedro Vicente. As folhas movia-se. Pensei: elas estão aplaudindo este meu gesto de amor a minha Patria . [...]. Toquei o carrinho e fui buscar mais papeis. A Vera ia sorrindo. E eu pensei no Casemiro de Abreu, que disse: “Ri criança. A vida é bela”. Só se a vida era boa naquele tempo. Porque agora a época está apropriada para dizer: Chora criança. A vida é amarga (JESUS, 1960, p.36).

O palimpsesto como acontecimento em sua própria obra aparece nas várias maneiras, como os originais sofrem algum tipo de transformação: diversas versões de um mesmo texto, sobreposição de trechos colados sobre e acima de outros; rasuras, isto é, que em si já inferem sobre o texto, sendo elas correções e acréscimos feitos a lápis e com canetas de diferentes cores.

Neste caso as rasuras podem também estar no plano dos mecanismos do autodidatismo, uma vez que ela recorre a seus antigos escritos para retificar e formalizar em seu gesto de scriptor, a correção de palavras, ideias, inadequações semânticas, de acordo com os acertos descobertos em suas leituras, inclusive, dos dicionários que lhe foram ofertados por estudantes e escritores. Entretando, em termos de um percurso genético, rasurar não está no plano da correção stricto sensu, pois rasurar está num plano em que não cabe o certo ou errado, apenas no caso do erro evidente de uma palavra mal-empregada. A rasura é a tranformação de tudo, sendo ela a entrada em uma nova entrada. A artista está no campo em que para ela vale tudo, então ele acrescenta, transpõe e substitui ao bel-prazer.

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Documento 1: Documento 01: Fac-símile. Notação: Localização: FBN-MS-565 (5) Localização: APMS 04.02.13 Análise documentária:

APMS – Caderno autógrafo a grafite, papel branco amarelecido, escrita no anverso e reaproveitamento de cada espaço livre do papel, capa dura, acabamento costurado com lombada danificada, folhas soltas e mutiladas, apresentando sinais de fungo. Dimensões: 17 x 23 cm; 222 páginas; F. s/n. Rasuras a grafite, ao correr da pena ou em leitura posterior, indicam dois momentos da escritura, sendo a segunda marcada por confirmações da ortografia.

FBN – Coleção Vera Eunice de Jesus Lima; microfilme identificado como “Miscelânea” (2a parte); Caderno 10.

Classificação de gênero:

Fólio pertencente ao “Diário 33” (24/12/1960 a 24/01/1961), datado de 25 de janeiro de 1961. O manuscrito refrente compõem-se de: texto autobiográfico com partes da 2a versão de “Diário de Bitita”, diário e poemas.

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Transcrição do trecho:

(...)

Todos os favelados estão/ magros. É deficiência alimentar/ falta d água. Olhando aque/

las crianças raquíticas/ pensei nos versos de Olavo/ Bilac/

Criança ama a terra que/ nacêste/ Não veras no mundo , pais igual a êste

Eu estava com dez anos quando li êste verso// e concordei com o poeta. Naquela epoca não existia favela. Não existia fome. Os preços dos generos de primeira necessidade era ao alcance de todos (...)

A máquina literária da escritora favelada se ergue de sob os escombros de um lirismo beletrista, que considera o belo como o próprio da arte, assim como o fazem os sambistas; recordemos que ela também era uma compositora de sambas, fazia parte dessa fração do povo que produz arte nas franjas da sociedade e, através dela, expressa sua condição social. Aquilo que, muitas vezes, é denominado “estética da fome”, “literatura marginal” ou “literatura periférica”, para nós pode ser entendido como uma poética de resíduos, uma reciclagem literária ao modo de um bricoleur15 que vai colando, no seu texto, pedaços de

15 Texto eivado de ligações teóricas que procura revelar a poética de resíduos (aglomeração de discursos ou pode

ser um recurso) de Carolina de Jesus tendo como eixo a bricolage, desde “As nascentes” de Levi-Strauss e depois vem sendo transpostas; e a bricolagem como uma apropriação que se move na maior liberdade porque conserva, transfere e muda campos. Ao analisar Macunaíma, Gilda de Mello Souza observa que esta obra não foi construída a partir da mimesis, e sim “a partir da combinação de uma infinidade de textos pré-existentes, elaborados pela tradição oral ou escrita, popular ou erudita, européia ou brasileira” (p.10). Em seguida a estudiosa estabelece relação entre o bricoleur de Levi-Strauss e o processo de criação dessa obra, dizendo: “O processo talvez se aproximasse mais da bricolage, tal como a descreve Lévi-Strauss, e isso também já foi lembrado pela crítica. O bricoleur procura realmente a sua matéria-prima entre os destroços de velhos sistemas. No entanto, seu gesto é norteado por um objetivo lúdico, por uma sensibilidade passiva, e esta se submete sobretudo ao jogo das formas. Diante do elenco de detritos que tem sempre à mão, o bricoleur se abandona a uma triagem paciente, escolhendo ou rejeitando os elementos, conforme a cor, o formato, a luminosidade ou o arabesco de uma superfície. A figura que irá compor em seguida, combinando a infinidade de fragmentos de que dispõe, poderá ser muito bela, mas, como respeita as imposições da matéria aproveitada, é caprichosa, cheia de idas e vindas, de rupturas, e não revela nenhum projeto. É impossível inscrever neste horizonte raso de acasos, onde o sentido emerge e se extingue s eguindo a vida breve das formas, o livro intencional e cheio de ressonâncias de Mário de Andrade. Mais do que na técnica do mosaico ou no exercício da bricolage, é no processo criador da música popular que se deverá, a meu ver, procurar o modelo compositiv o de Macunaíma. (SOUZA, p.11). ## Rapsódia (Macunaíma). Chamie comenta que Macunaíma é uma fábula de fábulas ou um “discurso de discursos”. A sua organização compositiva o demonstra. Mário de Andrade coletou lendas, contos

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discursos alheios, procurando uma aproximação com essa ‘clássica’, linguagem entendida como “arma” crítica, ela vai colando retalhos ou restos de ideias e de formas em seus experimentos de escrita. Uma alquimia muitas vezes venenosa para a crítica de linhagem mais tradicionalista, que privilegia os ditames do cânone, ou um antídoto entusiástico para as aberturas críticas, sobretudo os estudos pós-colonialistas16, de gênero ou raciais. Nesta pesquisa, mais do que buscar alinhamento junto a posturas teóricas – envolvida na avalanche de papéis desmembrados de seu espólio – procurou-se compreender a composição da escritora, sua dinâmica, seu modus operandi.

Em Carolina de Jesus ocorre um processo de escritura que gera um efeito de iminência nas narrativas, isto é, um presente que não cessa de acontecer, daí os traços autobiográficos marcantes dentro desses textos a embaralhar os elementos narrados. Nesse sentido estamos de acordo com o primeiro estudioso a se deter na leitura e disseminação desses manuscritos:

Em conjunto, os escritos deixados somam-se em cerca de quatro mil páginas manuscritas, cuidadosamente recolhidas por ela própria (...). O volume, contudo, é muita coisa até para profissionais da escrita. Se é verdade que isto interessa, sob muitos pontos de vista, para pessoas preocupadas com a história cultural brasileira, a produção de Carolina releva-se como um monumento pelo menos intrigante (MEIHY, 1996, p.22).

Assim, no processo criativo das narrativas da escritora, estas aparecem marcadas por fragmentos que contribuem para a elaboração da recolha e sobreposição dos retalhos, nesse caso, dos “fatos”. Este procedimento é uma característica da escritura dos diários, isto é, a insistência de um presente que acontece sem cessar, revivificado através da memória, uma forma de iminência transbordante e transformadora do eu em constante decodificação e mutação. Nesses textos não há uma história de si em acontecimentos cristalizados, mas o empreendimento de uma escritura que se refaz o tempo todo, em um trabalho autodidático, no qual a obra, munida da linguagem do relato e de alguns aspectos da linguagem ficcional, permite em seu entremeio a convivência de toda sorte de gêneros e discursos.

populares, romances, etc. do vasto repertório brasileiro. Respeitou a integridade prosódica de cada um deles (CHAMIE, 1972, p.72-73).

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