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5 A PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO NO CAPITALISMO CONTEMPORÂNEO SOB A ANÁLISE DAS CATEGORIAS DA CRÍTICA MARXIANA

5.5 Precarização sem fronteiras

Historicamente, as formas precárias de trabalho têm se desenvolvido na periferia do sistema de modo muito mais amplo do que nos países de capitalismo avançado. Pelo menos foi essa a percepção quando observadas as condições dos trabalhadores dos países centrais, sob a vigência do boom econômico nos trinta anos que se seguiram ao término da Segunda Guerra. A ampliação de regras protetivas ao trabalho, o alargamento de políticas sociais e o crescimento da massa salarial sinalizavam uma condição de mais “segurança” social para essa

parcela do proletariado, enquanto nas bordas da periferia persistia o drama da instabilidade, da informalidade e do desemprego.

O capitalismo é movido por contradições estruturalmente insanáveis e encontra-se em permanente transformação para enfrentar, mesmo que paliativamente, os efeitos provocados por seu metabolismo. Assim, como na sociedade burguesa tudo que é sólido se evapora no ar (MARX; ENGELS, 2003), essa condição de relativa estabilidade do proletariado nos países centrais também se esvaiu, tornando-se um passado tendencialmente irrecuperável. Junto com a mundialização do capital, todas as portas que guardavam alguma forma regulatória de proteção ao trabalho foram derrubadas.

O esgotamento do binômio fordista/keynesiano trouxe uma realidade bem diferente daquela vivenciada nos anos de ascensão capitalista. O cenário vivenciado desde fins da década de 1970, e intensificado depois da crise de 2008/2009, tem sido o de ataque ao trabalho em escala mundial. Com a elevação dos índices de desemprego a partir da crise de 2008, foi dado o combustível necessário para que “reformas” trabalhistas em todos os continentes se intensificassem. Essas alterações nas legislações tiveram como direção central a disseminação de formas “flexíveis” de trabalho. Com a acentuação e o aprofundamento das contradições geradas pela crise, os capitais globais exigem cada vez de forma mais incisiva o desmonte das normas protetoras do trabalho. Conforme argumenta Rosso (2017, p. 127): “Períodos de crise constituem momentos durante os quais as empresas e os governos testam medidas de reorganização do trabalho”.

No cenário do colapso econômico da crise estrutural, essa reorganização do trabalho se traduz em uma ofensiva a qualquer conquista dos trabalhadores e ao ataque sistemático a seus organismos políticos. A todo instante e em várias partes do mundo, os trabalhadores são fustigados por novos aparatos jurídicos que visam primordialmente retirar direitos e conquistas, impondo legislações draconianas70 contra o trabalho.

As reformas trabalhistas, executadas em todo o mundo, incidem exatamente na dimensão assalariada do trabalho, cuja lógica é regida pela diminuição dos custos. Desde o pico da crise de 2008, mais de 13 programas de ajustes fiscais, com reflexos diretos na legislação trabalhista, foram executados somente na Europa. Alguns países passaram por mais de um ajuste, como Grécia, Letônia e Chipre (MUSTO, 2016). Na Europa, a “Troika”, ou

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Já em 1995, o jornal Financial Time publicou matéria comentando as [até então] novas legislações trabalhistas, que Mészáros republicou: “Ontem, os magistrados decretaram unanimemente que os empregadores estão legalmente autorizados a reter o aumento no pagamento de empregados que se recusarem a assinar contratos pessoais que abolem os seus direitos negociados pelos sindicatos” (2002, p. 287). No Brasil, a recente aprovação da Reforma Trabalhista introduziu no escopo de seus dispositivos a prevalência do negociado sobre o legislado.

seja, a união entre o Banco Central Europeu, o Fundo Monetário Internacional e a Comissão Europeia, tem imposto um receituário baseado na crescente deterioração da proteção social dos assalariados, bem como no aumento dos níveis de exploração e arrochos fiscais que garantam a acumulação dos grupos rentistas da burguesia. Além dos efeitos da crise e do ataque neoliberal que continua a devorar o que ainda resta do velho Welfare State, verifica-se o aumento da taxa de desempregados na Europa.

De acordo com Musto:

De 2007 a 2014, o desemprego passou de 8,4% para 26,5% na Grécia; de 8,2% para 24,5% na Espanha; de 6,1% para 12,7% na Itália; e de 9,1% para 14,1% em Portugal. Em 2014, a falta de trabalho para uma geração inteira de jovens alcançou níveis epidêmicos: 24,1% na França; 34,7% em Portugal; 42,7% na Itália; 52,4% na Grécia; e 53,2% na Espanha. (2016, p. 134).

Sob a condução dos interesses financeiros globais e dos grandes monopólios do setor produtivo, a Europa tem experimentado uma ofensiva aos trabalhadores, com múltiplas formas de regressão nos níveis de proteção social. O conjunto dessas transformações tem levado a um acirramento da concorrência entre os trabalhadores, carreando a emergência da xenofobia do fascismo e a disseminação do ódio. Em várias nações do “Velho Continente”, os efeitos mais perversos da crise fizeram germinar as condições para que partidos declaradamente xenófobos e nacionalistas recebessem apoio de parte significativa da população (MUSTO, 2016).

A piora acentuada na condição de vida da população europeia parece sinalizar que “o casamento entre o capitalismo e a democracia está próximo do divórcio” (ŽIŽEK, 2011). Tanto a França como a Itália, países que historicamente contaram com importante base de apoio do operariado, passaram a ser alicerces de sustentação de grupos políticos neofascistas. Nos Balcãs, esse fenômeno se repete ainda mais perigosamente. Diante dessa conjuntura econômica e política, formou-se um quadro social marcado pela exasperação de tensões sociais, pelo agravamento nas condições de vida e pela ofensiva contra imigrantes.

No que se refere à condição do trabalhador da Europa71, segundo análise de Carvalho, Holanda e Veloso (2012), o crescimento das formas de precarização, tomadas a partir do

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Ao pensarmos nas multiplicidades de formas concretas em que a precarização do trabalho se expressa e nas distintas realidades em que se desenvolve, é oportuno evidenciar algumas particularidades dos países nórdicos. De acordo com Carvalho, Holanda e Veloso (2012, p. 29), esses países possuem sistemas de proteção social mais amplos e uma base econômica sólida; a dinâmica do mercado de trabalho tem colocado a questão do emprego precário como uma expressão limitada “e a percepção social dos empregos sem qualidade ou do desemprego não é idêntica à dos países em que a proteção social não tem a mesma dimensão”. Contudo, sendo uma

indicador do trabalho temporário, sugere que esse fenômeno é atualmente comum a todos os países da União Europeia. As autoras também alertam que em razão da complexidade dos diferentes países há algumas diferenciações na manifestação do emprego precarizado. Ainda que tal diferenciação exista, um aspecto é bastante curioso: trata-se do fato de que o segmento que mais foi atingido pelo trabalho temporário foram os jovens72.

A Europa tem experimentado diversas manifestações da chamada “flexibilização”, leia-se: precarização. Os diferentes modos de sua manifestação apontam para um quadro de instigante perversidade criativa sobre os trabalhadores. Seguem alguns exemplos. O job

sharing (trabalho compartilhado) tem sido utilizado na Alemanha, Inglaterra, Holanda,

Bélgica, Áustria e Suíça (CARBAJOSA, 2016). A prática tem por pressuposto o compartilhamento de uma função/atividade para duas pessoas. Nessa lógica, o tempo de trabalho integral que normalmente seria exercido por um único trabalhador passa a ser dividido com outro. Com isso, o tempo de trabalho é rateado, e o salário também. Desse modo, ao invés de a empresa ter um trabalhador em tempo integral, passa a ter dois em tempo parcial.

Não há dados oficiais sobre esta fórmula de trabalho, já que nas estatísticas eles aparecem como empregos em meio período. Mas há estimativas, como as de um estudo da Robert Half, grande multinacional de recursos humanos, segundo o qual 25% das empresas europeias oferecem vagas compartilhadas. O percentual varia segundo os países. No Reino Unido, chega a 48% das empresas; na Alemanha, 15%; na Holanda e na Bélgica, 23%; e na Áustria, 19%. (CARBAJOSA, 2016).

Não se trata meramente de uma operação matemática de dividir uma jornada de trabalho entre dois trabalhadores; sua intenção mais profunda é extrair distintas capacidades a partir da intensificação do trabalho. Dessa forma, cada trabalhador deve oferecer suas aptidões e competências, ampliando o leque de possibilidades de produtividade pela maior multiplicidade de habilidades colocadas à disposição da empresa. Como o tempo de trabalho foi dividido, durante a parte que cabe a cada um, o trabalhador deve esforçar-se ao máximo, pois o menor tempo da jornada de cada um será compensado com mais intensidade.

Entre as diversas legislações aplicadas sob o lema da “flexibilidade”, que se revelam como mitigadoras da corrosão o trabalho, a Inglaterra tem experimentado nos últimos anos o

particularidade, essas realidades não se colocam como tendência a ser seguida, mas como uma exceção com possibilidades bem maiores de reversão (já em curso), do que de ampliação.

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Ao tratar sobre a incidência elevada de jovens europeus inseridos em empregos temporários, Carvalho, Oliveira e Veloso (2012, p. 41) concluem “que a geração dos mais jovens (15-24 anos) é, de longe, a mais afetada pelo trabalho temporário em todos os países da UE sem exceção e, com particular destaque, em Espanha, Alemanha, Portugal, Suécia e França”.

fenômeno do contrato de trabalho “zero hora” (zero-hours contract), lançando no oceano revolto das incertezas o trabalhador ultraflexível. Na modalidade de contrato “zero hora”, a empresa não é obrigada a garantir uma quantidade mínima de horas para os trabalhadores por dia, semana ou mês. Em tais condições, inexiste qualquer garantia de recebimento de um salário mínimo, se é que receberá algo. Conforme Sahuquillo (2015), a “fórmula não é nova, mas se espalhou paulatinamente no Reino Unido desde que começaram a ser sentidos os efeitos da crise financeira, em 2008”.

Em 2010, menos de 1% dos trabalhadores ingleses mantinha contratos de trabalho “zero hora”; em 2015, esse percentual passou para 2,3%, alcançando um número de 700 mil trabalhadores incluídos nessa modalidade (NOS, 2016). Já em 2016, o principal produtor de estatísticas oficiais do Reino Unido, o ONS ‒ Office for National Statistics (Escritório Nacional de Estatísticas), relatou que aproximadamente 903 mil trabalhadores britânicos, ou seja, 2,9% do total da força de trabalho, têm o contrato “zero hora” como sua única fonte de renda.

De acordo com dados do Relatório Contracts that do not guarantee a minimum

number of hours, ONS (2016, p. 3, tradução nossa):

A última estimativa mostra que 903 mil pessoas relataram que estavam em um “contrato de zero hora” no período entre abril e junho de 2016, representando 2,9% das pessoas nesse modelo de emprego. Esta percentagem é 21% superior à registada no mesmo período de 2015 (2,4% das pessoas em atividade).

A título de ilustração do quadro de precarização do trabalho na Inglaterra por meio do contrato zero hora:

A cidade litorânea de Liverpool (com 500 mil habitantes) é uma das que registram mais contratos de zero hora: eles representam mais da metade do que se oferece, sobretudo nos setores de restauração, lazer e serviços. No entanto, a fórmula se aplica em todo o país e em empresas de todo o tipo: multinacionais como o McDonald’s, a empresa de remessas DHL, a rede de farmácias Boots e as lojas Sports Direct empregam um bom número de trabalhadores com esses contratos flexíveis, segundo análises dos sindicatos. A gigante norte-americana de fast

food admite que emprega 90% de seus funcionários no Reino Unido com o sistema

de zero hora – cerca de 83 mil pessoas. (SAHUQUILLO, 2015).

Ao analisar o perfil dos trabalhadores que estão incluídos na modalidade de zero-hours

contract, o ONS identificou que as mulheres trabalhadoras constituem sua maior parte (55%