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PRECEDENTE VINCULANTE PROLATADO PELO JUIZ SINGULAR

No documento Efeito vinculante e concretização do direito (páginas 129-134)

4 ENUNCIADOS NORMATIVOS VINCULANTES E HERMENÊUTICA

4.2 PRECEDENTE VINCULANTE PROLATADO PELO JUIZ SINGULAR

Malgrado a doutrina costume distinguir efeito vinculante de força persuasiva, o viés sociológico deste estudo – que não perde de vista o que comumente acontece na prática forense brasileira – põe ênfase na vinculatividade de julgados que não teriam esse efeito de acordo com a legislação e a constituição. É dessa maneira que se vê, no Código de Processo Civil, modificado por sucessivas reformas, institutos que buscam almejar uma uniformidade a fim de facilitar o julgamento. O norte seguido pelas alterações é o de por fim ao processo e “desafogar” o Judiciário, com a introdução de mecanismos que venham “apressar” os julgamentos e “melhorar” os dados estatísticos.

Como pano de fundo para legitimar decisões vinculativas, foi acrescido ao Código o art. 285-A. Este instituto é chamado de “julgamento antecipadíssimo da lide” por Fernando da Fonseca Gajardoni, que aduz que nele se “menciona textualmente que a improcedência de plano só pode ser aplicada quando a matéria controvertida for unicamente de direito”, sem necessidade de dilação probatória. Todavia, na esteira do pensamento padronizante brasileiro – e abstraindo o equívoco de se cindir o que é fático do que é jurídico –, entende que “não há de se limitar às questões unicamente de direito a aplicação do dispositivo, embora seja mesmo nelas que esteja a maior utilidade da norma”, haja vista que “mesmo se a solução da demanda também depender da apreciação de matéria fática, haverá espaço para o julgamento liminar quando os próprios elementos

trazidos na inicial ou liminarmente” coligidos já evidenciarem, na senda “de casos idênticos do juízo, a improcedência da pretensão”203.

A propósito, Francisco de Queiroz Bezerra Cavalcanti explicita o intuito uniformizador do art. 285-A e das demais reformas processuais: o objetivo das iniciativas de ajustes no Código de Processo Civil é o de obter “racionalidade, celeridade e economia”, buscando uma “eficiência, em termos processuais” e adquirindo “concretude com o princípio da eficácia do processo”. Para o autor, as adequações procedimentais restaurariam “um aceitável nível de confiança dos jurisdicionados nos órgãos jurisdicionais”. As “intervenções pontuais” teriam assim o fito “de solucionar ou, ao menos, tentar minorar os problemas oriundos dos anacronismos processuais e das conseqüentes lentidão e ineficácia do sistema processual, no Brasil”204.

No entanto, o discurso formulado para levar legitimar as reformas processuais obnubila uma questão de relevo. É que a forma de aplicação do direito continuará sendo a dedutivista – desprovida de (pré-)compreensão –, nos moldes do Liberalismo francês de 1789. Os problemas da linguagem não são levados em conta pelos juristas, malgrado seja o direito constituído essencialmente pela linguagem, como, aliás, também é o mundo, consoante a filosofia heideggeriana-gadameriana.

Sequer o que positivistas de ponta ensinam faz eco na praxe jurídica brasileira, a fim de que sejam mitigados os problemas decorrentes da compreensão reduzida dos fenômenos da vida. Como exemplo, veja-se a indiferença que recai sobre o que ventila Hebert L. A. Hart (cuja filosofia da linguagem entende esta como uma espécie de “linguagem-objeto”). Não são em regra investigadas, pelos juristas brasileiros, as questões que podem surgir

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GAJARDONI, Fernando da Fonseca. O princípio constitucional da tutela jurisdicional sem dilações indevidas e o julgamento antecipadíssimo da lide. Revista da Escola Paulista da

Magistratura, São Paulo, a.7, n.2, p.116-118, jul.-dez. 2006.

204

CAVALCANTI, Francisco de Queiroz Bezerra. Considerações acerca da improcedência liminar nas ações repetitivas: um estudo sobre a compatibilidade do art. 285-A, do Código de Processo Civil, com o sistema processual vigente. Revista da AJUFE, Brasília, a.23, n.85, p.128-130, jul.-set. 2006.

quando da aplicação do direito, que estão presentes, “seja qual for o processo escolhido, precedente ou legislação”, na “comunicação de padrões de comportamento” que, “não obstante a facilidade com que actuam sobre a grande massa de casos correntes”, serão caracterizados, em maior ou menor grau, pela denominada “textura aberta”. Cuida-se da “incerteza na linha de fronteira”, tido como o ônus a ser suportado em face de “termos classificatórios gerais em qualquer forma de comunicação que respeite a questões de facto”. A necessidade de exercício hermenêutico “de escolha na aplicação de regras gerais a casos particulares” é olvidada pelo sistema jurídico pátrio, mercê de estar mergulhado no cotidiano da generalização exagerada e da manipulação dos discursos jurídicos. O “formalismo ou conceptualismo” é, na teoria jurídica, o vício que consiste “numa atitude para com as regras formuladas de forma verbal que, ao mesmo tempo, procura disfarçar e minimizar a necessidade de tal escolha, uma vez editada a regra geral”205.

No contexto brasileiro, tudo leva a crer que não existe preocupação em sanar, inicialmente, a persistente formação tradicionalmente dogmática dos juristas do Brasil e a aplicação automatizada do direito. As soluções propostas são paliativas e não alcançam o cerne dos problemas que, decerto, são mais complexos que as conseqüências da crescente litigiosidade. Para o enfrentamento de mais estes aspectos do efeito vinculante, interessa, pois, enfocar o status de precedente conferido à sentença de improcedência prolatada pelo juiz de primeiro grau, que autoriza o julgamento das ações subseqüentes e (supostamente) repetitivas no mesmo sentido da decisão paradigma, sem necessidade sequer de citação da parte contrária.

Com efeito, o Código de Processo Civil faculta que o juiz de primeiro grau julgue improcedentes ações semelhantes já apreciadas anteriormente. Cuida-se de um permissivo que, inserido na cultura forense brasileira habituada a dar solução ao processo com base em standards jurídicos, acaba por consagrar

205

HART, Hebert L. A. O conceito de direito. Tradução: A. Ribeiro Mendes. 5. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2007. p.140-142.

uma espécie de efeito vinculante para o juiz de primeiro grau diante de decisões prolatadas por ele mesmo. De outro modo, caso se queira usar um termo mais brando para esse fenômeno, é como se o juiz de primeiro grau se visse compelido a julgar uniformemente uma causa que entende repetitiva diante da “eficácia persuasiva” ou da “eficácia retórica” do precedente por ele mesmo criado.

A previsão está no art. 285-A, do Código de Processo Civil, acrescido pela Lei Federal n.º 11.277/2006, que dispõe que “quando a matéria controvertida for unicamente de direito e no juízo já houver sido proferida sentença de total improcedência em outros casos idênticos, poderá ser dispensada a citação e proferida sentença, reproduzindo-se o teor da anteriormente prolatada”206. O dispositivo não preconiza que se deve uniformizar a jurisprudência de acordo com o órgão jurisdicional de grau mais elevado. Diferentemente – mas com a mesma idéia de simplificação do processo –, o que se admite é o julgamento padronizado em conformidade com decisão anterior do próprio juiz, não estando vedado que se baseie em “precedente” lavrado por magistrado diverso, porém perante o mesmo “juízo”.

Antes do advento da alteração processual, José Carlos Barbosa Moreira chamou atenção para o fato de que a pretensão de dar autorização ao juiz “para sentenciar de plano, reproduzindo decisão anterior, quando já houver julgado procedente o pedido em feito análogo”, não se confunde com prestígio à jurisprudência, haja vista que “o pressuposto bastante é a existência de um único precedente, do mesmo juízo”. Preocupado com os problemas que recaem sobre a aplicação do direito no Brasil, realizada a partir de uma hermenêutica clássica e de uma interpretação silogística, o processualista sublinhou que “dificilmente se concebe incentivo maior à preguiça, ou, em termos menos severos, ao comodismo do julgador, que poderá valer-se da franquia para desvencilhar-se rapidamente do estorvo de novo processo, com a pura e simples baixa de um arquivo do computador”. A manipulação lingüística do contra-argumento de dizer que há

206

BRASIL. Código de processo civil. In: Vade mecum. Antonio Luiz de Toledo Pinto; Márcia Cristina Vaz dos Santos Windt; Lívia Céspedes (orgs.). 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2008. p.421.

possibilidade do juiz negar aplicação ao dispositivo para dizer que o caso é singular ou que não é idêntico, não resiste à constatação de que “a lei do menor esforço quase fatalmente induzirá o juiz menos consciencioso a enxergar identidade onde talvez não exista mais que vaga semelhança”. O magistrado estará defronte à “tentação da facilidade”, que mais robusta será quando for “grande a carga de trabalho que estiver assoberbando o magistrado”207.

No sentido exposto, pode-se dizer que haverá um “efeito vinculante natural”. Chamar tal fenômeno de “eficácia persuasiva” equivale a um eufemismo jurídico ou uma fuga da realidade. A justificativa para esse proceder não destoa daquela das súmulas vinculantes. O contexto é análogo: “há um grande número de processos” que reclama solução urgente (a compreensão não está em primeiro lugar). É dessa maneira que a quase unanimidade entende, com Pierpaolo Cruz Bottini, que existem “inúmeros processos repetitivos, que tratam de assuntos idênticos, que se limitam, na maior parte, a discussões de direito, que não envolvem matéria fática”. O retrato “da crise de lentidão permitiu a construção de alternativas reais direcionadas ao enfrentamento específico das matérias repetitivas, como forma de minimizar a disfuncionalidade encontrada”, tornando “a prestação jurisdicional um meio adequado para resolver conflitos em tempo razoável”. Para tanto, aliando-se aos institutos de uniformização, foi criado esse “sistema de precedentes para o próprio juiz, ao autorizá-lo, quando a matéria controvertida for unicamente de direito e no juízo já houver sido proferida sentença de total improcedência em outros casos idênticos, a dispensar a citação e proferir a sentença nos termos anteriormente prolatada”208.

Para concluir este tópico, interessa repisar que a noção de precedente no Brasil, país de origem jurídica no modelo romano-germânico e que não galgou desenvolvimento equivalente aos países de primeiro mundo, vem se alargando

207

MOREIRA, José Carlos Barbosa. Súmula, jurisprudência, precedente: uma escalada e seus riscos. Juris Plenum, Caxias do Sul, a.1, n.4, p.67, jul. 2005.

208

BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Mecanismos de uniformização jurisprudencial e a aplicação da súmula vinculante. Revista do Tribunal Regional Federal da Primeira Região, Brasília, a.20, n.3, p.98, mar. 2008.

demasiadamente, sem que se acure para as deficiências de percepção de seus juristas, cuja formação acadêmica é marcadamente dogmática. A inconsciência histórica e o desvio de perspectiva que concebe a linguagem como simples instrumento capaz de tudo justificar a partir do convencionalismo intercomunicativo tornaram-se cotidianos. A abstração de tudo, levada a efeito pela razão humana, faz com que os juristas repitam que “a conciliação entre justiça e universalidade” é alcançável, “em regra, por meio da observância dos precedentes, sem embargo de admitir-se o abandono de uma determinada orientação pretoriana, desde que sobrevenham justificadas razões”209. O álibi estrutural para o funcionamento do Judiciário e para a renovação da noção de segurança jurídica é assim (re)descoberto com o “efeito vinculante” uniformizador das decisões judiciais.

No documento Efeito vinculante e concretização do direito (páginas 129-134)