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Simplificação, dedução e concretização judicial

No documento Efeito vinculante e concretização do direito (páginas 170-174)

5 EFEITO VINCULANTE E CONCRETIZAÇÃO DO DIREITO

5.2 ENUNCIADOS VINCULANTES E INTERPRETAÇÃO

5.2.1 Simplificação, dedução e concretização judicial

A utilização de efeito vinculante seria justificada em alguns casos submetidos à justiça cuja identidade entre si seria tal que tornaria bem ínfima a diferença ontológica entre eles, a exemplo do que poderia acontecer com a aplicação do direito restrita a índices de reajustes vencimentais ou de proventos. Situações como essa, não obstante em menor número, poderiam ser objetadas ao que se vem decodificando no presente estudo. No entanto, é de ver que as chamadas causas repetitivas, por si só, não pode implicar baixa compreensão do caso concreto, nem tampouco dispensabilidade de fundamentação judicial. Não é admissível que se julgue nos moldes da exegese, fixando-se tão-somente em um texto de enunciado de súmula vinculante ou de precedente judicial.

O intérprete deve atentar que há um procedimento de simplificação tanto no ato de formação de uma súmula, quanto no hábito de aplicação dessa súmula pelos personagens jurídicos brasileiros. Esse fator, no Brasil – país de raiz

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romano-germânica –, é retratado por um vício congênito. Deveras, consoante averba Mônica Sifuentes, “a introdução da súmula no ordenamento jurídico brasileiro se deu pelas mãos do Ministro Victor Nunes Leal”, nos idos de 1963, sendo acolhida no Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, bem como incluída na legislação superveniente. Quando do advento do instituto, foi ele não só aplaudido, como “considerado o verdadeiro ‘ovo de colombo’, para desafogar os trabalhos da Corte, sobrecarregada de processos”. A justificativa da inclusão era exclusivamente pragmática, traçando um método para as atividades judicantes, em face “do acúmulo de processos” e “da constatação de que nem o Supremo Tribunal conhecia a sua própria jurisprudência”266.

Como se depreende, a mesma justificativa persiste e agora é utilizada para a introdução das súmulas vinculantes. Falta ao jurista hodierno compreensão para perceber que a promessa que acompanha a inserção de instrumentos vinculantes não é passível de cumprimento, por não ferir os pontos problemáticos dos conflitos sociais brasileiros. Ao trazer para o sistema instrumentos estranhos ao continental law, o que se tem é uma renovação de questões fáticas mal resolvidas e reduzidas ao plano jurídico de validade/invalidade. O problema inicial da formação acadêmica, aliada a uma hermenêutica consubstanciada em uma relação sujeito versus objeto, fica preterido. As deficiências se ampliam, a começar pelos vícios decorrentes da formação dos enunciados vinculantes, tal como se dá com a baixa compreensão para a aplicação/interpretação do direito diante do caso concreto.

A consagração do sistema dos precedentes vinculantes no Brasil deixa uma considerável zona cognitiva cinzenta, formada por uma manipulação discursiva de conteúdo ideológico forte, máxime no sentido de fazer subsistir o modelo liberal-racionalista brasileiro, no qual o juiz deve apenas ditar as palavras da lei (agora, da súmula também). Os positivistas pátrios não salientam – ingênua ou maliciosamente – as implicações diferentes que fluem de sistemas diversos

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SIFUENTES, Mônica. Súmula vinculante: um estudo sobre o poder normativo dos tribunais. São Paulo: Saraiva, 2005. p.238.

filiados à mesma common law. É imprescindível, com Hebert L. A. Hart, alertar que “a comunicação de regras gerais por exemplos dotados de autoridade” (tal como a súmula vinculante) carrega consigo “indeterminações de uma espécie mais complexa. O reconhecimento do precedente como um critério de validade jurídica significa diferentes coisas em diferentes sistemas e no mesmo sistema em períodos diferentes”. Daí que “as descrições da ‘teoria’ inglesa do precedente são, em certos pontos, ainda altamente controvertidas: na verdade, mesmo os termos- chave usado na teoria, ‘ratio decidendi’, ‘factos materiais’, ‘interpretação’”, são dotados de uma penumbra típica da incerteza. Em virtude da atividade de generalização (e, de certo modo, simplificação), infere-se, tal como se dá com a legislação, a existência de uma “área de textura aberta”, assim como uma “actividade judicial criadora dentro dela”, pelo que o “processo de ‘distinção’ do caso anterior” importa que seja descoberta “alguma diferença juridicamente relevante entre aquele e o caso presente”, cujo número de “diferenças nunca pode ser determinado exaustivamente”267.

Formado o texto sumular – mais reverenciado, no Brasil, do que os diplomas legislativos –, ao lado dos problemas de sua edição sem maiores cautelas, um outro fator vai tornar a questão hermenêutica mais delicada, qual seja: o vezo brasileiro de se aplicar o direito dedutivamente, ou seja, basta que aparentemente o caso se encaixe em uma abstração frasal para que o magistrado encerre-o pelo mérito. A aplicação mediante dedução está recrudescida, não escapando desse hábito os que supõem que estejam filiados à tópica, ao procedimentalismo ou às teorias da argumentação. A questão central é que o jurista brasileiro cresceu em um ambiente que não estimulou sua atenção para as pré-compreensões e para uma relação hermenêutica entre sujeito e sujeito, na qual, por exemplo, o texto fala ao julgador em um dado contexto, com uma fusão do horizonte daquele com o deste.

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HART, Hebert L. A. O conceito de direito. Tradução: A. Ribeiro Mendes. 5. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbekian, 2007. p.147-148.

Como conseqüência lógica da aplicação “científica” do direito mediante dedução, tem-se uma falta de concretização judicial. A concretização que comumente se tem não ultrapassa o plano jurídico, motivo pelo qual, na realidade, de concretização não se trata. Acerca deste aspecto, Kelly Susane Alflen da Silva verbera que “a concretização do direito e, em principal da Constituição (ou da lei)” não condiz com seu inteiro controle metodológico e nem se realiza “com o auxílio do silogismo lógico-formal, no sentido de se efetuar como a exatidão obtida nas ciências operadas a partir de comandos jurídicos previamente elencados acabados e completos”. Decerto, “levar a Constituição a sério enquanto lei significa levar a sério a sua estrutura de efetivação enquanto concretização, em relação a qual a falha surge quando os juristas (teóricos e práticos)” olvidam procurar “as condições de possibilidade e os limites da própria tradição para uma concretização e um desenvolvimento da Constituição e, por conseqüência, do direito”268.

É com esse fito que tem lugar a filosofia no direito para conferir importância à linguagem, à tradição e à compreensão, de forma a rechaçar os métodos simplificadores e dedutivistas para a interpretação/aplicação do direito. Com Martin Heidegger – que lastreou a hermenêutica gadameriana – pode-se concluir que a concretização do direito é viável com a compreensão da historicidade, colocando luz sobre a diferença de gênero entre o histórico e o ôntico. Para tanto, é preciso que se perceba os seguintes aspectos: (1) “a questão da historicidade é uma questão ontológica sobre a constituição do ser dos entes históricos”; (2) “a questão do ôntico é a questão ontológica sobre a constituição do ser dos entes não dotados do caráter de pré-sença, isto é, do ser simplesmente dado, no sentido mais amplo”; e, (3) “o ôntico é apenas uma região dos entes. A idéia do ser abrange o ‘ôntico’ e o ‘histórico’. É ela que se deve deixar ‘diferenciar genericamente’”269. Chegado a este esclarecimento, impende desvendar, no

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SILVA, Kelly Susane Alflen da. Hermenêutica jurídica e concretização judicial. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2000. p.396.

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HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo: parte II. 13. ed. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Universidade São Francisco, 2005. p.211-212.

tópico a seguir, a relação entre a fundamentação judicial e a diferença ontológica, com ênfase na insuficiência do efeito vinculante brasileiro para o fim de se concretizar o direito efetivamente.

No documento Efeito vinculante e concretização do direito (páginas 170-174)