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5. MOQUECA DE ESPERANÇA: OS ELEMENTOS UTÓPICOS NAS CANÇÕES

5.1 As utopias de Raul Seixas

5.1.1 Prefácio: Mosca na Sopa

Em Mosca na sopa (ver figura 40), composta por Raul Seixas, o artista utiliza todo um arsenal simbólico para fazer com que suas ideias passem pelo filtro da censura ditatorial. Nessa canção, a criatividade e inventividade do artista aparece tanto na letra quanto na melodia, com a inserção de elementos que fazem referências à capoeira.

A música começa com Raul cantando lentamente as frases “Eu sou a mosca que pousou em sua sopa. Eu sou a mosca que pintou para lhe abusar”, com um toque de tambores ao fundo, como aqueles que anunciam uma grande atração em um evento esportivo ou circense, acompanhado de palmas. Logo após esse momento, temos a entrada de um berimbau que começa a grande simulação da canção, pois parece que estamos sendo inseridos em uma roda de capoeira.

Não só o uso do berimbau como o ritmo da música, com a estrofe sendo cantada por Raul e depois sendo respondida por um coral, simulam a música presente em rodas

94 de capoeira, na qual o mestre canta e é respondido pelos outros membros da roda, como um puxador guiando seus seguidores.

Assim, o artista acaba criando a atmosfera para a ginga, movimento na capoeira embalado pelo ritmo das músicas e que coloca os capoeiristas frente a frente, numa posição em que aguardam o momento propício para a aplicação do golpe. (ABIB, 2004). É a partir da ginga que a capoeira pode disfarçar a luta em forma de dança permitindo que seus movimentos corporais preparatórios para um ataque direto não sejam percebidos como tal. Segundo ABIB (2004), “a ginga representa a possibilidade desse enfrentamento indireto na capoeira”, pois o importante é “saber aproveitar o espaço vazio deixado pelo outro e, quando houver a oportunidade, partir para o embate direto” (ABIB, 2004, p.124).

O mesmo disfarce permitido pela ginga na capoeira é o que Raul Seixas faz com a mensagem presente na letra de Mosca na Sopa, falaremos dela em breve. Ainda sobre a parte melódica, temos também a inserção do ruído do zunido de uma mosca durante quase toda a canção.

A prática de inserção de ruídos já tinha sido utilizada pelo artista em seu álbum anterior; nessa canção, o ruído completa a mensagem, coadunando com a metáfora da letra.

Nesses momentos da canção, temos intercalados a voz de Raul, as vozes do coral respondendo ao artista, palmas, triângulo, berimbau e um zunido de mosca. O que traz toda uma multiplicidade de elementos provenientes da já comum mistura que o artista se propunha a fazer enquanto experiência musical.

Por duas vezes, no decorrer da canção o cenário melódico sofre alteração, pois o trecho da letra cantada por Raul Seixas, agora sem o coral, é mais firme, colocando-se em posição de opositor aos militares. Saem os instrumentos citados e passamos a ter um instrumental típico do rock, com guitarras, baixo, bateria e voz. Após esse trecho, voltamos ao grupo de instrumentos anteriores e com apenas uma alternância na voz de Raul Seixas em um novo momento em que a letra da música muda novamente, na qual o artista parece cantar usando uma espécie de megafone para chamar atenção.

Em relação à letra, podemos ver a canção como a apresentação do artista para os ouvintes e os militares. Ele se coloca como aquele que chegou para atrapalhar, para incomodar, para fazer a diferença e que não será fácil de ser exterminado.

A estrofe que inicia a canção é, estrategicamente, a que mais se repete. Ela inicia e depois intercala as outras repetindo-se com os mesmos elementos, apenas com cortes

95 na letra que está completa somente na primeira vez e na última que é cantada. Temos Raul Seixas colocando-se como uma mosca que chegou e pousou na sopa que, do ponto de vista político, seria a ditadura militar, mas que podemos ver também como todo um modo de vida e relações sociais que serão criticadas de forma mais específica em outras obras que analisaremos em seguida. O artista é o componente que chegou para incomodar, para fazer barulho, para enfrentar o regime. Sua voz é o zunido da mosca que não deixará os militares em paz, não dará folga e estará sempre presente.

Eu sou a mosca que pousou em sua sopa. Eu sou a mosca que pintou pra lhe abusar. Eu sou a mosca que pousou em sua sopa. Eu sou a mosca que pintou pra lhe abusar. Eu sou a mosca que perturba o seu sono. Eu sou a mosca no seu quarto a zumbizar. Eu sou a mosca que perturba o seu sono. Eu sou a mosca no seu quarto a zumbizar.

Quando o cenário melódico muda pela primeira vez, passamos para a segunda estrofe na qual Raul passa a mensagem como se estivesse falando diretamente com seus opositores que quiserem ignorá-lo ou calá-lo, mostrando que nada que eles façam irá fazer com o artista pare, nem mesmo matando-o. Afinal, caso ele seja morto, sua mensagem continuará viva, dando os elementos para que um novo Raul Seixas possa surgir e ocupar o seu posto.

E não adianta, vim me dedetizar, pois nem o DDT pode assim me exterminar. Por que ‘cê mata uma e vem outra em meu lugar.

Voltamos para a estrofe inicial, com a letra cortada, que ao seu fim dá espaço para uma estrofe nova que mantém o cenário melódico da primeira com a alteração da voz de Raul Seixas, novamente sem o coral, cantando uma letra diferente. Num tom recheado de humor, também já característico do artista, ele evidencia que é uma grande ameaça aos seus rivais, avisando que o mesmo deve ficar atento e ter cuidado, pois chegou uma grande mosca que é onipresente e persistente. Aquela que não será derrotada.

Atenção, eu sou a mosca. A grande mosca. A mosca que perturba o seu sono. Eu sou a mosca no seu quarto a zum zum zumbizar.

Observando e abusando, olha do outro lado agora, eu tô sempre junto de você. Água mole em pedra dura tanto bate até que fura.

Quem, quem é? A mosca, meu irmão.

A estratégia de camuflagem de Raul Seixas deu resultado. A música não foi censurada e foi gravada na íntegra no primeiro álbum de sua carreira solo. Após o cartão

96 de visitas do artista ter sido mostrado, chegou o momento de começar a mostrar seus pensamentos. Vamos, então, para o primeiro momento: a crítica à realidade.

Figura 40: Ouça Mosca na Sopa utilizando o QR Code.