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2.1. Por que o passado importa?

2.1.1. Preliminar metodológica: como devemos olhar para o passado

Antes de enfrentar a questão central do porquê, vejo-me obrigada a traçar algumas considerações sobre o modo como o passado deve ser estudado, pois investigar a ideia republicana sobre liberdade é uma tarefa a ser realizada com recurso à história das ideias. O modo de abordagem do passado torna-se central porque está também ligado à questão que se coloca em todo o trabalho, a começar pelo título: se é possível, e como, aprender para o futuro. Não é uma questão metodológica separada da pergunta sobre o porquê, antes o porquê determina o como, e o como sempre nos leva a reavaliar os nossos porquês. Feita essa ressalva, partirei primeiramente ao como, embora essa não seja uma questão anterior. O porquê está implícito nela, e será explicitado adiante.

Muito comumente, o estudo do passado pretende apenas conferir autoridade a uma doutrina atual, sobretudo nos estudos jurídicos. O uso de categorias do passado para explicar o presente sem as devidas contextualizações, a busca de respostas corretas a problemas supostamente perenes, a procura de constâncias e padrões eternos de comportamento ou mesmo de ideias morais são alguns dos problemas corriqueiros nos estudos sobre o passado. Especialmente quando são praticados como muleta para outras ciências que não estão preocupadas com os métodos do historiador. Isso não quer dizer que o passado não possa ser útil à compreensão do presente, mas talvez ele não deva ser usado apenas para justificar ou conferir autoridade a doutrinas do presente. Vale a pena investigar como foram forjadas ideias no passado, não para aplicá-las pura e simplesmente ao presente, mas para revelar os usos contraditórios das mesmas na atualidade.

O contextualismo na história das ideias políticas nasce no início da década de 1960, em contraposição ao pensamento ortodoxo no estudo da história, em que estava pressuposto que o estudo histórico da moral e da teoria política devia extrair dos textos clássicos insights que pudessem apresentar-se sobre questões gerais de sociedade e política da época presente. Nesse sentido, a preocupação com o contexto se contrapõe ao tratamento das ideias como atemporais, mas não se afasta dos textos clássicos, buscando o seu lugar em quadros de

pensamento mais amplos. Os historiadores que marcaram o início de uma nova fase no estudo da teoria política, entre eles John Pocock, ensinaram “a pensar a história da teoria política não como o estudo de supostos textos canônicos, mas sim como uma investigação mais abrangente das linguagens políticas em transformação nas quais as sociedades dialogam com elas mesmas” (SKINNER, 1999, p. 83-86).39

A afirmação de que os estudos históricos não eram capazes de revelar respostas a interesses perenes gerou um grande desconforto acerca da utilidade de um conhecimento que, não oferecendo respostas para o presente, estaria fadado a compreender o passado pelo passado. A essa acusação, Skinner responde com veemência que “[d]everíamos [...] estar dispostos a nos perguntar bem agressivamente o que se supõe ser o uso prático, aqui e agora, de nossos estudos históricos” (SKINNER, 1999, p. 87). Assim, a abordagem metodológica influencia definitivamente nas finalidades da pesquisa histórica, que, no mínimo, passariam a ser menos pretensiosas.

Ocorre que o fato de não encontrarmos através do estudo histórico respostas perenes a questões igualmente atemporais não nos libera do peso das heranças vindas do passado. Mesmo reconhecendo que existem descontinuidades,40 as continuidades permanecem sendo

uma realidade que desafia o historiador. Aplicamos teorias herdadas, apesar de nem sempre as compreendermos. Por isso, “temos [...] de ser capazes de ver como os conceitos que ainda invocamos foram inicialmente definidos.” Ora, apenas numa leitura apressada esse novo objetivo poderia ser visto como desimportante: trata-se da busca por uma compreensão autoconsciente de conceitos e ideias que herdamos e aplicamos de modo não autoconsciente (SKINNER, 1999, p. 88-89). Conceitos que se tornam independentes, etéreos e universais tiveram sua origem no passado e, muitas vezes, eram dependentes, efêmeros e particulares. Voltar o olhar para o passado somente faz sentido se o que procuramos descobrir são justamente as especificidades em torno de uma ideia. Mas, em última instância, trata-se de

39 Quentin Skinner, juntamente com John Pocock, integra o grupo dos historiadores contextualistas, para o qual o

significado de um documento depende radicalmente de sistemas de conceitos que estavam à disposição do seu autor no momento em que escreveu. O grupo dos textualistas também se opõe à leitura ortodoxa da história, sendo mais cético quanto à possibilidade de apreender o contexto já que, assim como o texto, ele também será interpretado de acordo com as nossas crenças atuais (FISHER III, 1996-1997). Pessoalmente, acredito que ambas as correntes tenham a sua parcela de razão e as suas falhas. Entretanto, mesmo reconhecendo que o estudo do contexto é limitado pelo nosso próprio contexto, ele não se torna por isso inútil, e tem o potencial de revelar conexões insuspeitadas a partir de um olhar do presente lançado sobre o passado sem censuras ao próprio presente.

40 O próprio Skinner afirma interessar-se, atualmente, mais pelas descontinuidades que pelas continuidades que

foram objeto do The foundations of Modern Political Thought, em que ele enfoca o desenvolvimento da ideia de Estado soberano da modernidade. No artigo que escreve para o Rethinking the foundations of modern

Political Thought, entretanto, Skinner reafirma a validade da pesquisa histórica dos momentos de

continuidade. Cf. SKINNER, 2006. Sobre a questão das descontinuidades, Cf. POCOCK, 2004; KOSKENNIEMI, 2001; FISHER III, 1997.

uma questão existencial, porque nós somos, em parte, as nossas heranças, e compreendê-las melhor equivale a compreendermo-nos e, possivelmente, reavaliarmos as escolhas feitas no passado.

Não obstante hoje em dia o estudo da história tenha absorvido as leituras críticas de estruturalistas, contextualistas, pós-modernos/textualistas e outras, o uso dos métodos históricos, em regra, não é bem manejado por juristas, que, na maioria das vezes, recorrem à história como fonte de autoridade para seus argumentos. Não que a busca de autoridade seja em si algo reprovável – aliás, faz parte da natureza do trabalho do advogado a busca de autoridade para seus argumentos – mas os métodos da história são quase sempre ignorados pelas disciplinas jurídicas e a história transformada em mera ferramenta para os objetivos do jurista (GALINDO, 2011a).

Galindo identifica três atitudes do jurista em relação à história. Uma estática, que “normalmente assume que uma norma legal ou regra ou prática tem um significado fixo estabelecido pelo uso passado”;41 uma dinâmica, que promove “a ideia de que a interpretação

de textos jurídicos, regras e princípios muda e deve mudar no tempo para se adaptar às condições cambiantes”;42 e uma terceira crítica, que enfoca as descontinuidades da história

para destruir a relação entre passado e presente. As duas primeiras atitudes incorrem no erro de buscar legitimar a partir da história - e sem os métodos próprios para isso - um argumento ou ideia do presente (GALINDO, 2011a). A terceira, com baixa representatividade entre juristas de todo o mundo, embora não incorra no mesmo erro das duas primeiras, volta as costas à possibilidade de compreender melhor o presente desde uma leitura das heranças vindas do passado, o que implicaria a existência de continuidades históricas (ainda que em convivência com as descontinuidades).

Os juristas internacionalistas dos séculos XIX e XX recorreram frequentemente ao passado. A relação entre teoria e método era problemática porque não havia um esforço metodológico de aproximação dos dois. Se por um lado a história servia apenas para conferir autoridade a uma teoria, por outro, ela não pressupunha um ponto de partida teórico. Ou seja, “teóricos do direito internacional olhavam regularmente para o passado, mas aparentemente eles o faziam apenas para confirmar suas hipóteses – para provar a existência do direito que,

41 Tradução livre. No original: “normally assumes that ‘a legal norm or rule or practice has a fixed meaning that has been established by past usage’” (GALINDO, 2011a, p. 2).

42 Tradução livre. No original: “the idea that ‘the interpretation of legal texts and rules and principles does and must change over time to adapt to changing conditions’” (GALINDO, 2011a, p. 2).

para eles, regulava ou deveria regular as sociedades do presente (ou a sociedade internacional)”(GALINDO, 2011a, p. 6).43

Nem mesmo teóricos da estatura de Kelsen e Lauterparcht ficam imunes à crítica. O uso prático da história com a função de legitimar determinada teoria é vastamente praticado ainda nos dias de hoje.

Juristas internacionalistas referem-se à história para conferir autoridade a sua obra. Eles sentem que teorias só podem ser legitimadas se profundamente fundadas em um autor, uma doutrina, um princípio ou uma instituição do passado. Infelizmente, tal uso prático da história é feito, muitas vezes, sem o devido respeito ao historiador [...]. Normalmente, as ‘origens históricas’ ou a ‘experiência histórica’ em um tema específico são apresentados para dar espaço ao argumento principal do autor (GALINDO, 2011a).44

Entre os juristas que se preocupam em lançar um olhar cuidadoso ao passado, destaca- se o autor Martti Koskenniemi, que, sobretudo na obra The Gentle Civilizer of ations, propõe uma releitura total da história da disciplina, desde sua origem.45 Nessa obra magistral, Koskenniemi provoca, segundo Galindo, um giro historiográfico com potencial para impactar todo o estudo do direito internacional a partir de então. Tal giro refere-se a uma necessidade de revisar a história e (re)estabelecer as conexões entre o passado e o presente das normas, instituições e doutrinas do direito internacional, além de superar as barreiras que separam a história da teoria (GALINDO, 2005, p. 541).

2.1.2. Por que devemos olhar para o passado: um aprendizado para o exercício da liberdade