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2.2. Republicanismo: o resgate de uma teoria esquecida?

2.2.1. Republicanismo, aristotelismo e particularismo

O termo “republicanismo” é bastante utilizado e assume um papel importante entre as doutrinas contemporâneas sobre o fundamento de validade das normas jurídicas. Ele congrega muitos conceitos nem sempre coerentes entre si, embora sua essência, a liberdade republicana,

52 Tradução livre. No original: “The historiographical turn will only make sense if it allows the historical turn, if it is able to ensure that international law is eminently historical and that it become a truly anamnestic international law”.

53 Muitos autores debruçam-se sobre o tema do republicanismo. Embora a literatura seja ampla, restringirei a

minha análise às posições de Quentin Skinner e Philip Pettit, por considerá-las mais adequadas ao escopo deste trabalho. Para outras visões sobre o Republicanismo, cf. VIROLI, 2002a; MICHELMAN, 1988.

não tenha sido incorporada aos usos correntes do termo ou, ao menos, tenha se enfraquecido em grande parte. Os usos correntes podem ser vistos no debate contemporâneo sobre distintas concepções de bem comum, que nos remete a duas tradições antagônicas, o platonismo e o aristotelismo. Elas convivem no pensamento ocidental, e seus pontos de encontro estão justamente na exigência fundamental da busca do bem comum. Como ensina o professor Marcus Faro de Castro,

[E]m ambos os casos (platonismo e aristotelismo), a consciência do bem comum permanece como fundamento da política à qual se quer atribuir um caráter ético, contraposto ao da política escravizada às meras circunstâncias ou acidentes da vida e às tradições. Mas [...] há uma diferença importante entre o platonismo e o aristotelismo, no que diz respeito ao método de aquisição da consciência do bem (CASTRO, 2005, p. 88).

Trata-se de duas tradições filosóficas que têm visões de mundo distintas: uma aristotélica ou particularista, outra platônica ou universalista. A diferença no método da aquisição da consciência do bem comum referida no trecho acima consiste, essencialmente, em que, no paradigma universalista, é feita pelo treinamento do espírito em diversas áreas do conhecimento, da aritmética à dialética (PLATÃO, 2005). O legado platônico corresponde “ao compromisso com uma noção abstrata, una e eterna do bem moral” (CASTRO, 2005, p. 87). Já no paradigma particularista, “a formação da consciência do bem comum faz-se mediante a interatividade social ampla, sob regras referentes a modos de convívio social, sejam as regras de retórica, sejam as das instituições sociais e políticas” (CASTRO, 2005, p. 88).

O republicanismo pode ser classificado, para fins de se obter uma melhor visão dos seus pressupostos filosóficos, na corrente aristotélica, pois se sustenta na pressuposição de que o bem comum – ou pelo menos a consciência desse bem comum – é particular e histórico. Distancia-se, assim, da ideia de que valores universais, alheios à deliberação humana, possam ter validade. Não significa, necessariamente, que se negue a existência de valores universais, pois a deliberação humana pode ser entendida como meio para “descobrir” a lei natural. De qualquer maneira, é a deliberação – que tem um lugar no espaço e no tempo – que confere validade ao direito. O particularismo do republicanismo é uma fórmula que nos remete, assim, a uma tradição aristotélica. Os textos de Aristóteles foram, inclusive, essenciais para a formulação teórica das repúblicas italianas a partir do final do século XIII, quando foram redescobertos. Eles ajudaram a legitimar e conceituar as práticas de autogoverno que já existiam desde o século XII na região (SKINNER, 1993, p. 121).

Por isso, embora já no pensamento platônico estivesse presente a preocupação com o bem comum, é também verdade que o termo passou a ser associado muito mais à tradição republicana de base aristotélica.54 E que embora o “republicanismo” tenha sobrevivido e tido momentos de grande influência nas revoluções francesa e americana, inspirando várias repúblicas que surgiriam depois disso, grande parte da antiga origem dessa filosofia política foi deixada de lado posteriormente, e o termo passou a ser equiparado, sem maiores cuidados, a “democracia”, “estado de direito” (rule of law), e para alguns significou até mesmo a mera ausência de reis ou apoio para a revolução, independente do modo como fosse realizada (SELLERS, 2003).

Porque estava preocupado com a res publica ou “coisa pública”, Kant costuma ser identificado por alguns autores como um pensador republicanista (SELLERS, 2003; 2006). Ele defendeu a república como forma de governo representativa, em contraposição a governos despóticos (KANT, 2004). Contudo, o que ele descreve ao usar o termo “república” dificilmente poderia enquadrar-se na visão particularista. Isso porque, em Kant, os direitos individuais adquirem uma dimensão pré-política, de direitos inatos ou inalienáveis, portanto, fundados numa metafísica. Na medida em que defende que ser livre, moralmente, significa evitar a influência de qualquer inclinação do mundo sensível, permitindo a total autodeterminação de cada indivíduo para construir a sua própria concepção de bem, Kant alinha-se mais à corrente liberal, embora defenda a República como forma de governo (KANT, 2005). Isso porque os direitos inalienáveis, protegidos de maneira negativa – o Estado não deve interferir na realização da concepção individual de bem – implicam a possibilidade de um direito não histórico, atemporal, livre de determinantes culturais, econômicas, regionais ou de qualquer outra natureza. A razão é a tal ponto distinta do mundo empírico que, para Kant, o ideal de liberdade moral é poder distanciar-se completamente do mundo sensível e guiar-se apenas pela razão.

Com o desenvolvimento das repúblicas modernas, o republicanismo passou a ser um termo associado, principalmente, à deliberação pública de representantes, através de instituições que protegessem o bem comum dos interesses privados ou de partes da sociedade. Eis o teste de legitimidade: a deliberação serve, tão somente, como o meio para se “descobrir” o bem comum (SELLERS, 2006). Disso conclui-se que o bem comum pode ser aferido por

54 Skinner (1993) explica que a definição de bem comum estava intimamente ligada ao ideal de justiça de autores

das cidades-repúblicas italianas ainda no século XIII, e autores daquela época basearam-se amplamente em Roma. O ideal de justiça consistia em que cada um recebesse o que lhe era devido (ius suum cuique) e isso significava, para eles, que o interesse de alguém nunca poderia ser excluído ou injustamente submetido aos interesses de outrem. Apenas agindo de acordo com esse ideal de justiça se alcançaria o bem comum.

meio da razão, cujo método de aferição é a deliberação. O debate sobre o republicanismo vai se preocupar, portanto, com as instituições capazes de possibilitar e proteger a adequada aferição pela deliberação. Essa é, entretanto, uma visão apenas procedimental do fenômeno republicano, que deixa de lado questões sobre a república enquanto ideal político. A preocupação com o bem comum está presente, mas essa é uma preocupação compartilhada com o paradigma universalista.

O republicanismo contemporâneo, por sua vez, é uma leitura muito mais dedicada à validade do direito e exige que suas bases não sejam metafísicas. Eis a definição apresentada por Daniel Vargas, na sua dissertação de mestrado:

Ao abandonar tanto a versão clássica do republicanismo (que admite um bem comum enquanto base da sociedade) como o pluralismo liberal (que explica a unidade social a partir de uma noção metafísica acima e fora do controle dos seres humanos), o republicanismo contemporâneo rompe com uma visão objetivista de mundo e passa a aderir a um modelo de ordem capaz de legitimar a autoridade do direito sem recorrer a valores externos à própria sociedade. Esse é o ideal normativo que será incorporado no constitucionalismo republicano contemporâneo (VARGAS, 2005, p. 79).

Se, no ideal normativo republicano, a metafísica não tem lugar, é na comunidade histórica concreta que o direito encontrará seu fundamento de validade. O ideal não- objetivista republicano abre mão de valores externos porque se baseia na vontade, mutável, seja espacial ou temporalmente, de acordo com cada cultura e realidade concretas. A deliberação, para além de um método de aferição do bem comum, torna-se um método de aferição da vontade conformadora do bem comum. Logo, a historicidade dos valores e do próprio direito é pressuposto do republicanismo contemporâneo. Porque bem comum significa bem comum de uma determinada comunidade histórica concreta, tal ideal normativo não tem compromissos com o universal, mas com o histórico, com o particular.

A centralidade do ideal normativo do republicanismo contemporâneo, qual seja, a autodeterminação da comunidade concreta de acordo com a sua vontade, convive com outro ideal normativo de grande impacto: o liberalismo. A tensão entre os dois ideais se expressa no constitucionalismo contemporâneo no debate sobre alguns conceitos centrais à democracia no mundo ocidental, com predomínio de um ou de outro a depender do caso. Já no direito internacional, pode-se dizer que existe um predomínio mais claro do liberalismo, mas não sem presenças do republicanismo, que geram contradições difíceis de solucionar.55

Se uma das características mais marcantes do legado platônico é “uma postulação da necessidade de que os governantes possuam determinadas qualidades morais [...] para que a política seja ‘justa’”, o liberalismo, herdeiro do universalismo platônico, estende “a todos os indivíduos na forma dos ‘direitos naturais’, as qualidades morais, correspondentes ao bem abstrato, [que se tornam] o fundamento da idéia de autogoverno típica da modernidade” (CASTRO, 2005, p. 87). Para os liberais, o pluralismo descreve a diversidade de concepções individuais acerca da vida digna, protegida por direitos naturais inerentes a cada ser humano. Os autores liberais veem as democracias modernas como sociedades onde coexistem distintas concepções do bem, a serem protegidas da vontade política da comunidade histórica. O componente universal/platônico está presente no direito individual, que não deve sofrer restrições devido a interferências do ‘particular’, representado pela vontade datada de uma comunidade histórica. Direitos naturais são, assim, direitos universais e perenes, imunes às variações morais da comunidade, e protegidos por liberdades negativas que resguardam o espaço de decisões do indivíduo na sua insubordinação moral. Eis a definição da professora Gisele Cittadino sobre o ideal de justiça liberal:

No que diz respeito aos liberais, na medida em que o pluralismo está associado à compreensão das democracias contemporâneas como sociedades onde há uma multiplicidade de concepções individuais a respeito do bem, o ideal de justiça delineado busca assegurar a cada indivíduo a realização do seu projeto pessoal de vida. Ao mesmo tempo, é possível conformar, segundo os liberais, uma concepção de justiça que, a despeito do “fato do pluralismo”, de que fala Rawls – ou do desacordo razoável para usar a expressão de Charles Larmore – possa não apenas garantir a autodeterminação moral dos indivíduos, mas também ser compartilhada por todos (CITTADINO, 2000, p. 6).

A visão contrária, defendida por autores comunitaristas, é que por estarem livres de qualquer dogmatismo jusnaturalista, podem utilizar o conceito de “abertura constitucional”, a ser preenchido pela vontade: “Para estes autores, se o constitucionalismo liberal tomava a lei como razão, o constitucionalismo ‘comunitário’ a toma como vontade: vontade política de uma comunidade histórica” (CITTADINO, 2000, p. 24). Aí identifica-se, facilmente, o legado do paradigma aristotélico também encontrado no republicanismo, pela sua “ênfase sobre a diferença ou o pluralismo social e político, e sobre o papel das instituições em propiciar o comportamento moderado e assim o convívio pacífico” (CASTRO, 2005, p. 87).

2.2.2. Princípios republicanos: soberania popular, periodicidade das eleições, separação de