• Nenhum resultado encontrado

Premissas para a modernidade

Modernidade e Actualidade da Arquitectura Regional Raul Lino, José Marianno e a arquitectura luso-brasileira.

3. Premissas para a modernidade

Em uma brevíssima análise, pode-se afirmar que a Revolução Industrial marca um momento de mudança fundamental na forma de produção que teve implicações que foram desde a Revolução Francesa quanto aos processos de aceleração dos ritmos da vida, de abertura cultural e de perda da memória no sentido coletivo. As Revoluções Burguesas tiveram grosso modo como princípio orientador a luta contra a ordem estabelecida, que permitiu que até mesmo camadas populares que estavam à margem dos centros de poder pudessem se emancipar. Em tese, o desprendimento das antigas ordens estabelecidas — clero e monarquias absolutistas — possibilitaria ao homem progredir em direção a um futuro promissor. Contudo, se por um lado o progresso produz uma aceleração do que está a frente, por outro lado ele lança um carácter desconhecido,

pois o tempo que se acelera em si mesmo, isto é, a nossa própria história, abrevia os campos da experiência, rouba-lhes sua continuidade, pondo repetidamente em cena mais material desconhecido, de modo que mesmo o presente, frente a complexidade desse conteúdo desconhecido, escapa em direção ao não- experimentável4.

Isso já começava a se delinear no s. XVIII, no entanto é a partir do início do s. XX, ou mais precisamente, a partir da Primeira Grande Guerra que a questão toma uma forma crucial. Se por um lado, muitos acreditavam que o progresso científico e tecnológico poderia eliminar as mazelas sociais, por outro lado, havia muitos que apontavam a falta de direcção da sociedade, ou seja, que havia um futuro sem perspectiva.

Várias propostas políticas tentaram dar conta dessa falta de rumo da civilização ocidental. O Império de Mil Anos (nazismo), a sociedade sem classes (comunismo) são alguns exemplos de propostas políticas que levaram muitos a extremos. Certamente em ambas há a promessa de um futuro melhor para a humanidade, e com isso, apesar de antagónicas, podem ser consideradas, sob certos aspetos, profundamente modernas.

4 KOSELLECK, R. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro:

No caso da arquitectura, o Movimento Moderno e a arquitectura defendida por Raul Lino e José Marianno, denominada por este de Arquitectura Tradicional Brasileira, eram mostradas à época como propostas diametralmente opostas. Contudo, em uma observação mais atenta pode-se perceber que em ambas está presente o sentido de modernidade.

A questão basilar entre estes movimentos estava centrada no uso do ornamento. Para o Movimento Moderno a ideia era clara: o ornamento era crime, como defendia Adolf Loos5 em seu manifesto de 1908: “Ornamento é um desperdício de mão-de-obra e, por isso, um desperdício de saúde. Foi sempre assim. No entanto, hoje o ornamento também significa desperdício de material e ambos significam desperdício de capital.” Marianno e Lino, ao contrário, viam o ornamento como um conjunto de elementos que propiciavam um entendimento da arquitectura no sentido cultural, ou seja, esses remetiam a uma ideia de pertencimento — “Nunca se pergunte em que estilo vai construir. É lógico que se construa no estilo da região. É natural que se respeitem tradições locais”6.

Para a Academia, o ornamento era tomado como uma espécie de vestimenta que encobria os elementos arquitectónicos desagradáveis e mecanicamente funcionais, formando assim uma composição de partes que tinham o intuito de dar carácter, decoro e dignidade à arquitectura. Contudo, no entendimento de Lino e Marianno, o ornamento deveria vir carregado de aspetos culturais e simbólicos; ao desprezá-lo, a obra arquitectónica passaria a possuir somente um carácter funcional, destituída assim não somente de qualquer referencia cultural e simbólica, mas também artística. Novamente Loos7 já prenunciava ao lançar as bases da arquitetura Moderna que “só uma parte muito pequena da arquitetura pertence à arte: o túmulo e o monumento. Tudo mais, tudo quanto serve a um fim, deve ser excluído dos domínios da arte.”

Para os adeptos do Movimento Moderno, a arquitectura de Lino e Marianno era na verdade uma decorrência clara do ecletismo, já que esta não eliminava o ornamento, ao contrário, ele era parte integrante dela como mais uma forma historicista de arquitectura.

Assim, dirigem-se diversas críticas, tanto do lado português quando do lado brasileiro, a essa arquitectura de carácter culturalista, que era vista como antagónica à modernidade, e assim conservadora e afeita ao lado mais reacionário dos costumes. A modernidade, nesse início de s. XX, deveria ser marcada justamente por uma limpeza mais profunda de tudo aquilo que remetesse a antiga ordem presente no s. XIX. O momento inspirava não mais a conciliação, mas uma substancial redução a tudo que fosse realmente necessário ao povo e a uma nova ordem que deveria se constituir.

Contudo, a ideia de limpeza presente nessa modernidade possuía um sentido bastante amplo que abrangia questões de cunho cultural, moral, racial, corporal, urbana e, no caso da arquitectura, ornamental – quantitativo, no caso do Movimento Moderno e

5

LOOS, A. Ornamento e crime. Lisboa: Edições Cotovia, 2004, p.229.

6 LINO, R. A nossa casa: apontamentos sobre o bom gôsto na construção das casas simples. Edição

Atlandida, s/d., p.15.

7 Apud FRAMPTON, K. História crítica da arquitetura moderna. São Paulo: Martins Fontes, 1997,

qualitativo, em relação à arquitectura de Lino e Marianno. Ou seja, filiados às ideias de John Ruskin, Lino e Marianno também compactuavam que o ornamento seria um crime caso não estivesse vinculado a qualquer culturalidade.

A arquitectura das nossas casas é assunto sério demais para que nos comprazarmos em fantasiar decorações histórico-scenográficas, sem uma razão de ser adiada na vida que nos cerca, […] o que nós queremos é o reconhecimento do que é essencial, é o afêrro à nossa índole verdadeira, o sentimento e a intuição das cousas portuguesas8. Limpeza significava, em última análise, abandonar de vez a ideia liberal, tanto do âmbito económico e político quando ideológico, tão característica do século XIX, em prol de um novo (limpo) mundo a ser construído. Em quase toda a intelectualidade de então, perpassou a proposta de constituir um novo tempo, um novo homem, uma nova sociedade, um novo sistema.

Assim, se Lino ou Marianno se afastavam dos princípios do Movimento Moderno como um herdeiro do racionalismo iluminista e internacionalista, como uma expressão do mundo da máquina, contudo, eles se aproximavam deste movimento no momento em que propunham repensar os paradigmas arquitectónicos de modo mais radical. “Deploro sinceramente que os arquitetos brasileiros não tenha sabido aproveitar o que realmente há de bom e defensável na teoria de Le-Corbusier”9. As ideias do arquitecto franco-

suíço eram tidas válidas, mas teriam que ser adaptadas as realidades regionais. “Por ora, eu não vejo nenhum indício de ajustamento das idéias européias, ao cenário geográfico e social da nação. […] É uma pena, porque essa técnica nova, indiscutível como um dogma sagrado, poderia ser de grande utilidade aos arquitetos brasileiros”10.