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Premissas para se pensar a identificação na psicose

2 AS IDENTIFICAÇÕES

2.6 Premissas para se pensar a identificação na psicose

Para pensarmos como se manifesta a identificação na psicose, considerando nossas observações a respeito da identificação primitiva, algumas noções básicas sobre essa estrutura devem ser esclarecidas. Dito isto, analisaremos, a partir do ponto de vista desenvolvido por Lacan (2010a), uma das principais particularidades concernente ao estudo das psicoses, aquela a qual poderemos nos referir quando formos trabalhar a melancolia: a foraclusão do significante Nome-do-Pai.

No Seminário 3 – As psicoses, Lacan busca precisar o que afetaria eminentemente o psicótico a partir da análise empreendida por Freud sobre a autobiografia do presidente Schreber, estabelecendo o conceito de foraclusão como o ponto de partida para se pensar seus fenômenos elementares e transtornos de linguagem. Nesse seminário, Lacan (2010a) parte dos seus estudos saussurianos a respeito do significante para trabalhar o que ele coloca como sendo o rechaço de um significante primordial na estrutura psicótica, onde haveria uma falha da função paterna quando comparado à estrutura neurótica, sendo a partir desse ponto que iremos iniciar nossa análise.

Como vimos, o significante Nome-do-Pai vem no lugar do significante desejo da mãe, acarretando o recalque originário e produzindo, a partir daí, um sujeito barrado pela falta desse objeto primordial, que também não será possuído pelo Outro, sendo ambos marcados pela falta, posto que o objeto fálico não pertence nem à mãe nem ao pai, mesmo tendo sido antes atribuído a este. O sujeito barrado surgiria, portanto, no intervalo entre os significantes da cadeia, que teve seu início a partir desse processo de metaforização, do qual também originou o universo simbólico do sujeito referenciado por esse processo de significação fálica e permitindo que a coisa seja representada pela palavra. O processo metafórico fundamenta- se, portanto, na introdução de um significante novo (S2) que faz com que o significante anterior (S1) passe sob a barra da significação, sendo recalcado e mantido inconsciente. Com isso, o significante Nome-do-Pai “inaugura a alienação do desejo na linguagem” (DOR, 2008, p. 94, grifo do autor).

37 À semelhança da cadeia de significantes, o desejo permanece sempre insatisfeito devido à barra imposta pela linguagem. Ele renascerá continuamente, uma vez que, num automatismo de repetição, a criança continua sempre a renomear o seu objeto de desejo num processo metonímico, ou seja, a satisfação está sempre em outro lugar, caracterizando o desejo como insatisfeito. O Nome-do-Pai surge como ponto de referência que orientará a cadeia significante, sendo ele que ligará o registro simbólico ao imaginário e ao real. Além disso, esse significante determinará o deslizamento metonímico do objeto de desejo, instalando a significação fálica e delimitando o ponto ao qual o sujeito sempre retorna e que está relacionado com as voltas da demanda, como vimos no toro. O sujeito, portanto, realiza as voltas em torno dos círculos plenos, errando em 1 na sua conta, que seria o círculo vazio: ele nunca alcançará o vazio central, a partir de onde podemos encontrar limites bem definidos. Se algo fracassa no processo metafórico, ou seja, se o Nome-do-Pai não comparece quando é solicitado, não haverá a substituição do significante do desejo da mãe, o que acarretará em uma série de consequências para a organização do real a partir do simbólico e do imaginário. Quando o Nome-do-Pai não comparece, temos a Ver werfung, ou seja, a foraclusão desse significante específico, fenômeno responsável por fazer falhar o recalque originário. A cadeia de significantes fica sem uma organização pautada na lei simbólica, promovendo um desligamento entre significante e significado. Nesse caso, haveria uma falha no recalque originário nas psicoses, tornando necessária, para o psicótico, a busca de uma outra forma de se defender de ser o próprio significado do desejo da mãe.

A estrutura psicótica, no entanto, não pode ser confundida com o processo de recalque originário, já que ela está relacionada com a foraclusão de um significante específico, o Nome-do-Pai no lugar do Outro, acarretando no “fracasso da metáfora paterna, que apontamos a falha que confere à psicose sua condição essencial, com a estrutura que a separa da neurose” (LACAN, 1998, p. 582). A foraclusão primordial refere-se a uma expulsão primária, anterior ao próprio Édipo e baseada no princípio prazer-desprazer, sendo, portanto, do domínio do corpo que nós falamos.

Devido a essa falha do recalque originário na psicose, ou seja, da inscrição do significante Nome-do-Pai, podemos dizer que a identificação ao traço unário e, por consequência, a instalação do desejo como desejo insatisfeito, encontram uma série de consequências no que se refere ao seu percurso. Isso nos permite pensar que a identificação primária seria a base para pensarmos os fenômenos psicóticos, daí conhecermos essa estrutura como caracterizada por um inconsciente à céu aberto.

38 seguintes, de forma que o pai mítico e gozador, aquele dos prelúdios do Édipo, mantém seus domínios sob a forma de um Ideal-de-Eu desenfreado. Daí Lacan (2010a) afirmar que os fenômenos psicóticos encontram-se estagnados em comparação com qualquer dialética. A foraclusão seria, a partir disso, um rechaço sem dialética (STEVENS, 2016), produzindo não o retorno de uma verdade recalcada, como ocorreria nas neuroses, mas o retorno no próprio real.

A foraclusão do Nome-do-Pai, portanto, acarreta prejuízos à segunda identificação, os quais consistem na impossibilidade dos significantes se ligarem por associações de causalidade (como mostramos a partir da Carta 52), na qual observamos que um S1 é encaminhado a um S2, que por sua vez, liga-se a um S3 e assim por diante, em referência sempre a um ponto nodal que se articula com a metáfora do Nome-do-Pai. Nas psicoses, observamos a prevalência da primeira identificação, na qual os significantes estão soltos ou ligados por simultaneidade, como ilustrado na fórmula S1+S1, ou ainda vários S1 sem referência, soltos.

A carência da significação fálica acarreta, dessa forma, uma dificuldade de retroação da cadeia, de orientação, de forma que a produção de sentido encontra-se indecisa ou se encontra fixada (MALEVAL, 2009), sem um ponto de basta que permitiria o fechamento da significação, fazendo emergir um gozo no corpo insuportável para o sujeito, um retorno do real daquilo que fora rechaçado do simbólico. Como resume Maleval (2009, p. 210):

Las consecuencias de la carencia de la significación fálica revelan ser de diversos órdenes: por una parte, ruptura del vínculo interno de la cadena significante y disolución de la conexión de la intencionalidad del sujeto con el aparato significante; por otra parte, aparición de pedazos de lenguaje en lo real, en forma de alucinaciones o de neologismos; finalmente, desregulación del goce, que ya no está sometido al límite fálico.

Quando há a solidificação entre o primeiro par de significantes (S1 e S2), Lacan (1973 apud STEVENS, 2016) afirma que há holófrase, ou seja, não há intervalo entre esses significantes. Isso quer dizer que esse par é reduzido a um único S1, de forma que o sujeito não surge como barrado a partir do intervalo entre os significantes. Dessa maneira, o sujeito na psicose aparece como solidificado em um significante S1, como se estivesse petrificado. A holófrase designa o sujeito sem, no entanto, representá-lo, e pode ser descrita a partir dos três tempos considerados por Lacan na função da alienação (STEVENS, 2016).

No início, existe um sujeito que ainda não se inscreveu, isto é, ele não é nada. O sujeito vem, como já elucidamos anteriormente, inscrever-se no campo do Outro, a partir de um primeiro significante (S1) que o petrifica no campo do significante. Um segundo

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significante (S2) vem registrar-se, fazendo surgir um sujeito barrado ( ) e um resto irredutível dessa operação e que está relacionado ao objeto metonímico do desejo, como podemos perceber a partir do discurso do mestre: , a partir do qual também teríamos que um significante é aquilo que representa o sujeito para outro significante (LACAN, 1998).

A holófrase determina que o sujeito não funciona a partir do intervalo entre os significantes, visto não haver esse intervalo, estando portanto, petrificado. Como afirma Stevens (2016, tradução nossa), “Este é o S1 do significante da holófrase, que é um puro sujeito do significante , sujeito "identificado ", mas não representado no Outro. É por isso que é mais correto dizer " petrificado " em vez de ‘identificado”1

, ou ainda, petrificado na primeira identificação.

Dessa maneira, para pensarmos a psicose e todas as suas implicações características, devemos considerar como dominante o terreno da primeira identificação, a identificação mítica ao pai da pré-história pessoal. O psicótico, sem o entalhe do traço unário, “vai se sentir simplesmente solidário com um presente sempre renovado em que nada mais lhe permitirá discernir o que existe como diferença no real.” (SAFOUAN, 2006, p. 149), já que o tempo histórico é inaugurado a partir do complexo de Édipo. Esse fator não exclui os psicóticos da linguagem, pois, como vimos, existe a introdução de significantes de base para o sujeito. Esses, no entanto, não se organizam de maneira dialética, mas por simultaneidade. Portanto, a questão da psicose centrar-se-á a partir de problemas na segunda identificação, sendo a identificação primitiva a responsável pelos fatores dessa afecção, como uma relação problemática com os domínios do corpo, a presença de um Ideal-de-Eu com seus mandatos de gozo e sua vigilância alucinante e o inconsciente à céu aberto.

Tendo em vista essas considerações acerca do estudo da identificação e, mais especificamente, da maneira como ela comparece na psicose, continuemos nossa trajetória em busca de esclarecimentos acerca do processo de identificação na melancolia, passando agora ao estudo do conceito de objeto tal qual ele surge na teoria freudiana e na releitura empreendida por Lacan.

1

“C’est le S1 du signifiant holophrasé qui est um pur sujet Du signifiant, sujet <<identifié>> mais non represente dans l’Autre. C’est pourquoi Il est plus exact de Le dire <<pétrifié>> plutôt que <<identifié>>.”

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