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Preparação para o Toré Terreiro Aldeia Travessão do Ouro Própria autora, 2016

Parte II. Estudo Empírico

Foto 13. Preparação para o Toré Terreiro Aldeia Travessão do Ouro Própria autora, 2016

As primeiras notas sobre a terminologia Toré estão na obra Vocabulário pernambucano, do fim do século XIX de Pereira da Costa, onde ele relata como sendo uma dança cantada entre os caboclos de Cimbres15. Para os indígenas do nordeste o Toré vai além da dança, da festa, é uma “ciência” para os povos. Como afirma Dona Maria Roseno “é uma tradição, um divertimento pra mim, que eu conheço, que eu acredito. O Toré pra mim é um divertimento, eu acho” (Dona Maria Roseno, Aldeia Travessão do Ouro, abril, 2016). São suas cosmologias, seus símbolos e representatividades dos antepassados. E por isso, essa “ciência”, quando comemorativa, festiva, traz no íntimo, lembranças felizes da comunidade. Nas palavras de Dona Lindalva Roseno dos Silva, o Toré é a alegria dos Pipipã de Kambixuru:

O que é o Toré? Ah! O Toré pra nós é nosso divertimento. É a nossa felicidade. Porque o Toré ele traz tudo pra nós. Às vezes ainda danço, mas não aguento mais as pernas, é doída muito. Deu uma dor nas minhas pernas tão grande que eu não podia me levantar. Era as pernas doendo, mas essa médica que foi-se embora agora, ela passou uns comprimidos que graças a Deus vou pra todo canto, eu ainda subo aquela serra ali (D. Lindalva Roseno da Silva, Aldeia Capoeira do Barro, abril de 2016).

A partir da década de 30, a ressurgência das práticas rituais dos Torés (reforço que são mais de 300 povos indígenas hoje, logo os Torés são particulares de cada etnia), serviram para comprovar a “indianidade” (Grünewald, 2005, 2008; Viveiros de Castro, 2006) as identidades étnicas dos indígenas do nordeste (Oliveira 2011). O Serviço de Proteção ao Índio (SPI) determinava que, para atestar se aquela população era indígena, precisava dançar o Toré. Esta situação resultou no reconhecimento das tais populações, assim como dos territórios tradicionais nos quais viviam.

Para comprovar a indianidade recém ressurgida, Arruti (1996) aponta o Toré como expressão da legitimação e do reconhecimento étnico que fundamenta o processo de etnogênese dos indígenas do nordeste. Juntamente com o argumento de Oliveira (1999), que evidencia o reconhecimento da identidade étnica como “autoclassificatória”, ou seja, aceitar- se, e reconhecer-se e como Pipipã, ou como de qualquer outro grupo étnico, é o primeiro passo para que o Estado venha ratificar esse reconhecimento. As apresentações do Toré, seja ele para festividades ou rituais particulares, validam estas identidades. Como explica o senhor Gerôncio:

O Toré é um passo que ficou dos nossos antepassados, porque senão fosse o Toré, a gente não tinha como dizer hoje que é índio. Porque eu conheço índio aquele que realmente canta o Toré, aqueles que dança. Porque a gente sabe que o cantar é uma

15 Referente aos Xucuru de Ororubá, etnia do município de Pesqueira, Pernambuco (Fialho, 1998; Silva, 2008);

tradição que vem dos mais velhos, a gente sabe que é quando aquela pessoa tá ali na frente é um dom que Deus deixou. Então o toré pra nois, ele é muito valioso. Porque com esse ritual ele passa a ser índio (Sr. Gerôncio Expedito. Aldeia Travessão do ouro, abril de 2016).

Mário de Andrade, tomado pela iniciativa da Missão de Pesquisas Folclóricas (1938), mencionou que a prática do Toré se tornou habitual entre os nativos da região, ele registrou o povo Pankararu. Neste mesmo período surgem registros sobre o uso ritualístico da Jurema (Oliveira, 1942). Os dançantes/brincantes dos Torés podem ou não utilizar a Jurema em seus rituais, depende para qual finalidade o Toré está sendo realizado. Quando do uso da Jurema, a festa, a brincadeira, torna-se um momento místico religioso para os indígenas do nordeste. O Toré e a Jurema estão intimamente ligados, apesar de terem ritualísticas diferentes.

O Toré como constituinte das tradições dos indígenas do nordeste, aparece de diversos modos, de como acontecem as suas variações, suas performances nas comunidades indígenas. Dançar, realizar, praticar o Toré é a gênese da ritualística sagrada para os grupos étnicos. Até então invisibilizado, o Toré hoje também é resistência, é a participação política das comunidades, é como os Pipipã de Kambixuru e os demais povos mostram suas identidades, gritam à sociedade não-indígena que eles estão ali para lutar pelo o que é deles por direito: a liberdade, o reconhecimento, o território sagrado. O Cacique valdemir fala do Toré como um ponto essencial para a identidade Pipipã:

A nossa identificação é a nossa força, como a gente diz; ela está relacionada às questões espirituais. O povo Pipipã é um povo muito religioso. É um povo muito supersticioso. É a nossa identidade, é o fortalecimento da nossa identidade. Ela está relacionada diretamente com as nossas práticas espirituais. Uma delas é o Toré, que difere de todos os outros povos do nordeste, a forma de celebração do Toré feito pelo povo Pipipã. Nós dizemos que o nosso Toré está ligado ao passado, aos nossos antepassados, aos nossos guias, aos nossos mestres. Ele tem toda uma força, é ele que nos fortalece. É ele que nos identifica. É ele que nos dá força pra tá na luta, porque através dele chamamos os espíritos da natureza, os espíritos dos nossos encantados, dos nossos mestres, dos nossos que se foram. É através dele, e a nossa pisada é uma pisada diferente das demais, como diz nosso Pajé: “nós pisamos com força”! (Cacique Valdemir, aldeia Travessão do Ouro, abril de 2016).

O indígena do nordeste já nasce dentro do Toré, faz parte do seu dia a dia, das práticas e hábitos da comunidade, inclusive no espaço escolar. Como aponta Arruti (1996), o Toré não é uma somente coreografia, ele é “o primeiro caminho até os Encantados [...] Ensinar o Toré, portanto, não implica a simples disseminação de uma semelhança, mas também a possibilidade de produzir diferenças” (p.33). Para dona Maria Cileide, ensinar o Toré é resguardar os conhecimentos transmitidos pelos mais velhos para que assim possam conservar suas tradições.

E a tradição do Toré é muito boa. Sempre. Eu acho muito bom que as crianças, que esse povo mais novo fique bem prestando atenção, aí eles já sabem o que vão fazer né. Com a geração mais velha vai se mandando dessa vida pra outra, a geração mais nova que já vai sabendo o que vão ficar fazendo. Ensinar o Toré pras crianças é muito bom, é uma tradição muito boa. E a gente vai ficando mais velho né, a gente não sabe que momento que tá aqui nessa vida e que parte pra outra vida né. Aí ensinando pras crianças, aí já fica os meninos já tudo, as crianças, esse povo mais novo que nem esses aqui tudo (neste momento mostra os netos que estão ao seu lado, mas não aparecem no momento da entrevista). Fica tudo treinado né. Um mais velho partindo dessa vida, os outros que vão ficando, mais novo, já pode continuar na tradição que já ficaram tudo treinado, trabalhado pra o Toré (Dona Maria Cileide, Aldeia Capoeira do Barro, abril, 2016).