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Pressupostos da Clínica da Atividade: a atividade trabalho

Nossas escolhas teóricas não se justificam nelas mesmas, por trás das disputas teóricas situa-se um embate mais fundamental, de caráter ético-político, que diz respeito ao papel da teoria na compreensão e transformação do mundo social [...]. As escolhas teóricas, neste sentido, não são nem neutras nem arbitrárias, tenhamos ou não consciência disto.

Gaudêncio Frigotto (1998)

A Clínica da Atividade é uma vertente teórico-metodológica da Psicologia do Trabalho, resultante de pesquisa e reflexão teórica conduzidas, na década de 1990, por Yves Clot e um grupo de colaboradores vinculados ao Conservatoire National des Arts et Métiers (CNAM), em Paris. Conforme comentado em seção anterior, trata-se de uma vertente que se filia à perspectiva histórico-cultural soviética, fundada e liderada por Vigotski e colaboradores, bem como à análise da linguagem proposta pelo Círculo Bakhtin. A proposta teórica da Clínica da Atividade para a Psicologia em geral (e, em decorrência, para a Psicologia do Trabalho) tem em seu “núcleo duro”3 uma abordagem

da análise do trabalho embasada numa perspectiva dialógica do funcionamento psicológico e do desenvolvimento humano.

A abordagem histórico-cultural exerceu uma influência preponderante sobre a compreensão epistemológica de sujeito na Clínica da Atividade, que em termos de condições teórico-metodológicas possibilita uma análise psicológica do trabalho afastada dos paradigmas tradicionais de pesquisa. No âmbito da pesquisa, essa vertente teórica considera os trabalhadores como sujeitos ativos na interpretação do trabalho que desenvolvem. Assim, para Clot (2006), o que mais interessa para a Psicologia é o desenvolvimento do pensamento e da atividade dos trabalhadores pelos próprios trabalhadores.

O estudo entende que a subjetividade é constituída pela e na atividade, e que o reconhecimento refere-se à capacidade do sujeito em reconhecer a si mesmo na atividade. Considera o trabalho como uma atividade permanente de recriação de novas formas de viver, não apenas como prescrições da tarefa, mas como uma concepção desenvolvimental de fazer parte de história de um ofício, que é ao mesmo tempo individual e coletiva (Clot, 2008, 2010b).

A visão de sujeito da abordagem histórico-cultural representa um modo de compreender as relações que esses indivíduos desenvolvem em seus diferentes espaços de interação social (González-Rey, 2005). A Clínica da Atividade, pautada por essa concepção de sujeito, evidencia em sua abordagem sobre o trabalho mais que a atividade explícita realizada pelo sujeito em seus espaços laborais, afasta-se das ferramentas tradicionais de análise de desempenho. Tal perspectiva conta, substancialmente, com o poder falar e interpretar dos próprios trabalhadores envolvidos

na observação, não se tratando apenas de “outras formas” de dizer, mas de outras coisas

também considera mais importante do que a coisa em si que foi dita ou comportamento produzido, o processo implicado nas possíveis formas de dizê-lo, de interpretá-lo à luz das condições subjetivas do indivíduo, e das condições do meio em que ele atua.

A Clínica da Atividade propõe-se a estudar o trabalho como uma atividade dirigida e como uma função psicológica específica na vida do sujeito, afirmando que o

trabalho “só preenche sua função psicológica para o sujeito se lhe permite entrar num

mundo social cujas regras sejam tais que ele possa ater-se a elas” (Clot, 2006, p. 18). Para o autor, o trabalho é considerado uma atividade constante de recriação, envolvendo a criatividade sob novas formas de vivenciá-lo. Assim, o trabalho é considerado uma atividade triplamente dirigida: para si mesmo, entre o que o sujeito pode fazer, o que gostaria de fazer e o que escolheu para fazer ou não na atividade; entre o sujeito e o objeto da tarefa, no sentido das confrontações que enfrenta para afirma-se nesse real; e entre o sujeito e o outro, como atividade compartilhada, mediada por um gênero profissional.

O professor na EAD, por exemplo, desenvolve sua atividade a partir de sua experiência anterior de docência, e de seus contatos com artefatos tecnológicos virtuais. Seu saber fazer encontra-se relacionado com o modo que foi vivenciado essas etapas, isto é, o que elegeu para fazer ou não em sua atividade de trabalho. Aquilo que foi impedido, conscientemente ou não, se confronta com as demandas que a atividade docente lhe solicita. Nesse embate, a ação do professor não se concretiza somente via enfretamento individual, mas se norteia por uma ação genérica que o respalda num grupo de profissionais, porque é desse modo genérico (dessa orientação genérica) que os demais pares desenvolvem a atividade de trabalho.

Clot (2006) aponta que a análise psicológica do trabalho é sempre análise do sujeito, de um grupo de trabalhadores, referente às atividades efetivamente realizadas ou

impedidas dos sujeitos. De tal modo que a atividade contrariada apresenta-se como cerne de análise da atividade de trabalho proposto pela Clínica da Atividade. Nesse sentido, Osório da Silva (2007) destaca que a atividade de trabalho apresenta-se compreendida como o exercício coletivo de ligação social com o real, convocando fortemente os trabalhadores, individual e coletivamente, a criarem e recriarem cotidianamente seus modos e condições de vida.

Ainda referindo-se ao professor na EAD, é possível perceber que esse tipo de trabalho o convoca expressivamente a pensar seus modos de atuação pedagógica, que geralmente advindo da modalidade presencial, se depara com situações que lhe exigem o domínio de outras competências, ao lidar constantemente com a interatividade virtual como recurso essencial do seu fazer docente. Essa característica, por exemplo, o convida a refletir coletivamente sobre a relação professor-aluno, a concepção pedagógica de ensino e aprendizagem que o circunda, e fundamentalmente sobre sua função(s) nesse espaço.

Nesse desenvolvimento da atividade, é importante reportar-se a distinções conceituais fundamentais da principal unidade de análise dessa abordagem: a atividade. Dentre os conceitos, aponta-se a própria definição de atividade adotada nesta pesquisa, bem como os demais constructos que a compõe, como: a atividade de trabalho, a tarefa, o trabalho prescrito, o trabalho real, o real da atividade, o último intrinsecamente relacionado aos impedimentos da atividade.

Compreende-se atividade como um processo que é eliciado e dirigido por um motivo (Leontiev, 1984), de modo que por trás da relação entre atividades há uma relação entre motivos. A atividade de trabalho é uma estratégia de adaptação à situação real de trabalho, significa o trabalho real efetivamente realizado pelo indivíduo, a forma pela qual ele consegue desempenhar suas tarefas. A distância entre o prescrito e o real é

a manifestação concreta da contradição sempre presente no ato de trabalho (Guérin, Laville, Daniellon, Duraffour, & Kerguellen, 2001). Para Montmollin (1990), a atividade é um processo complexo, em evolução, destinado a adaptar-se a tarefa, mas também com a função de transformá-la.

Guérin el al. (2001) fazem uma distinção conceitual entre tarefa e atividade de trabalho; a tarefa não é o trabalho, mas o que é prescrito pela organização ao trabalhador. A tarefa é exterior ao trabalhador, apresentando-se como um conjunto de prescrições impostas a ele. Os autores consideram que tarefa e atividade são aspectos indissociáveis do trabalho. Uma tarefa sem atividade é comparável a máquinas paradas; no caso de uma atividade não relacionada com a tarefa, o trabalhador fica impossibilitado da sua ação. Ao fazer uma distinção entre o prescrito e o real apontam que as condições reais de trabalho são sempre diferentes daquelas condições determinadas, os resultados efetivos são sempre, ao menos parcialmente, diferentes dos resultados antecipados. Logo, nesse espaço que vai do prescrito ao real, inúmeras (re)normalizações acontecem na atividade desenvolvida pelo sujeito.

Clot (2006) acrescenta aos conceitos de atividade, tarefa, trabalho prescrito e trabalho real, advindos da Ergonomia, o conceito de real da atividade, que se refere à atividade do indivíduo sobre si mesmo, como uma espécie de filtro subjetivo que concede um sentido para a vida do sujeito. O real da atividade consiste naquilo que pode ser feito, mas se escolhe, em determinadas circunstâncias (que podem mudar) não se fazer. Distinguindo a atividade realizada do real da atividade, o autor menciona que a atividade realizada é o que se faz, enquanto o real da atividade consiste também no que não se pode fazer, mas gostaria de fazer, e até mesmo no que se faz para não fazer aquilo que deveria ser feito.

Nesse contexto, conforme observou Vigotski, a “atividade vencedora” (aquela que foi escolhida para realização da tarefa) é resultante de conflitos não necessariamente conscientes entre várias possibilidades de atividades que poderiam igualmente realizar a tarefa com caminhos e custos (psicológicos, sociais, econômicos) diversos (Vigotski, 1995). Há, então, uma ruptura, na atividade, entre as pré-ocupações dos sujeitos – planos, desejos e aspirações – e aquilo que são forçados a realizar – uma atividade prescrita pela organização, às vezes, vazia de significado (Bendassolli, 2011). Para Clot (2010b), a perda de significado da atividade a desvitaliza. Logo, a impossibilidade de realizar um trabalho bem feito, ou de discutir sobre a qualidade do que se faz, impede os trabalhadores de se reconhecerem no próprio trabalho, gerando o que o autor denomina de uma atividade vazia.

Portanto, como apontou Bendassolli (2011), o desgaste no trabalho está relacionado ao que o trabalhador não pode fazer, e que gostaria, e àquilo que ele é forçado a fazer. Quando ocorre o impedimento, a energia associada à atividade acumula-se, sendo também este um fator de adoecimento, pois a saúde está ligada à intensidade dessa energia. A saúde relaciona-se à capacidade de recriação das situações, com desenvolvimentos inesperados, com a possibilidade de recriar o real do trabalho, por meio da autoiniciativa do trabalhador.

Vieira e Faïta (2003) consideram que a representação coletiva da atividade repousa, ao menos em parte, tanto no modo como cada um está apto a pensar esta atividade, quanto no modo que o protagonista coletivo está pré-disposto a dizer dela, captando ou anulando os desejos individuais. Assim, para melhor compreender a arquitetura de mobilidade e desenvolvimento da atividade, é importante entender seus contextos e interconexões nos âmbitos: pessoal, interpessoal, transpessoal e impessoal.

No artigo Action et connaissance en clinique de l’activité, Clot (2004) explicita didaticamente os contextos de desenvolvimento da atividade: a dimensão pessoal, refere-se à singularidade do sujeito na atividade, ao seu agir individual; a interpessoal diz respeito à existência de um outro, um destinatário a quem seu agir se direciona; a transpessoal reporta-se a atividade sendo atravessada pela história de um coletivo, das circunstâncias socioculturais em que se insere a atividade; por fim, a dimensão impessoal, que se refere as normatizações planejadas para a tarefa, e dizem respeito ao esforço de manutenção de um eixo de prescrição para além das outras três dimensões.

Da Rocha Falcão (2008) menciona que os contextos da atividade não devem ser compreendidos estritamente como entidades ontológicas em si, pois isto explodiria o modelo, na medida em que a tarefa, como prescrição impessoal, é uma abstração considerada para fins de análise. Enfatiza-se que a dimensão da impessoalidade reporta- se a um esforço de buscar um marco de referência no contexto do exercício repetido de atividades cotidianas que vá além das peculiaridades de cada situação vivida e forneça ao indivíduo uma orientação genérica – naturalmente insuficiente, porém, igualmente necessária – para a constituição da competência de quem exercita determinada atividade.

Essa orientação genérica, representada pelas prescrições da atividade, por mais rígidas que possam parecer, são influenciadas, e em algumas vezes, até modificadas pelas possíveis (re)invenções apresentadas em um métier-ofício. Para concretizarem-se, essas transformações da atividade passam de um âmbito individual, de estilização da atividade, para um nível coletivo de funcionamento, que se encontra compactuado pela mediação de um gênero profissional.