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4 A JUSTIÇA RESTAURATIVA NA FASE

4.1 PRESSUPOSTOS DA JUSTIÇA RESTAURATIVA

A Justiça Restaurativa é uma possibilidade de acesso à justiça por sistemas alternativos de solução de conflitos e vem sendo estudada a partir de experiências internacionais. No Brasil, a Secretaria de Reforma do Judiciário em parceria com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), instituiu em 2005 projetos pilotos para a aplicação do modelo de Justiça Restaurativa, sendo o Rio Grande do Sul, além de Brasília e São Paulo, um dos estados que vem se debruçando sobre o tema, provocando a discussão, o aprofundamento teórico além do exercício de práticas para o aprofundamento da proposta.

O processo restaurativo dá-se de forma colaborativa e inclusiva envolvendo as partes interessadas - vítima, infrator e comunidade - na decisão de como reparar o dano causado a todos pelo ato de transgressão. O paradigma proposto aproxima- se de valores fundamentais, que Marshall (2005, p.272) pontua como: “participação, respeito, responsabilização, honestidade, humildade, interconexão, empoderamento e esperança”. Dessa forma, tais processos restaurativos requerem e encorajam a prática desses valores através do estabelecimento de espaços dialógicos e de expressão coletiva, podendo ser considerados “restaurativos” se:

guiado por facilitadores competentes e imparciais, inclusivo, voluntário, fomentar um ambiente de confidencialidade, reconhecer convenções culturais, enfocar necessidades, demonstrar respeito, validar a experiência da vítima, esclarecer e confirmar as obrigações do infrator, visar resultados

transformativos e observar as limitações de processos restaurativos (MARSHALL, 2005, p. 273).

A proposta da Justiça Restaurativa apresenta, então, uma idéia de inclusão através da participação ativa no procedimento restaurativo23 propondo o envolvimento dos sujeitos, na elaboração de um acordo, numa construção compartilhada. No círculo, os seus valores fundamentais devem se concretizar. O poder é compartilhado, no sentido de que o direito de fala é de todos, sendo o ponto- de-vista de cada um legítimo. Nesse sentido, o que importa é o presente em direção ao futuro, mas mesmo assim não se diminui a importância de se saber como as pessoas estão agora em relação ao que aconteceu. Dessa forma, o acordo se dará entre as pessoas que, de forma proativa, formulam ações que possam ser realizadas concretamente na superação das rupturas das relações em decorrência da infração e, por conseqüência, que se fortaleçam essas relações.

A Justiça Restaurativa, como ressalta Sica,

Não é um modelo substitutivo ao atual, os modelos punitivos e restaurativos devem coexistir e complementar-se, pois que não há condições de prescindir do direito punitivo como instrumento repressor em determinadas situações-limite. [...] Assim frente a um direito penal concentrado no castigo, que consolida certas tendências irracionais, o paradigma restaurativo surge como etapa de um processo orientado à construção de um direito penal capaz de desmantelar os componentes irracionais que alimentam as exigências de exacerbação punitiva (SICA, 2007, p.34-35).

Para se compreender, então, o paradigma restaurativo é importante conhecer o paradigma retributivo. As diferenças fundamentais estão relacionadas ao modo de se ver o ato infracional, o autor do ato e a vítima do mesmo. No quadro a seguir, apresentam-se os pressupostos dos modelos da Justiça Retributiva e da Justiça Restaurativa, permitindo-se observar diferenças básicas entre os modelos, especialmente em quatro aspectos: o crime, a pena, a vítima e o infrator.

Justiça Retributiva Justiça Restaurativa Crime: categoria jurídica, violação da lei, ato

lesivo ao Estado Crime: ato lesivo a pessoas e comunidade Controle da criminalidade: função precípua do

sistema penal de justiça. Controle da criminalidade: primordialmente uma obrigação da comunidade. Compromisso do infrator: pagar multa ou cumprir

pena.

Compromisso do infrator: assumir responsabilidade e reparar o malfeito.

Crime: ato individual com responsabilidade

individualizada. Crime: ato com dimensões individuais e sociais de responsabilidade. A pena é eficiente quando:

a ameaça de punir previne o crime. A punição muda o comportamento

Punir só não adianta para mudar comportamentos, além de desagregar comunidade e relacionamentos.

Vítima: elemento marginal no processo judicial. Vítima: elemento central no desenrolar do processo e na solução dos problemas criados pelo crime.

Infrator: definido por seus defeitos e carências Infrator: definido por sua capacidade de restaurar o dano que causou.

Foco: estabelecer culpa por eventos passados -

cometeu o crime ou não? Foco: resolver problemas, determinar responsabilidades e obrigações no presente e no futuro - que precisa ser feito?

Ênfase em antagonismos. Ênfase em diálogo e negociação. Impor perda e sofrimento para punir, coibir e

prevenir.

Reconciliar para compensar as partes e restaurar o dano.

Comunidade: marginalizada, representada em

abstrato pelo Estado. Comunidade: facilitador do processo restaurativo.

Quadro 1 - Modelos de Justiça: Pressupostos Fonte: SCURO (2000)

O crime na Justiça Retributiva é visto como uma violação à lei, com responsabilidade individualizada. O infrator deve pagar uma pena cuja eficiência deve impor sofrimento para coibir e prevenir. Nessa ótica, o infrator é definido por seus defeitos, tendo como foco seu passado e o compromisso de assumir a pena. Quanto à vitima, não tem relevância, assim como a comunidade é representada pelo Estado.

Já nos pressupostos do modelo restaurativo o crime está relacionado a ato lesivo a pessoas e comunidade com dimensões individuais coletivas de responsabilidade. A idéia de punição para mudar comportamento é rebatida diante do resultado desagregador de comunidade e relacionamentos. Neste modelo, a vitima é o elemento central tanto do processo quanto na solução do conflito. O infrator, a partir da responsabilização pelo dano, é definido por sua capacidade de restaurar o que causou. A proposta é de reconciliar para compensar as pessoas e restaurar o dano, sendo a comunidade facilitadora do processo restaurativo.

Wachtel & McCold (2003), em sua teoria conceitual de Justiça Restaurativa apresentam a janela da disciplina social (figura 1) para discutir as abordagens disciplinares que vão desde a negligência, passando pela punição e permissividade até a restauratividade. Para os autores,

Quatro palavras descrevem resumidamente as abordagens: NADA, PELO, AO e COM. Se negligente, NADA faz em resposta a uma transgressão. Se permissiva, tudo faz PELO (por o) transgressor, pedindo pouco em troca e criando desculpas para as transgressões. Se punitiva, as respostas são reações AO transgressor, punindo e reprovando, mas permitindo pouco envolvimento ponderado e ativo do mesmo. Se restaurativa, o transgressor encontra-se envolvido COM o transgressor e outras pessoas prejudicadas, encorajando um envolvimento consciente e ativo do transgressor, convidando outros lesados pela transgressão a participarem diretamente do processo de reparação e prestação de contas. O engajamento cooperativo elemento essencial da justiça restaurativa. (WACTHEL & MCCOLD, 2003)

Figura 1 - Janela de Disciplina Social

A janela de disciplina social apresenta modelos distintos sobre a visão da disciplina no que diz respeito ao equilíbrio entre o controle, que são os limites e o apoio, que é o encorajamento, a assistência. Demonstra, ainda, que os modelos estão fundamentados na punição, quando o controle é maior que o apoio (pedagogia da vingança e da culpabilização dos sujeitos); na negligência, quando controle e apoio são baixos, sendo uma abordagem caracterizada pela indiferença; na permissividade, quando há baixo controle e alto apoio, restringindo-se à tutela; e na restauratividade, quando controle e apoio mantêm-se altos em termos da disciplina social.

Dessa forma, uma linha diagonal traçada desde o ângulo de convergência entre controle e apoio até a outra ponta da figura indicará um crescente de responsabilidade social compartilhada.

A abordagem restaurativa com alto controle e alto apoio confronta e desaprova as transgressões enquanto reafirmando o valor intrínseco do transgressor. A essência da justiça restaurativa é a resolução de problemas de forma colaborativa. Práticas restaurativas proporcionam, àqueles que foram prejudicados por um incidente, a oportunidade de reunião para expressar seus sentimentos, descrever como foram afetados e desenvolver um plano para reparar os danos ou evitar que aconteça de novo. A abordagem restaurativa é reintegradora e permite que o transgressor repare danos e não seja mais visto como tal (MCCOLD e WACHTEL, 2003).

BRANCHER (2006, p.31) afirma que a Justiça Restaurativa propõe que os componentes limites e apoio “sejam ministrados de forma simultânea e ponderada e associada a ingredientes éticos capazes de promover autonomia e responsabilidade”.