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1.2 E LEMENTOS PARA UMA ANÁLISE DA PRODUÇÃO ACADÊMICA EM ENSINO DE BIOLOGIA

1.2.1 Pressupostos teóricos e práticas de pesquisa

Especialmente dos estudos de Gamboa (1987), Fiorentini (1994) e Megid (1999) é possível depreender que as pesquisas que analisam foram tomadas pelos pesquisadores como expressões de concepções mais abrangentes, que constituem uma espécie de "pano de fundo" onde estão circunscritos tanto os dados que obtêm quanto as análises que realizam. Ou seja, esses pesquisadores não tomam as pesquisas que analisam a partir de si mesmas, mas em conexão com determinantes

históricos, sociais, culturais, políticos e econômicos vigentes, os quais dão inclinação à produção científica.

Para Gamboa (1987), por exemplo, a concreticidade da pesquisa forma-se em um nível complexo, especialmente porque elementos históricos determinam sua produção.

O concreto na investigação científica está permeado pelas condições históricas de sua produção com suas inter-relações materiais, científico- culturais, sociais e políticas. É concreto precisamente por ser um processo situado, datado e direcionado. (GAMBOA, 1987, p. 68).

Nos estudos de Fiorentini (1994) e Megid (1999), o agrupamento das pesquisas, realizado conforme características compartilhadas, explicitou algumas tendências claramente sintonizadas com o contexto histórico-social, mostrando que a prática científica está condicionada socialmente. Esses pesquisadores detectaram que na década de 70, por exemplo, grande parte das teses e dissertações produzidas mantiveram estreita relação com a pedagogia tecnicista, hegemônica no país naquele período. Essas pesquisas revelaram grande preocupação em "treinar" adequadamente os professores e propor, descrever e experimentar novos e eficazes materiais instrucionais e técnicas de ensino (instrução programada, estudo dirigido, módulos instrucionais), com vistas à melhoria do processo de ensino-aprendizagem e, conseqüentemente, à formação de mão-de-obra qualificada, exigida pelo sistema produtivo em vigor.

Nos anos 80, no bojo do processo de abertura política e redemocratização do país, o discurso pedagógico começa a modificar-se e receber influências de princípios construtivistas, originários de pesquisas desenvolvidas em outros países, sobretudo europeus. Um princípio fundamental que passa a estruturar essa nova perspectiva foi a compreensão de que o aluno chega à escola com modelos explicativos (pensamento intuitivo ou prévio) sobre o mundo ao seu redor e, portanto, levá-lo a participar do processo do conhecimento de modo interativo é fundamental. O referencial construtivista, com suas diferentes linhas, passa então a influenciar as investigações sobre a educação científica. Novos problemas foram propostos e novas formas de solucioná-los foram buscadas, sensíveis também ao novo contexto histórico-social.

Essa perspectiva, presente em algumas das pesquisas apresentadas, mostra que a ciência e a produção em Ensino de Ciências, enquanto atividades humanas,

são intrinsecamente históricas e estão também na dependência de fatores sociais e culturais. No estudo de Gamboa (1987), essa premissa foi balizadora, uma vez que, ao estudar a problemática epistemológica das pesquisas em educação, o pesquisador investigou também as condições sob as quais a produção acadêmica que analisou foi produzida, explicitando aspectos da organização, estrutura e funcionamento dos cursos, sua evolução histórica e as políticas educativas vigentes no Brasil.

Esses elementos, explícitos nas pesquisas de Gamboa (1987), Fiorentini (1994) e Megid (1999), podem ser analisados a partir da matriz epistemológica de Fleck (1986), particularmente da categoria "estilo de pensamento", proposta pelo autor para descrever a dinâmica da produção científica. Fleck (1986) estabelece que um campo do saber cria "estilos de pensamento", formas de ver e conceber, que são peculiares de cada época. Assim sendo, o conhecimento tem estreita dependência do conjunto de circunstâncias da sua época – constitui-se, desenvolve-se e transforma-se sempre em sintonia com o macro-sistema. Mais especificamente, o autor argumenta que um estilo de pensamento é portador de uma visão de mundo, de um sistema de valores e de pressuposições, que se materializam em aspectos teóricos e práticos, articulados. Segundo o autor,

A todo estilo de pensamento lhe corresponde um efeito prático. Todo pensar é aplicável, posto que a convicção exige, seja a conjuntura certeira ou não, uma confirmação prática. A verificação de eficiência prática está, portanto, tão unida ao estilo de pensamento como a pressuposição. (FLECK, 1986, p. 151).

A história do conhecimento humano revela que, consoante como a perspectiva social mais ampla, a prática da produção do conhecimento também produz mudanças, transformações, que via de regra são lentas e gradativas. Fiorentini (1994), quando analisa a produção acadêmica em Educação Matemática, exemplifica esta dinâmica mostrando que as diferentes abordagens não se sucedem no tempo de forma linear, por alternância de modelos. Argumenta que as pesquisas em Educação Matemática passaram de uma ausência de crítica (década de 70) para um período de intenso questionamento da educação (década de 80), principalmente em seus aspectos ideológicos, sócio-políticos e culturais (FIORENTINI, 1994, p. 154). Localizou pesquisas que, no auge da Pedagogia Tecnicista, valorizaram novas dimensões da prática educativa, como, por exemplo, os estudos em Psicologia

Cognitiva, ou os relativos às dimensões "teleológico-axiológica e epistemológica", ou, ainda, aqueles que abordavam aspectos ideológicos, conceituais e políticos.

Desse modo, o estudo de Fiorentini (1994) mostra dados concretos sobre a transformação de uma tradição em pesquisas em Educação Matemática: de problemas de investigação relativos aos aspectos didático-metodológicos e psicológicos do ensino da matemática, a área passou a elaborar novos problemas e, com eles, novas formas de investigação. Para Severino (1997, p. 82), essa dinâmica inerente à produção do conhecimento mostra que a "ciência é fruto de um desenvolvimento progressivo de estados de conhecimento que vão se sucedendo, num processo de construção incessante".

Nessa mesma direção, os estudos de Pierson (1997) e Lemgruber (1999) apontam transformações na forma de conceber e promover a pesquisa em Ensino de Ciências, a partir da adoção dos pressupostos construtivistas. Argumentam que uma ruptura com a concepção de ciência vigente gerou um novo quadro de referência para as pesquisas em Ensino de Ciências, seja do ponto de vista da matriz teórico-epistemológica ou das práticas de pesquisa adotadas.

[...] o que destacaria como traço mais importante em muitas das propostas que vêm se apresentando na educação em ciências, especialmente a partir do final dos anos 70, é a sua fundamentação em novas epistemologias, que entendem o conhecimento como uma construção social, histórica, setorial e pluralista. Alteram radicalmente a concepção do conhecimento cientifico, onde as teorias deixam de ser as descobertas das leis que regem o funcionamento do universo, para se constituírem em modelos explicativos, em construções humanas, com todas as limitações que este fato acarreta. Por isso, tal revolução epistemológica é tão importante para o ensino. (LEMGRUBER, 1999, p. 149).

Gamboa (1987) descreve com propriedade essa dinâmica da produção científica, com destaque para as transformações ocorridas nas práticas de pesquisa. Ao apostar na incursão histórica enquanto opção metodológica, seu estudo também detectou transformações, quando, de uma abordagem essencialmente empírico- analítica, identifica a presença progressiva de novas alternativas, a fenomenológico- hermenêutica e a crítico-dialética.

Essa perspectiva de análise que explicita transformações na forma de conceber e tratar problemas relacionados ao ensino, em diferentes campos do saber e em distintos momentos da história, encontra ressonância na proposição epistemológica de Fleck (1986), quando descreve a dinâmica da produção científica através da "instauração, extensão e transformação dos estilos de pensamento".

Sustenta ainda que a produção do conhecimento é disciplinada pelo "estilo de pensamento", que proporciona, dentre outros elementos, um perceber dirigido, seletivo, com a correspondente elaboração intelectiva e objetiva do percebido. Isto é, para Fleck, o estilo de pensamento marca cada época e influencia de forma peculiar a atividade dos cientistas.

Contudo, como considera que o conhecimento não é definitivo, Fleck (1986) compreende que os "estilos de pensamento" se modificam com o passar do tempo, apesar da força exercida pela tradição. Assim, de acordo com o epistemólogo, tanto o pensamento quanto os fatos são mutáveis, e os estudos de Gamboa (1987), Fiorentini (1994), Pierson (1997), Megid (1999) e Lemgruber (1999) parecem estar em sintonia com este pressuposto epistemológico ao detectarem que, após um período de tradição, surgem alterações no modo de perceber e compreender o fenômeno educacional, quando surge uma nova atitude de pesquisa, pautada numa nova compreensão dos fatos. Cada época acentua características próprias e consistentes com o estilo que lhe é próprio e que é determinado também pela sociedade.

Mesmo elegendo problemáticas e contextos diversos, essas pesquisas destacam de forma enfática as práticas de pesquisa adotadas pelas teses e dissertações ao longo do tempo, nos diferentes campos do conhecimento. Em alguns estudos (FIORENTINI, 1994; MEGID, 1999), essas práticas foram tomadas como elementos capazes de dar identidade à produção científica da área; em outros, como desdobramentos de concepções mais amplas, nem sempre explícitas:

As abordagens metodológicas que vão se formando através das várias etapas de desenvolvimento dos cursos de Pós-Graduação, sofrem, como já vimos, as influências de contextos sócio-culturais e políticos mais gerais e de contextos mais próximos, relacionados com a composição do corpo docente, as orientações estabelecidas em cada curso, as decisões administrativas e políticas, o ambiente de trabalho nas disciplinas, as discussões internas, os debates sobre determinadas problemáticas etc. Em outras palavras, a história de cada curso, seu processo de desenvolvimento, seus acertos e dificuldades, suas potencialidades e limitações determinam sua própria produção. Esses contextos mais próximos queremos destacar nesta volta ao concreto histórico, contextos dinâmicos, em constante mudança, e às vezes, conflitivos, que dia a dia formam a história concreta de cada curso, e em termos gerais, caracterizam a trajetória da pesquisa neles desenvolvida e delineiam suas tendências. (GAMBOA,1987, p. 195- 196).

O autor argumenta ainda que, subjacente a estas abordagens metodológivas, está

[...] uma visão de mundo que o pesquisador consciente ou inconscientemente deixa mais ou menos transparecer no seu relatório, dissertação ou tese. A visão de mundo, tida como categoria cognitiva mais abrangente, por organizar os elementos presentes na pesquisa num todo lógico, permite desvendar a relação entre os processos do conhecimento e os interesses que os orientam. Nesse sentido, cada abordagem metodológica está vinculada a um determinado interesse de conhecimento. (GAMBOA, 1987, p. 211-212).

Desse modo, a análise do autor parece estar em sintonia com a categoria fleckiana "estilo de pensamento", compreendida como um conjunto de pressupostos, tácitos ou explícitos, conscientes ou inconscientes, a partir dos quais em qualquer campo do saber ocorre o conhecimento. Para Fleck (1986), a todo estilo de pensamento corresponde "[...] a disposição para o sentir seletivo e para a ação conseqüentemente dirigida" (p. 145) ou "[...] a disposição para um perceber dirigido, orientado para ver e agir de uma maneira e não de outra" (p. 111).