Não há necessidade, em vista disso, de se promover qualquer modificação do ordenamento jurídico interno, no sentido de permitir a pena de prisão perpétua, para adequar-se ao Tratado de Roma, o que corrobora com todo o entendimento explicitado de possibilidade de coexistência deste instrumento com a Constituição Federal brasileira.133
2.2 A previsão da entrega de nacionais
O art. 89, §1º, do Estatuto de Roma, prevê a questão da detenção e entrega de indivíduos ao Tribunal Penal Internacional da seguinte forma:
O Tribunal poderá dirigir um pedido de detenção e entrega de uma pessoa, instruído com os documentos comprovativos referidos no artigo 91, a qualquer Estado em cujo território essa pessoa se possa encontrar, e solicitar a cooperação desse Estado na detenção e entrega da pessoa em causa. Os Estados Partes darão satisfação aos pedidos de detenção e de entrega em
____________________________ 130
STEINER, Sylvia Helena de Figueiredo. A pena de prisão perpétua e a constituição brasileira. Disponível
em: <http://www.dhnet.org.br/dados/cartilhas/dh/tpi/cartilha_tpi.htm#A PENA DE PRISÃO>. Acesso em: 29 ago. 2011.
131 Ibidem 132
BRASIL. DECRETO Nº 4.388, de 25 de setembro de 2002. Promulga o Estatuto de Roma do Tribunal Penal
Internacional. Brasília, 2002. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2002/D4388.htm>. Acesso em: 29 ago. 2011.
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conformidade com o presente Capítulo e com os procedimentos previstos nos respectivos direitos internos.134
O art. 5º, inciso LI, da Constituição Federal Brasileira, por sua vez, veda a extradição de nacionais, nos seguintes termos: “Nenhum brasileiro será extraditado, salvo o naturalizado, em caso de crime comum, praticado antes da naturalização, ou de comprovado envolvimento em tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, na forma da lei”.135
Mencionada disposição, como acontece com a vedação da pena de prisão perpétua, está inserida no rol de Direitos e Garantias Individuais previstos na Carta Magna e, portanto, constitui cláusula pétrea, consoante preconiza o art. 60, §4º, inciso IV, do texto constitucional.
Tendo em vista tais preceitos, iniciou-se no cenário jurídico brasileiro outro debate acerca da impossibilidade de ratificação do Estatuto de Roma pelo Brasil, porquanto o país estaria impossibilitado de extraditar nacionais. Neste sentido, vejamos a opinião de Ricardo Ribeiro Velloso:
O art. 88 do Estatuto obriga os Estados-partes a criar meios de aplicação de todas as “formas de cooperação” previstas em seu bojo, entretanto, não há no Direito Pátrio possibilidade de cumprimento dessas formas de cooperação, já que a CF, em seu art. 5º, LI, proíbe expressamente a extradição de brasileiros.
[...] nossa CF é clara, não permite o julgamento de brasileiros por crimes praticados dentro do território nacional, fora de nossa jurisdição.136
Em que pese tal entendimento, a doutrina majoritária se posicionou no sentido de que a entrega e a extradição são institutos diferentes. A extradição constitui, nos
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BRASIL. DECRETO Nº 4.388, de 25 de setembro de 2002. Promulga o Estatuto de Roma do Tribunal Penal
Internacional. Brasília, 2002. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2002/D4388.htm> Acesso em: 30 ago. 2011.
135
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal,
2011. 136
VELLOSO, Ricardo Ribeiro. O tribunal penal internacional. Revista Síntese de Direito Penal e Processual
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ensinamentos de Celso de Albuquerque Mello “ato por meio do qual um indivíduo é entregue por um Estado a outro, que seja competente para processá-lo e puni-lo”.137
Nas palavras de Francisco Rezek, “Extradição é a entrega, por um Estado a outro, e a pedido deste, de pessoa que em seu território deva responder a processo penal ou cumprir pena.”.138
Repara-se, com efeito, que mencionado instituto é um mecanismo de cooperação internacional penal, regido pelo princípio da igualdade soberana dos Estados. Por outro lado, o instituto da entrega é um meio de cooperação entre um Estado e o Tribunal Penal Internacional.139
Pelos conceitos aqui colacionados, observamos que a extradição exige que o pedido seja formulado de um Estado para outro. Diferentemente acontece com o instituto da entrega, cujo pedido é formulado pela Corte Penal Internacional que, conforme sublinha Antônio Paulo Cachapuz de Medeiros, não se trata de uma jurisdição estrangeira, “[...] mas uma jurisdição internacional, de cuja construção o Brasil participa, e terá, portanto, um vínculo muito mais estreito com a Justiça nacional.”.140
No mesmo sentido, aponta Tarcisio Dal Maso Jardim:
Não se trata do antigo instituto da extradição, que se reporta a entrega de uma pessoa, submetida à sentença penal (provisória ou definitiva), de uma jurisdição soberana a outra. Trata-se de entrega sui generis, em que um Estado transfere determinada pessoa a uma jurisdição penal internacional que ajudou a construir. A Constituição brasileira certamente não se refere a esse caso especial, por impossibilidade de lógica e de vaticínio.141
____________________________ 137
MELLO, Celso D. Albuquerque. Curso de direito internacional público. 14. ed. Rio de Janeiro: Renovar,
2002, p. 981. 138
REZEK, Francisco. Direito internacional público: curso elementar. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 230. 139
LIMA, Renata Mantovani de; BRINA, Marina Martins da Costa. Coleção para entender: o tribunal penal
internacional. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p. 163. 140
MEDEIROS, Antônio Paulo Cachapuz de. O tribunal penal internacional e a constituição brasileira.
Disponível em: <http://www.dhnet.org.br/dados/cartilhas/dh/tpi/cartilha_tpi.htm#CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA>. Acesso em: 30 ago. 2011.
141
JARDIM, Tarciso Dal Maso. As posições brasileiras sobre o TPI. Disponível em:
<http://www.dhnet.org.br/dados/cartilhas/dh/tpi/cartilha_tpi.htm#5. As posições brasileiras>. Acesso em: 30 ago. 2011.
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O art. 102 do Diploma de Roma, antenado neste possível impasse, preocupou-se em realizar expressamente tal diferenciação:
Para os fins do presente Estatuto:
a) Por "entrega", entende-se a entrega de uma pessoa por um Estado ao Tribunal nos termos do presente Estatuto.
b) Por "extradição", entende-se a entrega de uma pessoa por um Estado a outro Estado conforme previsto em um tratado, em uma convenção ou no direito interno.142
Por fim, Eneyda Taquary conclui que:
[...] o Estatuto do Estrangeiro que regulamenta a extradição obedece a três princípios: o da especialidade, que exige do Estado requerido que somente solicite a extradição por crime anterior ao pedido e que esse não seja diverso do crime praticado, e desde que o crime tenha previsão no ordenamento jurídico e o pedido se refira a ele; o princípio da dupla incriminação, exigindo que a conduta seja tipificada em ambos os sistemas penais, e por fim, o princípio do non bis in idem, informando que não será admitida a extradição se o fato já houver sido julgado ou estiver por qualquer causa prescrito o crime ou extinta a punibilidade.
Esses princípios não se aplicam ao instituto da entrega porque não deve haver reciprocidade, dupla incriminação, ou especialidade do pedido, pois o regime do Estatuto de Roma para com os países é de cooperação, daí terem ratificado a criação do TIP.143
Assim, não há que se falar, neste ponto, de incompatibilidade entre o Estatuto de Roma e a Constituição Federal Brasileira, porquanto clara é a distinção entre o instituto da Extradição e o instituto da Entrega.