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Primórdios (1929-1933)

No documento Teoria crítica e utopia (páginas 38-200)

Devo dizer com franqueza que durante este tempo, digamos de 1928 a 1932, havia relativamente poucas reservas e relativamente poucas críticas da minha parte. Eu preferiria dizer da nossa parte, porque Heidegger naquele tempo não era um problema pessoal, nem mesmo filosoficamente, mas um problema de grande parte da geração que estudou na Alemanha após a primeira Guerra Mundial.23

Antes de seguir para as discussões com Horkheimer que será o tema deste capítulo, é imprescindível dar a devida atenção ao momento de 1928 a 1932, anterior à filiação formal de Marcuse ao Instituto de Pesquisa Social e à tomada do poder por Hitler. Primeiro porque a circunscrição do conceito de utopia nos leva necessariamente à primeira ocorrência do termo “utopia” que aparece em sua crítica ao livro de Mannheim que, por sua vez, é necessário ter em mente que ela foi feita com base em um período em que Marcuse ainda estava sob influência da filosofia de Heidegger. Em segundo lugar, é nesse período que se encontra a gênese de um “conceito antropológico utópico24” elaborado nessa primeira fase que é importante também para o confronto com Horkheimer e, posteriormente, será retomado na última fase, a do diálogo com Bloch.

Na maioria dos aspectos, Marcuse concorda com a posição de Horkheimer sobre antropologia; ele também subordina proposições antropológicas aos conceitos derivados da teoria social e filosofia da história. As diferenças entre a posição de Horkheimer e Marcuse estão mais aparentes nas primeiras obras de Marcuse, em que discute a base ontológica do homem que se manifesta historicamente em diferentes formas. De acordo com Marcuse, os seres humanos têm uma essência atemporal, embora seja suficiente para definir o humano concreto sendo apenas abstratamente. Então apesar de ele defender um conceito de essência

23MARCUSE, H. Heidegger’s Politic: An Interview. In: WOLIN, R.; ABROMEIT, J. (Orgs.)

Heideggerian Marxism. University of Nebraska Press, 2005a, p.165.

24Expressão empregada por Stefan Bundschuh em "Und weil der Mensch ein Mensch

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humana abstrata, silenciosamente insiste que apenas a análise da situação histórica concreta pode produzir uma definição vinculativa do homem em seu tempo25.

Em seus primeiros escritos, Marcuse não está particularmente interessado na natureza. Ao contrário, ele discute Heidegger e Marx em termos de historicidade e história como a determinação ontológica do ser humano. Neste ponto, Marcuse não está tentando desenvolver uma posição antropológica, mas sim - através da influência de Heidegger - um fundamento ontológico da teoria social26.

De acordo com Stephan Bundschuh, era a ontologia que mobilizava as primeiras reflexões de Marcuse. Parte dessa ontologia expressa sua filosofia concreta que futuramente se converteria em sua antropologia dual. Neste primeiro momento que nomeamos “primórdios”, a concepção de utopia marcuseana é diretamente afetada pela filosofia de Heidegger, tendo seu marco final somente em 193227 (como ele próprio afirma na entrevista citada como epígrafe deste capítulo) ao publicar um longo ensaio de retrospecto que apareceu na revista social-democrata Die Gesellschaft [A sociedade], na qual saudou o surgimento dos manuscritos econômico-filosóficos de Marx como “um evento crucial na história dos estudos marxistas”.28 Ele viu em Marx um fundamento filosófico para o materialismo histórico. Como Marcuse observa novamente em retrospecto, em 1932: “apareciam os Manuscritos Econômicos e Filosóficos de 1844. Esse foi provavelmente o ponto de viragem. Este foi, em certo sentido, um novo marxismo prático e teórico. Depois disso, Heidegger contra Marx não era mais um problema para mim”.29

25 Ibid., p.157. 26Ibid., p.152.

27Andrew Feenberg defende que a influência heideggeriana se prolongou até a obra tardia de Marcuse:

“Quando Marcuse deixou Heidegger, ele anulou a redução fenomenológica para todas as situações e ocasiões (inclusive o pôr-do-sol). Mas, lendo-o de novo, encontro os traços do pensamento de Heidegger em todos os seus escritos e nos lugares mais surpreendentes. E eu sinto falta de referência a Heidegger lá, também, na mais problemática das especulações de Marcuse onde a fenomenologia poderia ter sido útil. Essas especulações são um desenvolvimento de ideias já presentes em suas primeiras publicações sob a tutela de Heidegger. Estas primeiras obras constituem uma posição filosófica única que tem sido chamada de ‘Heidegger-Marxismus’. Marcuse chegou a esta posição por um duplo caminho: por um lado, concretizou o conceito de autenticidade no Ser e no Tempo; Por outro lado, desenvolveu uma nova interpretação da dialética hegeliana e marxista da ‘possibilidade real’ ou ‘potencialidade’”. FEENBERG, A. Heidegger and Marcuse. In: The Catastrophe and Redemption of History. Routledge: New York- London, 2005, p.xi, (tradução minha). Consideramos que este seria um tema para outra tese, mas trazemos este trecho apenas para afirmar que, embora seja controverso, partiremos do declarado rompimento de Marcuse com Heidegger em 1933, pois, ao menos no que tange ao conceito de utopia, percebemos que não há traços dessa influência depois desse período.

28MARCUSE, H. Novas fontes para a fundamentação do materialismo histórico. In:

Materialismo histórico e existência. Rio de Janeiro: Edições Tempo Brasileiro, 1968a.

29 MARCUSE, H. et al. Theory and Politics: A Discussion. Telos, n.38, p.124-153, winter 1978-79,

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Desta forma, Marcuse via que o projeto de Marx tinha sido formulado em diálogo com a filosofia alemã clássica. Além disso, tornou-se cada vez mais claro que as origens filosóficas do marxismo, longe de ser uma excrescência juvenil, eram absolutamente essenciais para seu status como um programa de transformação social e política. Marcuse também havia escrito um artigo em 1931 elogiando Hans Freyer para fornecer um fundamento fenomenológico para a sociologia. Assim como Heidegger, Freyer logo se tornaria um defensor franco do Partido Nacional Socialista “revolução da direita”.

A primeira crítica que Marcuse dirige a Marx está em Contribuições Para a Fenomenologia do Materialismo Histórico (1928), cujo objetivo era fazer uma interpretação fenomenológica da historicidade baseando-se em análises de O Ser e o Tempo (1927) de Heidegger. Parte da atração de Marcuse pelo existencialismo de Heidegger foi impulsionada pela chamada “crise do marxismo”. As esperanças da geração de Marcuse por uma regeneração radical da ordem política existente pareciam responsáveis pelo sofrimento social. No entanto, concomitante com a crise política do marxismo, existia a crise epistemológica e ambas estavam ligadas.

Na visão de Marcuse, a Segunda Internacional oferecia uma abordagem antifilosófica e mecanicista do marxismo, baseada no cientificismo irrefletido, bem como numa teoria antiquada do colapso automático do capitalismo. Marcuse argumentou que “as verdades do marxismo não são verdades do conhecimento, mas sim verdades do acontecimento”. A apropriação de Marcuse aqui do conceito heideggeriano de “acontecer” (Geschehen) demonstrou sua convicção de que a teoria marxista contemporânea poderia ser revitalizada pelas tentativas de Heidegger de revelar os fundamentos ontológicos da subjetividade, oculta pela tradição racionalista da filosofia ocidental.

Os esforços de Heidegger em O Ser e Tempo para descobrir os fundamentos ontológicos do Ser culminaram em sua afirmação de que o Ser é, por sua própria natureza, um ser histórico. Com seu conceito de historicidade, Heidegger ofereceu uma alternativa aos vários modos inautênticos de Ser-no-Mundo, para o qual o Ser poderia ser vítima. Viver autenticamente, de acordo com a historicidade ontológica do Ser, só era possível rasgando-se do mau imediatismo do presente,

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apropriando-se conscientemente do passado e realizando seu potencial mais elevado na atividade orientada para o futuro. Não é difícil ver porque esse conceito ontológico de historicidade, que postulava um conceito fundamentalmente ativo de subjetividade, atraía grandemente Marcuse, que estava determinado a superar as influências positivistas sobre a teoria marxista.

Enquanto estudava com Heidegger em Freiburg, Marcuse tornou-se cada vez mais interessado nas origens filosóficas da teoria crítica de Marx. Tal como Lukács, Marcuse acreditava que as sérias deficiências da interpretação positivista dominante de Marx poderiam ser combatidas reexaminando a dívida teórica de Marx com Hegel. Este foi o projeto que Marcuse tentou realizar em seu Habilitationsschrift, a Ontologia de Hegel e a Teoria da Historicidade, que foi publicado em 1932. Como o título do estudo sugere, Marcuse ainda estava muito interessado na fenomenologia heideggeriana e no conceito de historicidade, em particular. No texto, Marcuse argumenta que o conceito de historicidade de Heidegger foi baseado no conceito de Wilhelm Dilthey de “vida”, que Dilthey, por sua vez, tirou dos primeiros escritos de Hegel. Assim, para examinar os fundamentos ontológicos da historicidade, Marcuse empreende uma reinterpretação radical da obra de Hegel como um todo. O fio unificador e orientador da interpretação de Marcuse sobre Hegel foi a distinção entre noções epistemológicas e ontológicas da subjetividade, como sugerido por Heidegger.

Segundo Douglas Kellner, a maior força da filosofia de Heidegger nos escritos de Marcuse se encontra na concretude fenomenológica. Isto é, em relação à Marx, Marcuse teria uma maior aproximação da realidade concreta a partir do conceito de historicidade.30 O pensamento de Marx se baseava numa relação entre infraestrutura e superestrutura que parecia ignorar a dimensão individual, que sempre deveria estar ligada a produção. Para Marcuse, ainda que fosse muito relevante, faltava algo nesta relação que ele acreditava ser completado pela fenomenologia de Heidegger. Haveria nele um potencial político valioso na luta contra o coninnuun social da sociedade industrial avançada. Trata-se de ler a filosofia de Heidegger como a crítica da reificação velada ontologicamente: uma acusação da maneira em

30 KELLNER, D. Herbert Marcuse and the crisis of Marxism. Palgrave, 1984, p.38. Sobre as

relações entre Heidegger e a teoria social de Marcuse ver também OLIVEIRA, R. O papel da filosofia na teoria crítica de Herbert Marcuse, Unesp, São Paulo, 2001, pp.13-35.

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que circunstâncias sociais opressivas militam contra a possibilidade de autorrealização humana. Parecia que, como o crítico marxista Lukács, Heidegger se esforçara para superar a fetichização das aparências que caracterizou a sombra do mundo de imediatismo burguês. De maneira análoga a Lukács e Korsch, em Ser e Tempo Heidegger se esforçou por romper com a visão de mundo determinista da ciência burguesa, em que o ser humano ou a existência teria degradado ao status de uma “coisa”.

Em Sobre a Filosofia Concreta, Marcuse procura mostrar a importância da ontologia heideggeriana que, ao mesmo tempo, visava resguardar o papel do indivíduo e a tarefa da transformação social. É nesse sentido que Marcuse vê a teoria de Heidegger, mediante História e consciência de classe (1922), de Georg Lukács, e Marxismo e filosofia (1922), de Karl Korsch.31 Através do conceito de fetichismo da mercadoria, Lukács construiu a concepção de reificação,32 que impossibilitava os seres humanos de construir uma visão da totalidade. Ao proceder de maneira positivista, a ciência social contemporânea é fetichizada do ponto de vista do “objeto” ou “coisa”. As pessoas são tratadas como “coisas” ou como objetos de manipulação administrativa e controle. A maioria dos textos de Marcuse demonstra sua filiação à Lukács e, ainda que ele cite pouco, ela é sempre notável nos momentos em que ele refuta os marxistas ortodoxos.

O avanço adquirido pela filosofia da existência de Heidegger está em reconhecer que esta visão da existência colocou a “realidade humana”, em vez da “objetividade” no centro de sua perspectiva fenomenológica. Foi essa prática usada para superar a orientação reificação da ciência tradicional33. Das frustrações com as limitações do conceito burguês de “interioridade”, tão pronunciado na tradição do idealismo alemão, surge mais uma aproximação com Heidegger. Além disso, Marcuse se apegou aos conceitos correspondentes de “ação” e “vida” que eram tão atuais na década de 1920. Havia, portanto, grande admiração pelos componentes “ativistas” da ontologia existencial, em que a “determinação” ou o “resolver” era uma das marcas de autenticidade. Na segunda dissertação que Marcuse escreveu sob a orientação de Heidegger, Ontologia de Hegel e a Teoria da Historicidade, o

31ABROMEIT, J. & WOLIN, R. Heideggerian Marxism, University Of Nebraska Press, Lincoln and

London, 2005, p. 13.

32Sobre este tema ver NOBRE, M. Lukács e os Limites da Reificação. São Paulo: Editora 34, 2001. 33 MARCUSE, 2005b, p.42

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conceito de “vida” tem um papel fundamental. Refere-se à dimensão de imediatismo prático vivencial que é evitado, via de regra, pela orientação contemplativa e intelectualizada pelo pensamento burguês.

Contudo, o conceito heideggeriano mais usado em Contribuições para uma Fenomenologia do Materialismo Histórico é o de “historicidade”: é precisamente o conhecimento da historicidade que representou o elo essencial entre o existencialismo e o materialismo histórico. Tal conceito de historicidade se diferencia daquele de Dilthey, em que a história é essência da vida que captura o passado da maneira como ele era.34 Pouco a pouco, Marcuse desperta para o fato de que as pretensões de sua filosofia concreta não conseguiriam se realizar tão facilmente. Seu afastamento de Heidegger impulsionaria o abandono deste projeto. Numa entrevista de 1974, Marcuse diz que acreditava poder haver uma combinação entre existencialismo e marxismo justamente por causa da insistência de ambos na análise concreta da real existência humana, os seres humanos, e seu mundo; mas ele logo percebeu que a concretude de Heidegger fora, em grande medida, uma falsa concretude, e que de fato sua filosofia era tão abstrata e tão fora da realidade (ou mesmo uma filosofia que evitava a realidade) como as filosofias que naquela época dominavam universidades alemãs - uma marca bastante seca do neokantismo, neo- hegelianismo, neoidealismo, mas também do positivismo.35

A filosofia, como potência histórica real, teria como tarefa confrontar-se com o marxismo enquanto teoria da revolução proletária. Para isso, a filosofia deveria ultrapassar seus limites e enfrentar a realidade dada para transformá-la. Entretanto, a filosofia existencial de Heidegger parecia cada vez menos concreta aos olhos de Marcuse. Isto e mais o descontentamento pessoal com o seu orientador, que não autorizou sua tese sobre a ontologia de Hegel, somou-se a suposta adesão de Heidegger ao Nacional Socialismo como fortes motivos que contribuíram para que ele abandonasse completamente o projeto da filosofia concreta.

34DILTHEY, H. A Construção do Mundo Histórico nas Ciências Humanas, Unesp, SP, 2010 p.34.

Para Heidegger, o passado rendeu tradições em que os povos e as pessoas poderiam agir, tendo em vista as possibilidades futuras. A historicidade deixou de ser uma categoria de contemplativa, compreensão acadêmica. Em vez disso, tornou-se uma chamada virtual para braços, uma intimação para autêntico compromisso ontológico.

35MARCUSE, H. Heidegger’s Politics. In: PIPPIN, R. et al. Marcuse: Critical Theory and the Promise

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A questão que deveria ser levada em conta era se as formulações do materialismo histórico captaram plenamente o fenômeno da historicidade.36 Haveria então uma dúvida de Marcuse em relação ao método do materialismo histórico de Marx. Certamente, havia algum problema com a historicidade marxista. Da mesma maneira, também haveria uma lacuna na historicidade da existência (Dasein) de Heidegger. Justamente por isso, Marcuse quer uni-los com a dialética, método que revela a abordagem adequada a todos os objetos históricos. Mesmo a aplicação da dialética pelo marxismo deveria, segundo nosso autor, passar por um esclarecimento preliminar. Somente então, será possível se falar em fenomenologia do materialismo histórico, em que as formulações do marxismo se referem à estrutura da historicidade e são interpretadas à luz do fenômeno da historicidade.

Nas Contribuições para uma Fenomenologia do Materialismo Histórico, o marxismo começa a ser visto por Marcuse como um acontecimento [Gegebenheit] e não como teoria científica – distinção necessária devido ao domínio do positivismo e à própria crítica de Marx ao mesmo. Não que o marxismo não seja simplesmente ciência, mas ele o é, na medida em que “é teoria da revolução proletária e crítica revolucionária da sociedade burguesa”.37 O capitalismo requer compreensão da sua verdade histórica. O problema que Marcuse aponta nas Contribuições é que o marxismo é até testado na sua consistência lógica, posto que suas verdades não são do conhecer [des Erkrennens], mas verdades do acontecer [des Geschehens]. Por isso, a historicidade da existência [Dasein] se torna o objeto da fenomenologia do materialismo histórico e a dialética se torna o método utilizado por Marcuse para analisar este objeto.

Nesse sentido, é importante ter um ponto de partida baseado na situação fundamental do marxismo. Nesta, o homem é conscientemente histórico, seu único campo de ação é a história descoberta como categoria da existência (Dasein) humana. E a ação revolucionária revela-se enquanto unidade histórica.38 Marcuse diz que é necessário decompor esta situação fundamental, de modo que seja possível descobrir que juntas, essas sentenças parciais revelam uma unidade. A partir da

36 MARCUSE, H. On Concrete Philosophy. In: In: WOLIN, R.; ABROMEIT, J. (Orgs.) Heideggerian

Marxism. University of Nebraska Press, 2005b, p.34.

37MARCUSE, H. Contribuições para Fenomenologia do Materialismo Histórico. in:

Materialismo histórico e existência. Rio de Janeiro: Edições Tempo Brasileiro, 1968b, p.2 (tradução minha).

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situação histórica concreta é posta a questão: o que existe é uma infinita soma de atividades, uma ao lado da outra e, contudo, todas inextricavelmente ligadas umas às outras e determinadas umas pelas outras, todas separadas do agente que não vive nelas, que apenas se ocupa nelas ou que precisa exercitá-las para poder viver.

Crítica a Mannheim

Essa introdução sobre a influência inicial de Heidegger é necessária para ter em mente o que Marcuse pressuponha nestes anos ao mencionar a palavra utopia, e a primeira vez que isso acontece é ao se referir ao livro de Mannheim, Ideologia e Utopia. De acordo com Marcuse, ao refletir sobre a utopia, Mannheim definitivamente não se refere ao gênero literário, nem mesmo com a categoria um pouco mais ampla de visões de sociedades ideais. Na verdade, tais visões podem ser ideológicas e não utópicas, ou seja, podem atuar como forças para manter, em vez de transformar o status quo. Ele aponta que a noção medieval do paraíso, enquanto localizada “fora da sociedade”, é parte integrante da manutenção dessa sociedade. Somente quando tais imagens assumem uma função revolucionária, se tornam utópicas e não ideológicas.

O uso do termo utopia para se referir a uma categoria de ficções sociais é rejeitado por Mannheim como historicamente ingênuo e descritivo, ao invés de analítico. Obras literárias comumente designadas utopias são inicialmente apenas expressões individuais. Elas só podem tornar-se verdadeiramente utópicas se e quando elas se tornarem a expressão da vontade de um grupo social e a inspiração de uma ação social bem-sucedida em busca da mudança. Grande parte do que é convencionalmente (e às vezes pejorativamente) considerado utópico é, portanto, excluído desta definição e consignado ao domínio da ideologia.

Naquela ocasião em que Marcuse ainda não era membro do Instituto de Pesquisa Social de Frankfurt e era orientando de Martin Heidegger, o mundo acabara de presenciar a crise de 1929 e ainda padecia sob os vestígios da Primeira Guerra Mundial. Na visão de Marcuse, o texto de Mannheim provocou um debate pertinente: a discussão sobre conhecimento e existência. Por isso, nosso autor

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afirmava ter uma excelente impressão do livro Ideologia e Utopia de Mannheim, que era considerado fundamental para aquela conjuntura: o problema do Ser e a história universal da existência humana e a questionável separação entre ser ideal e ser real.

A base heideggeriana se faz presente no materialismo de Marcuse nesse período que pressupõe o reconhecimento de que o conceito de “ontologia” que ele apropriou de Heidegger difere em muitos aspectos do significado tradicional atribuído a ele. Para Heidegger, e para Marcuse durante este tempo “ontologia” não significa um reino de verdades eternas que existem fora da história e não são afetadas pela passagem do tempo. Em Ser e Tempo Heidegger argumenta que o Dasein - e, portanto, por extensão, o ser em geral - é temporal e histórico no nível mais fundamental; em outras palavras, a “ontologia” de Heidegger é histórica. A tentativa de Heidegger para estabelecer a historicidade como a própria essência do ser humano exerceu forte apelo em Marcuse. Ele argumenta - no espírito da crítica ao socialismo - que a mudança social emancipatória utópica de Marx não pode ultrapassar as

No documento Teoria crítica e utopia (páginas 38-200)

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