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Teoria crítica e utopia

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Academic year: 2021

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Universidade Estadual de Campinas

Instituto de Filosofia e Ciências Humanas

MARIA ERBIA CASSIA CARNAÚBA

TEORIA CRÍTICA E UTOPIA

CAMPINAS 2017

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Universidade Estadual de Campinas Instituto de Filosofia e

Ciências Humanas

A comissão julgadora dos trabalhos de defesa de Dissertação/tese de Mestrado/Doutorado composta pelos professores Doutores a seguir descritos, em sessão pública realizada em 20/03/2017 considerou a candidata Maria Erbia Cassia Carnaúba aprovada.

Prof. Dr. Marcos Severino Nobre

Profa. Dra. Inara Luiza Marin Voirol Prof. Dr. Stefan Fornos Klein Prof. Dr. José Rodrigo Rodrigues Prof. Dr. Rúrion Melo

A Ata de defesa, assinada pelos membros da Comissão Examinadora, consta no processo de vida acadêmica da aluna.

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... a quem deu vida a uma utopia com folhas de papel.

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Agradecimentos

À Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo) pela bolsa concedida, sem a qual seria impossível executar esta pesquisa, realizar estágio no exterior (BEPE) e sobreviver na universidade pública. Espero que, mesmo diante do cenário de crescentes ataques à educação pública com o fechamento acelerado das verbas públicas, continue existindo a política efetiva de incentivo à pesquisa de qualidade capaz de resistir a esta agressão e abuso de poder sob o qual vivemos. Escrever sobre utopia num contexto em que uma presidenta eleita é arrancada arbitrariamente de seu cargo, ameaçando qualquer possibilidade de construir um país democrático e finalizá-la acompanhando as sucessivas perdas de direitos foi o desafio mais contraditório da minha vida. Mas a bolsa mencionada e a estrutura e o apoio do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp, pelo que agradeço ao corpo docente do Departamento de Filosofia e aos funcionários técnico-administrativos do instituto, em particular aos da Secretaria de Pós-Graduação, nas pessoas de Sônia Cardoso, Daniela Grigolletto e Reginaldo Alves.

Ao Professor Dr. John Abromeit, agradeço pela excelente recepção nos Estados Unidos que extrapolou as minhas expectativas de uma pesquisa fora do país com a (BEPE). Para além das aulas que assisti na universidade, dos encontros para redigir um artigo, do auxílio com a escrita na língua estrangeira, jamais vou me esquecer das nossas conversas diárias sobre Teoria Crítica, utopia, história, política, filosofia, artes, música, culinária, educação e enfim, sobre tudo que envolve a existência, afinal, praticar o inglês era preciso e John, junto com sua esposa Deirdra e sua filha Zoe foram excepcionais comigo.

Através de John, também pude conhecer Mark Cobb e junto com ambos apresentar uma comunicação na Stone Brook University (New York). Nesse mesmo ano de 2014, tive o privilégio de participar do aniversário de 50 anos de publicação de One Dimensional Man. Evento realizado na Brandeis University que reuniu estudiosos da obra de Herbert Marcuse e celebrou a descoberta de novos manuscritos de Marcuse deixados na biblioteca da mesma universidade. Além disso, pude conhecer o seminário de Teoria Crítica devido à abertura de Gary Wilder e Susan Buck-Morss na Cornell University e na CUNY. Nesse sentido, devo agradecer também Arnold Farr, Andrew Feenberg, Angela Davis, Andrew Lamas, Peter Erwin-Jansen, Douglas Kellner e Peter Marcuse por terem sempre me oferecido suporte e orientação necessários a pesquisa nos Estados Unidos. Graças a eles, a International Herbert Marcuse Society promove o debate profundo e a divulgação da obra de Herbert Marcuse.

Por compreender minha ausência e por me ensinar a recusar os infinitos “nãos” da vida, agradeço minha (mundiça linda) família: Rosineide (mãe), irmã Dinerva, irmãos: Gleuson, Lero e Velton, sobrinhos que aumentaram nesse tempo: Felipe, Caio, Luan, João, Tales e Marina. Minhas cunhadas Maísa e Jami e o cunhado Paulo. Esse pessoal sabe o que é utopia.

Ao Américo Ranzani pela felicidade que sua companhia me trouxe desde meados de 2013, mesmo durante o tempo de distância. E por segurar a barra no momento tão frágil de

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finalização da tese. Nele encontro toda a força da pulsão de vida Eros. Também sou grata a toda a família Razani por ter me acolhido de braços abertos: Jacira, Américo, Vera, Olívia, Oberdan, Inácio e Enesto. Pela solidariedade de Otavio Ranzani, bem como sua esposa Elena. À Michelle Fagundes e Cristiane Tambascia por compor, de maneira fictícia, essa família.

Sou grata ao meu amigo Julian Simões que esteve presente em tantos momentos felizes (ou não) ao longo deste doutorado (e antes) me dando amor com sua sensibilidade única de um irmão desses que a gente escolhe. À Adriana Novais pela cumplicidade sem igual que completa alguns anos com uma identificação única, poucas pessoas me entendem tão profundamente e me fazem tão bem só pela presença. À Juliana Marta, cuja presença amiga poética ou etílica, esbanja uma sobriedade singular e tão necessária nesses anos de doutorado. Ao Fernando Rodriguez, não somente pela sua ajuda com o alemão, sobretudo pela amizade tão atenciosa, solidária e recíproca, ainda mais nas últimas semanas da escrita. Ao grande amigo que ganhei nos Estados Unidos, Ballav Moni Borah, por sua doçura e suporte em todos por lá, thanks my dearest! À minha querida amiga Lee Vai You que pude reencontrar em terras estrangeiras, mas nunca foi ausente. Ao André, Raquel, Rômulo, Diogo, Vivi, Júlia e Murilo, pelo calor único brasileiro presente no frio de Buffalo.

Ao Paulinho Veloso pelos mais de 15 anos de amizade enfeitados com os acordes que sempre me levaram para um ‘não-lugar’. Ao Augusto Teixeira que também pela via da música e da arte me salvou muitas vezes da tristeza profunda. Nessa mesma toada, agradeço Rafael Nascimento pela redescoberta sempre possível do bom tom e bom som na amizade. Às minhas companheiras de casa na moradia: Thais, Aigla e Amanda que iluminaram minha vida num momento decisivo no início do doutorado, após a morte de meu amigo Márcio Ricardo de Carvalho, que há anos na moradia estudantil compartilhou a esperança de também terminar o doutorado e ter um trabalho que nos livrasse das dificuldades materiais presentes na vida toda e, ao mesmo tempo, não que não fosse penoso. Um mês antes de sua morte, havíamos perdido o amigo Herbert Barucci Ravagnani. A dor dessas perdas fortaleceu outros elos e à Eloísa Benvenutti, cujo abraço solidário renovou nosso apoio mútuo, agradeço de olhos fechados.

À Kelly Freitas pela presença amiga e a alegria transbordante na convivência que nunca se acabou, nem à distância. À Rafaela Melo e seu irmão Luiz Felipe que também são uma fonte de utopia. Aos amigos também da moradia Emiliano Almeida, Ariadne Meissner, Lucas David, nas horas de violão, conversa e boa culinária. Jaqueline Araújo e Eduardo Beleza somavam nessa roda de amizade e foram também fundamentais. Aos amigos Paulo Bodziak e Felipe Durante pelo companheirismo cotidiano na universidade desde os anos de mestrado. À Inés Corbalan pela confiança e cumplicidade. À companhia da Érica Giesbrecht também foi preciosa em diversos momentos tensos. À Meghie Rodrigues pelos bons encontros nem sempre nas melhores horas. À Luiza Hilgert e sua família linda (Vitória e Juliano) pelo companheirismo e abertura para uma amizade que se iniciou junto à entrada no doutorado em filosofia e espero que dure a eternidade. Michael Anssolin e também Fernando compõem essa teia de afeto. Aos amigos da Unesp que sempre estão presentes, apesar de toda distância, fazem parte dessa trajetória: Patrícia, Rachel, Simara, Ednaldo, Estevam, João, Débora e Andia. Distante também, mas nunca ausente é meu querido amigo Fábio Fortes que sempre enriquece minha existência de alegria, poesia, boa literatura e muito aprendizado. Da mesma maneira, as minhas amigas Cris Ilhesca e Carolina Blasio que me dão sempre muita força.

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Registro meus agradecimentos especiais ao Grupo de Teoria Crítica da Unicamp que neste 2017 completa 10 anos: Adriano Januário, Raphael Concli, Olavo Ximenes, Divino Amaral, Paulo Yama, Fernando Bee, Mariana Teixeira, Inara Marin, Raquel Patriota, Bárbara Santos, Bruna Batalhão Ricardo Lira, Rafael Palassi e o novato Francisco. Faz toda a diferença ter com quem debater e enfrentar junto os problemas de leitura desde sempre sob coordenação do Prof. Dr. Marcos Nobre, nosso orientador, a quem dedico esse trabalho.

À banca Prof. Dr. Rúrion Melo, Prof. Dr. José Rodrigo Rodriguez (que já estiveram na qualificação e contribuíram significativamente), Prof. Dr. Stefan Klein e Professora Dra. Inara Marin Voirol, sou muito grata desde já, por terem aceitado discutir este trabalho. Bem como aqueles que se dispuseram a participar, Prof. Dr. Ricardo Ribeiro Terra, Professora Dra. Taisa Palhares e ao Prof. Dr. Adriano Marcio Januário.

O Núcleo Direito e Democracia do CEBRAP (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento) pelo convite ao aprendizado que vem junto à cooperação e pesquisa coletiva. Especialmente ao subgrupo “bancada do inconsciente” onde pude de ler e discutir psicanálise e questões de gênero com Ricardo Crissiúma, Inara Marin Voirol, Ingrid Cyfer, e Felipe Gonçalves, para onde quero sempre voltar.

Ao SAE (Serviço de Apoio ao Estudante) que, ainda nos meses iniciais desse doutorado (período em que aguardava a resposta da bolsa) e no mestrado possibilitou a minha permanência na universidade e continua a oferecer estrutura para alguns estudantes oriundos de famílias desestruturadas tanto de graduação, quanto de pós.

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“O mundo está, antes, repleto de disposição para algo, tendência para algo, latência de algo, e o algo assim intencionado significa plenificação do que é intencionado. Significa um mundo mais adequado a nós, sem dores indignas, angústia, auto-alienação, nada. Essa tendência, porém, está em curso para aquele que justamente tem o novum diante de si”. (Bloch, Ernst. O Princípio Esperança, V.1. p.28)

“A utopia está lá no horizonte. Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar”. Eduardo Galeano apud Fernando Birri.

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RESUMO: O objetivo desta tese é retomar a gênese do conceito utopia no eixo temático Teoria Critica. Isto significa, circunscrevermos tal tarefa na obra de Herbert Marcuse, com o intuito de mostrar que, por mais que o autor oscile em suas perspectivas de saída, a utopia é o conceito mais importante para compreender sua obra. Isto só é possível na medida em que: i) se considera o seu caráter ―Tradicional‖, que foi amplamente criticado por Marx e pelos fundadores da Teoria Crítica; e ii) conjuga a utopia com o diagnóstico de tempo presente. Na trajetória de Marcuse, a utopia esteve sempre presente, desde os textos sobre a biologia até seu livro mais sombrio O homem Unidimensional, passando pelo O Fim da Utopia. Aqui há uma posição contrária às leituras que apontam erroneamente um momento ―pessimista‖ ou ―distópico‖ na obra de Herbert Marcuse. Nossa tese consiste em mostrar uma periodização que explicita a constância da utopia e as oscilações de Marcuse na medida em que muda o diagnóstico do tempo presente, como uma maneira concreta de entender e fazer revolução em três grandes fases na obra. Reelaborar esta noção, de modo crítico foi o legado filosófico e político deixado por Marcuse para a Teoria Crítica.

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ABSTRACT: The aim of this thesis is to return to the genesis of the concept utopia in the thematic of Critical Theory. This means, we limit this task in the work of Herbert Marcuse, with the intention of showing that, however much the author fluctuates in his outlook, utopia is the most important concept to understand his work. This is only possible insofar as (i) its "Traditional" character is considered, which has been widely criticized by Marx and the founders of Critical Theory; and ii) conjugates the utopia with the diagnosis of present time. In Marcuse's trajectory, utopia was always present, from the texts on biology to his most ―dark‖ book The One-dimensional Man, passing through The End of Utopia. Here there is a stance against the readings that erroneously point to a "pessimistic" or "dystopic" moment in Herbert Marcuse's work. Our thesis consists of showing a periodization that explains the constancy of the utopia and the oscillations of Marcuse insofar as it changes the diagnosis of the present time, as a concrete way of understanding and making revolution in three great phases in the work. Re-elaborating this notion, critically was the philosophical and political legacy left by Marcuse for Critical Theory. Keywords: Utopia, Critical Theory, Herbert Marcuse

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Lista de abreviaturas

ODM – One-Dimensional Man EC – Eros e Civilização

DE – Dialética do Esclarecimento EL – Essay on Libertation

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Sumário

INTRODUÇÃO ... 15

CAPÍTULO I – Confronto com Horkheimer (1933 - 1947) ... 38

Primórdios (1929-1933) ... 38

Crítica a Mannheim ... 45

Diagnóstico I - o debate com Horkheimer (1933-1947) ... 55

A saída utópica como teoria no contexto de crise da razão ... 96

Utopia e Revolução ... 101

Por uma ressignificação do socialismo utópico ... 107

CAPÍTULO II - Confronto com a Dialética do Esclarecimento (1947-1967)...118

Diagnóstico II - a tendência oculta da psicanálise como mundo administrado...142

Utopia como mito: uma alternativa ao diagnóstico de tempo presente da DE...166

O Declínio da utopia...192

A Racionalidade Tecnológica...209

Critica à racionalidade Tecnológica...219

Possíveis dimensões da utopia...225

Crítica a “revolução” sob o prisma do marxismo soviético...230

CAPÍTULO III - Utopia em confronto com Bloch, (1967-1979)...242

Diagnóstico III - falência da Nova Esquerda ...245

A insurgência dos movimentos sociais...250

A dialética da democracia no contexto do capitalismo corporativo...262

Contrarrevolução e Revolta...270

Utopia e feminismo ...276

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A utopia concreta de Ernst Bloch...286

Psicanálise e utopia em Bloch ...290

Face a face: Marcuse e Bloch ...294

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INTRODUÇÃO

O conceito de utopia certamente conferiu visibilidade a muitas divergências teóricas entre os membros da Teoria Crítica desde sua fundação até os dias atuais. Apesar de possuírem certos aspectos em comum, os autores desta tradição não constituíam uma escola com unidade de pensamento. A diversidade de ideias era encorajada entre eles, o que permitia que cada um pudesse desenvolver um “modelo” próprio de Teoria Crítica. Do ponto de vista da consideração do conceito de utopia e sua história, essas diferenças eram marcantes entre Herbert Marcuse, Max Horkheimer e Theodor Adorno. Marcuse teria sido aquele que mais apostou na volta à utopia e, evidentemente, sofreu suas consequências, além de ter sido taxado algumas vezes de ingênuo por sua defesa da utopia, que nunca fora bem vista pelos autores do Instituto de Pesquisa Social.

Marcuse reelabora a noção de utopia em um novo sentido, crítico, que não pode ser alcançado pelas críticas que foram dirigidas a essa noção desde Marx até Horkheimer e Adorno, também porque Marcuse considera essas críticas como pertinentes, mas não defende que se deva descartar a noção de utopia, tratando-se para ele, ao contrário, de salvá-la. A defesa de que obra de Herbert Marcuse pode ser lida respeitando a utopia presente sempre relacionada aos seus diagnósticos de época pressupõe um método de leitura que organiza esses dois fundamentos. (O desenvolvimento dessa tese segue esses dois eixos: i) a utopia e seu sentido crítico; e ii) elo entre a utopia e o diagnóstico do tempo pressente: a salvação da noção de utopia não pode ser separada dos sucessivos diagnósticos do tempo presente elaborados por Marcuse, só podendo, ao contrário, ser devidamente compreendida quando referida a esses diagnósticos. Estes dois aspectos estarão presentes ao longo de toda a tese e serão importantes para compreensão da obra de Marcuse, bem como podem servir para circunscrever o caráter da utopia nos anos iniciais da Teoria Crítica.

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16 i) a utopia e seu sentido crítico

A “utopia” em Marcuse é uma crítica à noção de revolução entendida como tomada do poder de Estado e construção de uma nova sociedade a partir do exercício desse poder de Estado. Como essa maneira concreta de entender e de fazer a “revolução” (realizada em todo o bloco soviético) fracassou, a “utopia” seria justamente a versão da revolução que pretenderia efetivamente vir “de baixo”, da base da sociedade, de uma transformação radical das formas de vida é nisso que consiste o encontro entre Marcuse e 1968; muitos movimentos daquele momento viram em Marcuse uma teorização de sua prática e ele presenciou muitos desses movimentos como uma abertura para a ação que vinha esperando só que isso aconteceu também em sentidos inesperados por ele, de tal maneira que esses movimentos também mudaram sua maneira de entender a própria utopia. Todavia, essa noção de utopia tinha de ser defendida desde seus primeiros escritos por causa do peso histórico do fracasso do socialismo e também para rebater as críticas de Marx e de seus colegas do Instituto de Pesquisa Social.

Um dos aspectos mais marcantes e persistentes da obra de Marcuse é a sua preocupação com as possibilidades de utopia. Este conceito filosófico poderoso (o que significava que ele tinha que contestar a equação ortodoxa de noções marxistas do socialismo com o socialismo científico em oposição a um socialismo utópico à la Fourier) estava no cerne de suas ideias.1

Como aponta Angela Davis, o conceito de utopia de Marcuse era poderoso porque contestava a crítica ortodoxa marxista ao socialismo utópico. Marx e Marcuse se referiram a concepções muito diferentes de “utopia”. A crítica ao socialismo utópico de Marx foi perpetuada não somente por Horkheimer e Adorno, mas também por Marcuse. Porém, este insiste que algumas características da utopia dos socialistas utópicos podem permanecer na reformulação de uma nova e crítica maneira de concebê-la, pois, para ele, o conceito de utopia é histórico e contém em si um forte conteúdo relacionado com a emancipação. Arrisco dizer que se tratava de uma leitura que conseguia enxergar “utopia tradicional”, a qual deveria mesmo ser criticada em oposição a uma forma crítica de utopia que será desenvolvida ao longo da obra de Marcuse.

1 DAVIS, A. Marcuse’s Legacies. In: MARCUSE, H. The New Left and the 1960’s. Routledge, 2004. (Collected

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17 A suposição uma utopia “tradicional” pode ser evidenciada através do resgate do sentido específico de “socialismo utópico” que foi muito criticado por Marx. Para refazer a crítica da Teoria Crítica é necessário questionar o que Marcuse teria de novo em relação a Marx e aos seus companheiros de Instituto. Portanto, não se trata de reconstruir a crítica que a Teoria Crítica fez à utopia, mas partir de Marcuse, para entender como ele leu essa crítica. O que, por exemplo, Marcuse valoriza em Fourier contra Marx? De maneira consequente, Marcuse se contrapõe a Horkheimer e sua geração. Tal oposição está relacionada a um conceito de ciência que muitas vezes pode ser identificado como o seu limite. A utopia emerge, portanto, como uma forma de colocar em evidência a limitação imaginativa da própria Teoria Crítica. Além disso, com a crítica de Marcuse a Marx, se torna claro que a noção de utopia que está sendo desenvolvida pode alargar a concepção de revolução de Marx.

Em O Fim da Utopia, Marcuse afirma que se deveria-partir da ciência para a utopia. Muitas das conquistas da ciência foram importantes para o domínio da natureza e o avanço em diversas áreas, porém o “progresso” técnico não estava conduzindo a humanidade a uma maior liberdade ou a sanar suas carências. Ou seja, não havia levado a humanidade ao socialismo. Então, era necessário partir deste cenário em que a ciência já impera para começar a pensar sobre os fatores que impediram tal realização. Certamente, não eram fatores objetivos. Projetos comunistas durante a Revolução Francesa e o socialismo nos países capitalistas mais desenvolvidos são exemplos de uma ausência real ou suposta dos fatores subjetivos e objetivos que tornaram impossível a realização da utopia.

É preciso ter como pressuposto, desde já, uma análise da crítica de Marcuse a Marx no que tange à utopia. Quais teriam sido os principais problemas que Marx encontrou nos utopistas? Em que Marcuse estaria de acordo? E o que Marcuse traz de novo para a Teoria Crítica com essa leitura de Marx? A hipótese de Marcuse é que os elementos trazidos dos socialistas utópicos fornecem dados importantes e renovadores para a Teoria Crítica. Por isso, a segunda parte do capítulo I consiste em mostrar que Fourier tem uma vantagem: ele nunca deixou de elucidar tal sociedade como “sociedade possível”. Fourier não retrocedeu, e seu caráter emancipatório vai muito além de Marx neste quesito devido à radicalidade de seu projeto utópico. O problema é que “ir muito além” pode significar para muitos: ir “longe demais”, para além das possibilidades de uma sociedade que, sempre que ousou, foi

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18 considerada louca e desastrosa. O passo que Marcuse dá, vai ao sentido de uma crítica à predominância de uma noção de razão no pensamento filosófico que vai de Thomas More a Hegel que praticamente se funde com a ciência moderna, afastando a fantasia/imaginação. Mas isso parecia perigoso para os outros teóricos críticos já que utopia e loucura eram facilmente associadas. O que é importante perceber é que existe, de fato, um exagero nos socialistas utópicos, mas não é necessário suprimir sua utopia por conta disso e sim, com o exagero, procurar identificar seu caráter crítico.

Quais teriam sido as causas do fim da utopia como teoria? O fim da utopia é marcado em vários momentos da história, a Revolução de 1848 é um destes momentos, por exemplo, em que a utopia seria substituída pela ciência e se tornaria novamente fantasia. Foucault descreve o período entre 1830 e 1848 na França de “história dos limites”,2 por conta

de uma crítica à utopia frequentemente escrita numa perspectiva “patológica” e do lado da ordem dominante. Trata-se de uma passagem de uma crítica liberal para uma crítica contra-revolucionária. Ela caiu no esquecimento da burguesia através de sua conquista da positividade. Da mesma maneira, não se pode saber ao certo quando ela teve início. É por isso que nosso interesse é situá-la num momento muito específico: no momento em que a Teoria Crítica da sociedade surge. Justamente porque é neste período que encontramos a sua última forma melhor acabada, isto é, a sua forma crítica. De todo modo, considerando o recorte pretendido deste trabalho, será necessário retomar a história que circunda nesta primeira parte do capítulo, ou seja, começar, de certa maneira, pelo fim.

Contra aqueles que seriam tentados a conduzir a utopia para o lado da revolta – eles colocam no início um corte entre a revolta e a revolução e, a seus olhos a utopia investiria, sobretudo as relações privadas, a amizade, a sexualidade; em resumo, ela visara mais a transformação das relações humanas no sentido da transparência do que uma organização nova da sociedade global – é preciso lembrar a intencionalidade unitária e totalizante da extraordinária floração utópica do início do século XIX.3

Essa característica de distinguir revolta e revolução é fruto do fracasso histórico das revoluções, mas, ainda assim, trata de um corte específico que Marcuse irá valorizar em

2FOUCAULT, M. História da Loucura. 2008, p. 54. 3ABENSOUR, M. O Novo Espírito Utópico, 1990, p. 38.

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19 sua obra, especificamente em Contrarrevolução e Revolta. É importante pressupor que, ao que tudo indica, revolução e utopia são tratadas, neste período, como sinônimos. E os socialistas utópicos trouxeram um novo significado para a utopia que a distingue da revolução. Seria algo realizável nas relações íntimas humanas e partiria daí uma nova organização global. Isto implica que não parecia de interesse dos socialistas utópicos transformarem as bases, mas propunham que ocorressem melhorias para as classes mais baixas (os proletariados), porém as bases liberais continuariam. Podemos dizer que seria um tipo de estágio mais ''humano'' do capitalismo.

Vários grupos e pensadores se concentraram sobre o fracasso de 1848 e sobre a responsabilidade imputada à utopia da maneira pela qual ela estava se manifestando neste momento. Ao examinar o conjunto das obras dos socialistas utópicos, Marx e Engels concluem que estas teorias mostram já os seus limites, quando dois acontecimentos quase simultâneos apontam uma alternativa. De um lado, surge o Manifesto do Partido Comunista. De outro, explode na França e em toda a Europa o ciclo de revoluções batizado de Primavera dos Povos, naquela que Marx definiu como “a primeira grande batalha entre as duas classes que formam a sociedade moderna”. Tornou-se evidente que o proletariado não se identificava com o positivismo. Por isso, procurou apoio no pensamento socialista, que fazia uma crítica radical à sociedade capitalista, dando ênfase à suas contradições.

No socialismo, o proletariado encontrou a expressão teórica de seus interesses e orientação para suas lutas práticas, pois já não suportavam mais as relações de exploração a que estavam submetidos. Para o proletariado, o socialismo deveria ser uma doutrina política e econômica que se caracteriza pela ideia de transformação da sociedade através da distribuição equilibrada de riquezas e propriedades. Só seria alcançado a partir de uma grande reforma social, com luta de classes e extinção do proletariado, pois no sistema socialista não deve haver classes sociais nem propriedade privada. Para os socialistas utópicos a revolução não seria necessária, posto que eles acreditavam que era possível se montar uma estrutura social com acordos entre as diversas classes sociais, de modo que as diferenças entre elas não chegariam a ser prejudiciais.

Marx e Engels foram os primeiros a estabelecer uma crítica à utopia com certa negatividade em relação aos movimentos sociais que não levaram em conta as condições

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20 concretas de realização da utopia na humanidade. Para Engels, a utopia continha algo de negativo que se contrapunha à positividade da ciência. Assim o “socialismo científico” seria considerado verdadeiro, em contraposição ao não científico4. A crítica de Marcuse a Marx e

Engels está justamente na fé na ciência típica daquele momento; por isso, ela foi posta em questão diante de um diagnóstico de tempo posterior. Este é um fator importante para o esforço desta tese em argumentar que há uma diferença significativa entre a utopia almejada por Marcuse e o “socialismo utópico”. Todavia, para além da concordância com crítica marxiana aos socialistas utópicos, a crítica marcuseana considera ainda que a utopia tenha elementos críticos que foram descartados por Marx e Engels.

Com efeito, Marx reconhece inicialmente a complexidade da crítica às utopias e que, por conseguinte, o capítulo do Manifesto Comunista que lhe é consagrado fornece apenas as conclusões de um longo e difícil trabalho teórico, no qual indica igualmente os desvios que devem ser feitos, a passagem pelas obras teóricas, principalmente Miséria da Filosofia, e os princípios de leitura a ser praticada, em particular nesse caso a consideração de problemas que, de modo imediato, parecem não ter relação com a crítica às utopias. Ele insiste, por fim, no duplo movimento dessa crítica: recusa de colocar em vigor um novo sistema utópico, mas intervenção com conhecimento de causa do processo de perturbação histórica que se dá na sociedade.5

A crítica da utopia envolve necessariamente uma discussão sobre a teoria da revolução, dado que ela se situa entre os conflitos e diversas lutas políticas. Atualmente, não dá para dissociar, por exemplo, crítica da utopia de crítica do comunismo. Esta última nasceu justamente dos aspectos que Marx e Engels analisaram nas utopias comunistas e socialistas. Desde 1843, em um texto fundamental, a matriz da utopia é descoberta e formulada. No movimento de recusa da utopia democrática, da utopia política – a forma burguesa da

4Cf. ENGELS, F. Do Socialismo Utópico ao Socialismo Cientifico. Ed. Vitória: Rio de Janeiro, 1962. As ideias

principais que Engels aborda neste livro, marcam a distinção entre Socialismo Científico — de Karl Marx e do próprio Engels — e Socialismo Utópico. Já no primeiro capítulo, “Socialismo Utópico”, através dos pensamentos dos socialistas utópicos, começando com Saint-Simon. Prosseguindo para Fourier e Robert Owen, Engels expõe suas ideias sobre o que seria o termo. Enquanto, a burguesia adquiria matéria-prima que obteve devido ao mercantilismo e custeando as fábricas, o proletariado sofria com a exploração máxima. Da extrema exploração do proletariado resulta uma luta de classes que se torna mais aparente.

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21 emancipação – define-se o ponto de vista crítico. Um ponto final na utopia da burguesia enquanto classe revolucionária; em resumo ao projeto de Estado moderno.

Em Marx “Não é a revolução radical, a emancipação geral humana que é um sonho utópico para a Alemanha, mas antes, a revolução parcial, a revolução somente política, que deixa de pé os alicerces da casa”.6 Daí vem o par: ciência doutrinária e ciência

revolucionária. Digamos que a primeira seja tradicional, segundo a nossa hipótese. A oposição ciência-utopia é relatada em Comte numa ruptura com o Sant-Simon. Desta oposição de Marx e Comte, é que surgiu a oposição socialismo utópico versus socialismo cientifico que gerou algumas confusões históricas.

O experimento de Marcuse era começar um caminho contrário ao de Marx e Engels, no sentido de partir do socialismo científico rumo a um conceito de utopia crítico. Não nos cabe avaliar se o próprio Marcuse conseguiu ou não realizar essa empreitada, mas não há dúvida de que ele começou um trabalho importante que não deveria ser negligenciado. Certamente, sua utopia (longe de ser inocente) é um legado para o sujeito que estuda a Teoria Crítica cônscio dos problemas históricos que este conceito causou sem perder de vista sua relevância como horizonte da emancipação.

ii) do elo entre utopia e diagnóstico do tempo presente na obra de Marcuse Enquanto deve haver uma defesa do conceito de utopia que considera seu passado, também é preciso, ao mesmo tempo, pensá-lo no presente. Apesar da imensa relevância dessas críticas à utopia, o conjunto da obra de Marcuse revela que o conceito de utopia pode ter uma rica contribuição para a Teoria Crítica desde que seja reelaborado considerando também os diagnósticos de tempo presente7. Essa postura é o que o faz diferente de sua geração, mas

pode ser também o motivo pelo qual hoje Marcuse seja mal interpretado e pouco estudado a fundo. O “guru das massas” não é um mero romântico sonhador, dono de uma positividade típica de um contexto que ficou no passado, na rebeldia dos movimentos de 1968, na

6 MARX, K. Crítica da Filosofia do Direito de Hegel. São Paulo, Boitempo, 2005, p. 60.

7 Fazer diagnóstico de tempo presente significa, dentre outras definições que aparecerão ao longo dessa tese, buscar

uma permanente atualização das análises inaugurais de Marx, “uma compreensão nova das relações de dominação e das possibilidades de superá-las”. (NOBRE, M. Max Horkheimer. A Teoria Crítica entre o Nazismo e o Capitalismo Tardio. In: Curso Livre de Teoria Crítica, p.35).

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22 irreverência das músicas e roupas daquela época. Infelizmente sua utopia também foi varrida para debaixo do tapete da obsolescência histórica junto a essa descrição rasa e nada razoável.

Até mesmo no momento chamado de “pessimista” por alguns leitores de One-dimensional Man, as “saídas” emancipatórias aparecem, apesar de ser um livro de diagnóstico de tempo em que os obstáculos são mais enfatizados. Assim como em Eros e Civilização, a ênfase é forte nas formas de emancipação. Ambos os livros mais lidos de Marcuse estão sob o mesmo diagnóstico de Dialética do Esclarecimento. Douglas Kellner, um dos mais importantes nomes perpetuadores da obra de Marcuse, responsável pela organização e publicação de textos inéditos com tradução para o inglês nos Collected Papers of Herbert Marcuse afirma:

Uma mudança distinta ocorre entre o otimismo revolucionário de “O homem unidimensional” e “Ensaio sobre a libertação”, as posições mais equilibradas em “Revolução Cultural”, e as posições pessimistas em “Contrarrevolução e Revolta” e “O Destino histórico da democracia burguesa”. Considerando que, em seus escritos de 1968 a início de 1970, Marcuse teria focado nas forças de luta e libertação, em seus escritos por volta de 1972 a meados da década de 1970, ele volta a se concentrar em forças de dominação e repressão. A teoria crítica de Marcuse esteve estreitamente em sintonia com a situação política do momento e seu estado de espírito e foco analítico parecia oscilar do otimismo ao pessimismo, dependendo das perspectivas da Nova Esquerda e oposição radical na corrente histórica situação.8

O excerto aponta uma mudança de diagnóstico do tempo presente que será a passagem do capítulo II para o capítulo III desta tese. Procuro mostrar que não é adequado caracterizar Marcuse como oscilante em termos de pessimismo e otimismo9. Esta é uma

avaliação simplista não condizente com sua maneira de fazer Teoria Crítica, posto que, todo o empenho de sua obra conduz o leitor a pensar sobre as saídas, por mais que grande parte do esforço esteja em identificar os obstáculos à emancipação. Não é exatamente isso o que Kellner faz, já que ele diz que “parece” haver tal oscilação. Porém, ele também não desenvolve uma chave interpretativa que tenha o conceito de utopia como uma categoria que permite evitar tais equívocos, afinal asserções dão margem às interpretações errôneas da obra de Marcuse, porque postulam que haveria uma bipolaridade no autor quando, na verdade, o

8 KELLNER, D. Collected Papers of Herbert Marcuse, volume 6. Marxism, Revolution and Utopia, 2014, p.28. 9 Embora, Stephan Bundschuh defenda uma tese oposta a nossa, ele se aproxima dela, na medida em que e pode ser

consultada na íntegra também no livro "Und weil der Mensch ein Mensch ist ...": Anthropologische Aspekte der Sozialphilosophie Herbert Marcuses, Lüneburg 1998. Outro autor que também está envolvido neste debate é o Helmut Fahrenbach em Das Utopieproblem in Marcuses Kritischer Theorie und Sozialkonzeption que pode ser encontrado na coletânea Kritik und Utopie im Werk von Herbert Marcuse (suhrkamp taschenbuch wissenschaft) , 1992.

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23 que muda é o contexto (como afirma o próprio Kellner) em que ele se insere e, consequentemente, seu diagnóstico de tempo.

Na mesma tentativa de compreender tais variações na obra de Marcuse, Andrew Feenberg diz algo um tanto mais grave a respeito deste ponto. Numa nota que fez para o volume 5 dos Collected Papers,10 ele chama a fase do fim dos anos 60 até 1979 de “um

período em que Marcuse faz uma revisão de seu ‘distopismo anterior’”. Diferente desta postura de Feenberg de que tenha havido um período distópico em Marcuse, essa tese defende que há sempre “utopia”, a novidade do período 1947-1967 (e que permanecerá também na última fase, mas só que a partir de então com a concretude dos novos movimentos de protesto, da “nova sensibilidade”) é a compreensão da utopia (e, portanto, da transformação social radical) como “reinvenção das necessidades”. Esta tese procura mostrar que a “utopia” é uma possibilidade tanto mais concreta, quanto mais favoráveis forem as condições históricas para essa reinvenção das necessidades, entre as quais condições a do desbloqueio social da fantasia é essencial. Dessa maneira, pode-se falar em momentos históricos em que a utopia encontra maior ou menor ancoramento social como tendência objetiva e como possibilidade real.

A definição de distopia trás outros elementos externos à teoria marcuseana que também podem atrapalhar a compreensão daquilo que Marcuse queria dizer. É contra interpretações como estas que esta tese se coloca. Entendemos que há uma enorme dificuldade de situar as oscilações da obra de Marcuse, tendo somente como base as mudanças de contexto. Aliás, se levarmos exclusivamente isso em consideração, jamais será compreensível a escrita de Eros e Civilização, pois este período é um dos mais nefastos tanto na situação histórica quanto em sua própria vida pessoal. Sob a chave da utopia é possível compreender o estatuto da emancipação que a Teoria Crítica pretendia reivindicar através das mudanças de diagnósticos de tempo. Portanto, esta tese propõe uma leitura através da perspectiva da utopia, de modo a destacar seu “lugar” no tempo de sua obra.

Até 1967, o que fornece a chave de leitura para as diferentes posições da “utopia” está ainda naquele comentário de 1937 a Teoria Tradicional e Teoria Crítica: quando a porta para a práxis se fecha, a Teoria Crítica não deve ter medo da utopia. A grande mudança ocorre

10 FEENBERG, A. Afterwords. Remembering Marcuse. In: MARCUSE, H. Philosophy, Psychoanalysis and

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24 a partir de 1967: Marcuse passa a ter uma noção de utopia que já não segue mais o modelo que vai de 1937 a 1967. A utopia é um fio condutor privilegiado para reconstruir a obra de Marcuse de tal maneira que sua obra não seja interpretada simplesmente entre “pessimismo” e “otimismo”, de tal maneira que seja possível mostrar que a diversidade de seu pensamento está referida a um núcleo teórico que lhe dá unidade e interesse no interior da própria diversidade. É este o elemento que vai diferenciar esta leitura dos demais comentadores. Na medida em que atualizamos a noção de utopia, passamos a situar as mudanças em seu pensamento também de acordo com as variações de diagnóstico de tempo, sem deixarmos de lado aquilo que Marcuse jamais abandonou: o horizonte emancipatório.

Ainda neste livro de 1964, podemos encontrar a perspectiva utópica em alguns lugares, inclusive em seu fechamento. Portanto, trata-se de um conceito importante para guiar a leitura de sua obra, cuja relevância nos faz entender a profundidade das ideias de Marcuse.

Embora a forma de crítica, em algumas das obras de Marcuse o uso de conceitos como unidimensionalidade possa causar nos leitores um pouco de pessimismo, nada poderia ser mais problemático do que tal leitura. A realidade social nas sociedades industriais avançadas são aquelas em que os sistemas muito sofisticados de dominação tomaram seu lugar e eles são capazes de se transformar para enfrentar o desafio de qualquer movimento de libertação. No entanto, como Marx e Engels advertiram em O Manifesto Comunista, “Um espectro ronda a Europa, o espectro do comunismo”. Para Marcuse, o espectro da libertação assombrou as sociedades industriais avançadas. Pode-se mesmo dizer que a própria teoria crítica de Marcuse era assombrada pelo espectro de libertação. Ou seja, em um nível Marcuse estava envolvido em uma crítica das estruturas sociais opressivas para que a porta da revolução e da libertação pudesse ser aberta. Em outro nível, Marcuse iria alterar a sua teoria para dar lugar a várias formas de resistência que ele viu em desenvolvimento nas sociedades opressivas. Marcuse era, ao mesmo tempo, um professor da consciência revolucionária e um estudante.11

Seguindo essa linha de Arnold Farr, uma leitura enviesada sob a polaridade otimismo versus pessimismo faz com que Marcuse seja muito mais contraditório e incoerente do que dialético. No excerto, ele usa o termo libertação como algo que pode ser crítico e, ao mesmo tempo, algo que assombra a própria crítica. Isto porque a complexidade do momento requeria um refinamento maior para a palavra “libertação”. O diferencial do conceito de utopia é que ele mesmo já tem uma história de negação dentro da Teoria Crítica, a começar por Marx, sendo possível mapeá-lo desde essa primeira crítica ao socialismo utópico. Nosso objetivo é mostrar que a vinculação das posições de Marcuse aos diagnósticos de época

11 FARR, A. Herbert Marcuse. The Stanford Encyclopedia of Philosophy. 2014. Disponível em:

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25 específicos se faz tendo a utopia como uma constante. É preciso ainda pontuar que o próprio sentido da palavra utopia se modifica ao longo dos anos, embora ela permaneça como “negação do real, em detrimento do possível” de maneira implícita desde o início.

O que falta à bibliografia sobre Marcuse é justamente uma abordagem sistemática do autor a partir de diferentes diagnósticos do tempo presente. E o fio condutor conceitual para realizar essa abordagem sistemática é justamente a noção de utopia. A partir do confronto com posições de outros teóricos críticos de seu tempo o qual se dá basicamente no campo de diagnósticos distintos que levam a elaborações teóricas diferentes, que se dá a organização desta tese.

Dentro dessa reconstrução unitária, há uma mudança importante na significação da noção de utopia, de tal maneira que é possível dividir em duas concepções diferentes. As duas são bem coladas ao sentido tradicional marxista (contra a qual Marcuse se rebela nos dois momentos, mas que se mantém como pano de fundo). Só que as perguntas que Marcuse se põe por meio do conceito de utopia nos dois casos são bem diferentes, em acordo com uma mudança de diagnóstico de grande relevância. Porque, em termos da pergunta fundamental, há uma continuidade maior entre 1933-1947 e 1947-1967 do que dessas duas fases em relação ao período 1967-1979. Embora as diferenças entre os dois primeiros momentos sejam importantíssimas (do contrário, não haveria necessidade de mudar o diagnóstico), as experiências autoritárias, fascistas e nazistas que dominam o primeiro período de certa maneira se diluem no segundo, na medida em que este é marcado por uma internalização da dominação que contém muitos elementos do autoritarismo anterior, ainda que tenha encontrado uma forma em que a repressão não precisa ser tão aberta e eliminadora de adversários como a nazista. Ou seja, por razões muito diferentes (e isso leva a diagnósticos bem diferentes), a utopia está ligada ao diagnóstico de que a práxis (por razões diferentes) está bloqueada. Já a fase final está muito mais ligada a exercícios de experimentação intelectual que pretendem corresponder e estar mais colados às experimentações sociais que estão surgindo, de 1967 a 1979.

No bloco formado pelos dois primeiros capítulos, a pergunta é: o que bloqueia a práxis e em que a noção de utopia permite manter o comportamento crítico em uma situação como essa? No último capítulo, a pergunta é: tendo sido surgido experimentos sociais que

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26 conseguem desbloqueios parciais da práxis no sentido de dar novos contornos à noção de utopia, por que esses desbloqueios não são capazes de se generalizar, ou seja, por que, sua generalização está bloqueada?

Torna-se absolutamente fundamental nesse esquema O fim da utopia como momento de transição entre os dois momentos e os dois modelos diferentes de utopia (tomando como ideia aqui a data da publicação em alemão desta discussão, que é 1967, e não a data da publicação em inglês, que é apenas de 1970; é lá que encontramos Marcuse apontando as dificuldades de “sair do círculo” que começou com o progresso técnico que criou necessidades além daquelas que já existiam para que fizesse sentido o trabalho no sistema capitalista. O primeiro diagnóstico de Marcuse é de que a práxis está bloqueada pela guerra e pelo fascismo. O segundo é detalhado também na DE que apontou o mundo administrado e a internalização da lógica psicossocial da repressão, é preciso examinar em muito maior detalhe esse processo de internalização. E o terceiro diagnóstico é o de que a “nova sensibilidade” trás uma chance prática de revolução. Ela surge quando a luta política é feita por formas e vidas essencialmente novas, que ocorre com a negação do sistema e de sua moralidade, cultura, através da afirmação do direito de construir uma sociedade sem pobreza, na qual o trabalho também seja resultado de uma experiência sensível e não uma obrigação. O contraste com a Crítica da Tolerância Pura pode ser muito instrutivo, além do fato de que é nele que Bloch começa a surgir como interlocutor direto) e que são também, obviamente, diferentes modelos críticos. O último modelo não foi tão bem desenvolvido por Marcuse como o primeiro. Não apenas pelo período de tempo muito mais curto, mas também pela natureza bem mais fragmentária dos seus textos.

Entre 1933 e 1947, o problema é que práxis está bloqueada pela violência direta do fascismo e do nazismo, porém ainda há uma saída utópica pela via da fantasia; essa saída só existe porque ela tem origens no período anterior que chamamos de “primórdios”, pois se trata da fase de formação do Marcuse, na qual ele ainda se mantinha sob influência de Heidegger que foi seu orientador no doutorado. Esse período será considerado devido também à crítica marcuseana a Karl Mannheim que havia publicado Ideologia e Utopia. A noção de fantasia/imaginação também nasce nesse momento e é algo que atravessa toda a obra de Marcuse, também sempre associado ao seu caráter utópico. Entre 1947 e 1967, o problema é o

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27 da naturalização e internalização pelos sujeitos do bloqueio da práxis que acrescenta um obstáculo até mesmo à imaginação, daí o caráter aparentemente impossível da utopia, mas a “reinvenção das necessidades” surge como utopia nesse período e permanece também até o fim de sua vida e não pode ocorrer sem o desbloqueio social da imaginação/fantasia; entre 1967 e 1979, é a “nova sensibilidade” o que passa a figurar concretamente e socialmente, junto a “reinvenção das necessidades; a problemática passa a ser muito mais a da ausência de um sujeito revolucionário capaz de encarnar as potencialidades e alternativas surgidas com a Nova Esquerda, porém a “nova sensibilidade” surge como um elemento a mais que alimenta a noção de utopia concreta.

Podemos dizer que há dois grandes períodos marcados pela reelaboração noção de utopia: até 1947, ainda não há a formulação acabada da “reinvenção das necessidades”. É nesse segundo período que, a transformação das pulsões (pelo seu caráter histórico) dá sentido a ideia de que as necessidades são também mutáveis e podem adquirir novas configurações na vida em sociedade marcada por intenso processo de desenvolvimento técnico. A partir desse período até o fim da vida de Marcuse, a utopia se baseia em lutar contra aquelas necessidades que o sistema capitalista é capaz de criar baseando-se num jogo de sedução que envolve que alimenta o consumo e movimenta um círculo vicioso em que o trabalho e a exploração são motivados pelo discurso da propaganda.

A noção de utopia como libertação pela fantasia/imaginação constante que atravessa as três fases da obra de Marcuse é o sentido mais geral e mais duradouro de todos. Ou seja, a “utopia” tem aqui unicamente o sentido de preservação do pensamento crítico radical em condições de total bloqueio da práxis. Só no período seguinte, a partir de 1947, é que esse sentido mais geral e mais duradouro de utopia vai se consolidar na obra de Marcuse sob a forma da “reinvenção das necessidades”.

***

A tese se divide em três grandes fases e um curto período inicial que intitulado “primórdios”, no qual a concepção de utopia marcuseana estava sob influência de Heidegger (de 1928 a 1932). Ao buscar a primeira ocorrência do termo “utopia” na obra de Marcuse, nos deparamos com a crítica a Karl Mannheim (1929) na qual, o conceito aparece de maneira

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28 ainda muito entrelaçada às considerações sobre o ser e a existência, o que denota ainda a influência de Heidegger. Tal ligação só irá desaparecer por completo em 1933, quando o laço teórico entre Marcuse e seu orientador se desfaz. No começo de sua carreira, o significado de utopia possui já de antemão um significado que o aproxima da fantasia, porém não perde o sentido clássico platônico de um ‘não lugar’. Quando usado nesse sentido, no entanto, é puramente descritivo e precisa ainda da crítica de um teórico “antiutópico”, marxista ou não. Na primeira fase, datada de 1933 a 1947, a utopia é defendida em termos teóricos, o que não ocorre de maneira explícita e sistemática, mas nos meandros do debate teórico entre Marcuse e Horkheimer. O significado da utopia que atravessa a obra de Marcuse é: a possibilidade de superação do bloqueio da imaginação. O debate da utopia no confronto com Horkheimer é o tema do nosso capítulo I que procura dar conta desse momento em constante articulação com a conjuntura de ascensão do fascismo e nazismo naquela ocasião. A questão é que neste primeiro período “utopia” ainda não tem o sentido de “reinvenção das necessidades” que vai adquirir a partir do período seguinte (e que vai se manter, de maneira diferente, também no período final). Ou seja, acho que “utopia” tem aqui unicamente o sentido de preservação do pensamento crítico radical em condições de total bloqueio da práxis. Só no período seguinte, a partir de 1947, é que esse sentido mais geral e mais duradouro de utopia vai se consolidar na obra de Marcuse sob a forma da “reinvenção das necessidades”.

Nas discussões feitas no período de 1929 a 1947, Marcuse se empenhou em enfatizar sua postura teórica diante do marxismo para justificar uma busca pela emancipação que contenha nela uma utopia diferente daquela que fora negada por Marx. Essa utopia era essencial para orientar a emancipação, mas para ela poder ter lugar na Teoria Crítica, seria necessário um grande esforço de justificá-la conceitualmente e introduzi-la novamente no âmbito de uma conjuntura que fora devastada pela guerra e pela tortura do Holocausto. Como ousar falar em utopia num dos períodos de maior atrocidade da história? Atrocidades estas que eram cometidas sob o argumento da liberdade, uma palavra que se tornou vazia de significado. Um esvaziamento semelhante vinha ocorrendo com o conceito de utopia dentro da Teoria Crítica, mas Marcuse tentou salvá-lo, por acreditar que nele haveria ainda o cerne da motivação rumo à emancipação social e individual.

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29 Essa teoria parte de uma crítica ao positivismo, ou seja, da consideração de que a história mostra que não é prudente submeter uma sociedade a uma verdade única em nome de um progresso que custa o sofrimento de milhões de pessoas. Por outro lado, também seria preciso combater as teorias relativistas. Nisso, o próprio Marx também precisou ser cauteloso quando criticou os socialistas utópicos. Por conseguinte, Horkheimer também foi cauteloso ao formular os pressupostos desta teoria que questionava a maneira com a qual a história lidou com a razão e com a verdade. Marcuse seguiu estes pressupostos, defendendo-os em seus principais textos, porém não aceitou que a utopia teria de ser arrancada de sua Teoria Crítica e o percurso que fizemos neste capítulo teve o objetivo de mostrar seus argumentos contra a exclusão da utopia desde o início. Assim, ele o fez desde sempre partindo das mesmas bases teóricas de Horkheimer, seja ao reconhecer em Mannheim uma tentativa abusiva de tornar a teoria marxista uma ideologia a ser superada, defendendo assim uma posição marcante da Teoria Crítica no marxismo, seja até criticar o próprio Marx naquilo em que este pecou, seguindo seus vestígios de recaída no positivismo que ficam evidentes quando ele se refere à utopia. O que fica deste primeiro período também é a consolidação do método dialético como fundamental para a busca da verdade na Teoria Crítica.

A teoria de Marcuse também será fortalecida em relação à tradição que construiu o conceito de utopia, a começar por Platão12, passando por Thomas More13 e, por fim, chegando

aos socialistas utópicos14. Depois de passar pela história do conceito, Marcuse afirma que a

12 Em História da Doutrina da Mudança Social, Marcuse e Neumann leram a filosofia antiga como contendo uma

teoria da mudança social que foi definida pela busca das condições que produziriam a mais completude do indivíduo. Este projeto começa, dizem eles, com os sofistas e prossegue através de Platão, Aristóteles e das escolas gregas e romanas tardias, passando da filosofia medieval para a moderna. Marcuse junto com Neumann diz: “A teoria de Platão sobre a mudança social não será discutida nos termos tradicionais de seu idealismo utópico e totalitarismo reacionário. O estado ideal de Platão não é nem uma utopia nem a perpetuação violenta da cidade-estado existente. Em vez disso, ele elabora essa forma de ordem social que melhor garante o desenvolvimento das potencialidades humanas sob as condições prevalecentes. Platão liga definitivamente a mudança social à estrutura psicológica do homem, e a segunda à estrutura econômica. A ordem da propriedade privada arruína a psique do homem a tal ponto que ele se torna incapaz de descobrir sozinho, a forma correta de relações sociais e políticas. Assim, o indivíduo não pode mais decidir a ordem do Estado e da sociedade. Sua construção torna-se tarefa do filósofo que, em virtude de seu conhecimento, possui a verdade segundo a qual a ordem da vida deve ser estabelecida. A mudança radical da cidade-estado tradicional para o estado platônico de propriedades implica uma reconstrução da economia de tal maneira que a economia não determina mais as faculdades e poderes do homem, mas é bastante determinada por eles.” MARCUSE, H.; NEUMANN, F. A History of the Doctrine of Social Change. In: MARCUSE, H. Technology, War and Fascism. Routledge, 1998a. (Collected Papers of Herbert Marcuse, v. 1), p.96 (tradução minha).

13A referência mais explícita de Marcuse a Thomas More está em O Fim da Utopia, livro que analisamos no capítulo

II.

14 A crítica aos socialistas utópicos estará presente em várias partes da obra de Marcuse, porque além de pensar seus

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30 utopia não deve ser temida pela Teoria Crítica, assim como ela é pela filosofia,15 porque a sua

preocupação com a verdade é diferente. É preciso ter em mente que a maior parte dos escritos dessa fase foram publicados antes de Auschwitz, por isso, o próprio Marcuse afirma em retrospecto que é preciso separá-los profundamente do que veio depois16.

O que estava correto nele tornou-se desde então, talvez não falso, mas uma coisa do passado. Com certeza, a preocupação com a filosofia expressa nestes ensaios já era, nos anos trinta, uma preocupação com o passado: lembrança de algo que em algum momento havia perdido sua realidade e teve de ser retomado. Precisamente naquela época, batida ou traída, as forças sociais em que se uniram a liberdade e a revolução foram entregues aos poderes existentes. A última vez que a liberdade, solidariedade e humanidade eram os objetivos de uma luta revolucionária. Nos campos de batalha da guerra civil espanhola. Ainda hoje as canções cantadas para e naquela luta são, para a geração mais jovem, o único reflexo persistente de uma possível revolução. O fim de uma história, período de horror de que estava por vir, foram anunciados simultaneamente na guerra civil na Espanha e nos julgamentos em Moscou.17

O capítulo I consiste em mostrar a tentativa maior de Marcuse dar relevo ao um conceito crítico de utopia que ofereça um sentido mais preciso à noção de emancipação em contraposição à postura de Horkheimer, que procura seguir a crítica à utopia realizada por Marx. O teórico crítico precisa falar em nome de uma visão utópica do futuro a que só ele tem acesso, ou cumprir a função de memória e consciência numa cultura que suprimiu seu próprio passado. Retomar a utopia é como resgatar um dos principais objetivos da Teoria Crítica inaugural, ou seja, não perder de vista o horizonte da emancipação.

Na década de 1930, Marcuse deve tomar uma posição do marxismo para justificar uma saída em que a utopia se torna fundamental. Por isso, o debate com os escritos de Marx articulados com a II Internacional de um lado e o diálogo com Horkheimer, na tentativa de compreender o desajuste em relação ao modelo de Teoria Crítica de ambos. Como o

15 MARCUSE, H. Filosofia e Teoria Crítica, Cultura e Sociedade, Paz e Terra, 1998, p. 145.

16Essa afirmação de Marcuse, datada de 1968, pode ser encontrada em MARCUSE. Negations: Essays in Critical

Theory. Mayfly books, 2009.

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31 diagnóstico era a práxis bloqueada, o empenho se dava em fortalecer conceitualmente a utopia daquele momento. Poderíamos dizer que era uma fase de intenso exercício filosófico, pelo movimento ser maior na teoria.

No capítulo II o objetivo é investigar a maneira pela qual era articulada a utopia no momento em que o nazismo acabara de imperar e devastar parte das expectativas de uma sociedade igualitária, uma ocasião em que o sujeito revolucionário só poderia ser o proletariado. Marcuse oscila em relação ao diagnóstico da Dialética do Esclarecimento, ora com maior, ora com menor concordância. Mas também com maior ou menor tentativa de buscar uma “bidimensionalidade” (termo de Andrew Feenberg) para a reflexão e para a ação. Como a produção publicada de Horkheimer nesse período é escassa em comparação com a produção anterior, o confronto com Adorno passa a ser mais importante nesse período. E ele também é um tanto ambíguo, já que ambos (Marcuse e Adorno) alteram suas próprias posições durante esse longo período, e não na mesma direção na maioria das vezes.

Tanto para Marcuse quanto para Adorno e Horkheimer, o diagnóstico revela uma práxis bloqueada; porém, além disso, todos concordam que a Teoria Crítica não pode regredir ao “socialismo utópico” de Saint-Simon, Charles Fourier, Louis Blanc e Robert Owen. O socialismo defendido por estes autores veio a ser denominado de “socialismo utópico” em virtude de seus teóricos exporem os princípios de uma sociedade ideal sem indicar os meios para alcançá-la. Eles acreditavam que a implantação do sistema socialista ocorreria de forma lenta e gradual, com base no pacifismo, inclusive na boa vontade da própria burguesia. Tais pensadores ainda são fortemente calcados nas ideias do pensamento iluminista e, nesse sentido, estão frontalmente em contraposição à Teoria Crítica, pois continuaram a buscar no racionalismo a saída para as contradições geradas no interior do pensamento capitalista. Além disso, eles não faziam uma crítica radical ao capitalismo, posto que, ainda defendiam a manutenção de suas práticas mais elementares.

O período em que Marcuse se encontra preso a um círculo vicioso que envolve suas necessidades e a internalização da repressão será o enfoque deste capítulo (utopia em confronto com a Dialética do esclarecimento, 1947-1967). O significado de utopia muda e torna-se sinônimo daquilo que é inalcançável. O novo período viu a supressão, paralisação e neutralização das classes e forças que, devido a seus interesses reais, encarnavam a esperança

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32 pelo fim da desumanidade. Nos países industrializados avançados, a subordinação e coordenação do suprimido é efetuada através da totalidade da administração das forças produtivas e a crescente satisfação das necessidades, que isolam a sociedade de suas transformações. Produtividade e prosperidade em aliança com uma tecnologia. Ao serviço da política monopolista parecem imunizar o avanço da sociedade industrial em sua estrutura estabelecida.

Com os obstáculos cada vez maiores no mundo administrado, não somente impostos à práxis política, mas sobretudo, às formas da imaginação, o estudo da psique é uma iniciativa crucial para Marcuse. As barreiras fortes à libertação da fantasia e os limites dados na realidade presente, fazem parecer impossível conseguir pensar em emancipação. Somente em 1947, com a publicação de O fim da Utopia, Marcuse muda novamente o significado de utopia por causa do novo diagnóstico de tendência à mudança social.

Deste modo, no Capítulo III (utopia em confronto com Bloch, 1967-1979), a utopia ganha um sentido a mais, além de ter a fantasia como ordem e de também exigir a reinvenção das necessidades, Marcuse encontra na “nova sensibilidade”, uma reflexão sobre o projeto de futuro. Para além do Instituto, é de grande relevância sua relação com Ernst Bloch que exerce influência evidente em suas correspondências com Marcuse, sem contar o impacto que seu livro O Princípio Esperança (1959) possui em toda aquela geração. Partindo desses dados, podemos traçar um estudo dedicado à noção propriamente dita de “utopia concreta” na obra de Marcuse, o que constitui nosso capítulo III. O diagnóstico de Marcuse considerado neste capítulo sofre grande variação em relação aos anteriores, já que o autor passa a apontar para elementos que permitiriam a resistência à integração dos indivíduos à sociedade.

É notável como o período 1967-1969 mudou de maneira tão profunda o diagnóstico de Marcuse, levando-o a um marco que parece estar para além da Dialética do Esclarecimento. Porém, Marcuse não considera que a nova esquerda tenha fracassado, por exemplo. O que aconteceu foi uma mudança no seu papel e na sua posição em vista de um fechamento repressivo do sistema político. A partir do texto A Falência da Nova Esquerda? (1975), organizaremos a discussão do Capítulo III. Neste texto, Marcuse distingue entre a “fase heróica” da Nova Esquerda (na década de 1960, em que “totalizou” a rebelião contra a ordem existente) e a situação posterior, em que a Nova Esquerda tem outro papel a

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33 desempenhar. A impressão que fica é que só em meados da década de 1970 Marcuse conseguiu ter a dimensão mais acabada do que significaram as revoltas dos anos 1960 e a “contrarrevolução” que veio após 1968, em particular a partir de 1970 em diante. Esse texto de 1975 parece colocar em perspectiva ambos os momentos, 1967-1969 e 1970-1975, de uma maneira mais organizada. Isso não diminui a oscilação (que pode acontecer até mesmo dentro de cada um dos períodos), mas lhe dá uma organização e sentido. De qualquer maneira, o importante é que há um corte aqui. A Dialética do esclarecimento deixa de ser o ponto de referência e a base das análises. Mesmo a “contrarrevolução” já tem outro sentido, já tem outra lógica, assim como a resistência que ainda se abriga na Nova Esquerda. É nesse sentido que o confronto com Bloch pode ser promissor, já que pode ajudar a mostrar essa oscilação de um ponto de vista conceitual.

Marcuse, Horkheimer e Adorno e a primeira geração da Teoria Crítica perpetuaram à crítica de Marx ao “socialismo utópico”. No entanto, é Marcuse, aliado a Ernst Bloch (que não era do Instituto) e, de maneira indireta, a Benjamin, que traz de volta o termo utopia, levando em consideração a crítica anterior. O primeiro artigo de Marcuse que pretendemos trabalhar se chama The Realm of Freedom and the Realm of Necessity: A Reconsideration, de 1969. Neste, ele diz que o sujeito revolucionário não é o movimento estudantil em si e descreve o que seria este sujeito e o que seria uma sociedade socialista. Em resposta, Bloch escreve Diskussion mit Herbert Marcuse e questiona acerca deste sujeito. Em seguida Marcuse responde novamente com Revolutionary Subject and Self-government. Ele aponta que, para que ocorra uma mudança efetiva, é necessário que haja esses dois elementos do título, um sujeito revolucionário e um autogoverno, algo que não é exclusividade do movimento estudantil.

O projeto utópico que Marcuse, ao instituir a imaginação como meio de compreensão do mundo, concebe é a projeção imaginária de uma realidade alternativa. Nossa hipótese é de que os fundamentos filosóficos para o impulso utópico encontram-se também nessa visão da imaginação. No curso do pensar e agir, é preciso já mobilizar as forças da utopia. A função da Teoria Crítica não é apenas apreender e avaliar as condições da formação realmente existente do social, mas projetar alternativas. Ao militar a favor do poder negativo, Marcuse queria combater o positivismo científico, tipificado pela publicidade e cultura de

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34 massas na década de 1950. Isto se mostrava necessário para restabelecer um discurso utópico, não como um escapar da fantasia, mas como uma prática de diagnóstico e crítica em uma sociedade que teria abandonado mesmo a ideia de alternativas radicais ao status quo. Como afirmamos anteriormente, o sentido geral da utopia de Marcuse é uma rejeição ou negação do real em favor do possível. Na sua função crítica, oferece a possibilidade de libertação de uma civilização em que as reivindicações de liberdade já foram alcançadas.

Nas revoltas de 1968 - não apenas em Paris, mas em marchas pelos direitos civis, protestos contra a guerra, e batalhas contra o domínio colonial e neo-imperialismo - Marcuse viu a crítica da civilização industrial revelada nas ruas e notou que o valor de tais movimentos não estava na criação bem sucedida de uma sociedade alternativa (o que não era geralmente bem sucedido, em qualquer caso), mas nas maneiras em que as fronteiras pareciam permeáveis na civilização: “Mas, para além destes limites, não há também o espaço, físico e mental, para a construção de um reino de liberdade que não é o do presente: a libertação que exige uma ruptura histórica entre o passado e o presente”.18 Neste uso (não inteiramente metafórico) da

metáfora espacial, Marcuse ressalta o projeto crítico da teoria utópica e prática: mapear a condição atual das formas que podem ser úteis para a ação futura. Nesse jogo de limites temporais, encontra-se também o limite para a emancipação. Para os propósitos demonstrativos do trabalho, a trajetória intelectual de Marcuse será periodizada segundo a produção das sucessivas décadas.

A Teoria Crítica necessitaria, para Marcuse, ser utópica, enquanto para Horkheimer, ela não deve apenas ter orientação para a emancipação, esta orientação deve ser contra qualquer tentativa utópica de superação da repressão, ou seja, é importante considerar a crítica imanente. Se o ancoramento no real é uma condição para que haja crítica, então é imprescindível analisar constantemente este real. Por isso é tão fundamental fazer o diagnóstico do tempo presente, de modo a garantir que não somente potenciais emancipatórios sejam descobertos, mas também os obstáculos que impedem sua realização. Do modelo de Horkheimer até nossos dias, muitos diagnósticos de época foram feitos e o próprio conceito de crítica se reconfigurou a ponto de o colocarmos em xeque. A utopia também sofreu diversas

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