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Mas eu não sou as coisas e me revolto. Tenho palavras em mim buscando canal, são roucas e duras, irritadas, enérgicas, comprimidas há tanto tempo, perderam o sentido, apenas querem explodir. (DRUMMOND, 2000, p.30)

Atividade na Escola Bevenuto Simão de Oliveira, Sítio Paula, Conceição das Crioulas. Na sala multisseriada de educação infantil estavam a professora Graça Gomes, o investigador e treze crianças matriculadas a frequentar: seis miúdos e sete miúdas. A narrativa seguinte representa o esforço de, pelo menos, sinalizar o processo da ação desenvolvida neste encontro.

Após apresentação e boas-vindas, com as crianças curiosas, desconfiadas, outras estranhando a minha presença, meu pensamento, minha atenção estava totalmente voltado para as palavras dos estudantes, e viajando nessa escuta, lentamente, me envolvi nas brincadeiras com as crianças: finalizamos as atividades em roda e de mãos dadas, cantamos uma música, no final não podíamos nos mexer.

A participação de professor e alunos na experiência bidirecional de cada um, como pessoas de lugares diferentes, é outro aspecto da pedagogia baseada na comunidade. Professores procedentes da cultura majoritária precisam, eles próprios, participar dessa experiência, para que possam merecer confiança e ser eficientes em contextos cultural, racial e etnicamente diferentes. (DANIEL, 2009, p.133)

Antes do início da aula conversei com a professora responsável pela turma, falando do conceito de narrativa oral, e da minha intenção em não atrapalhar o seu planejamento de aula, mas auxiliá-la quando possível, pretendendo apenas dividir com ela e com eles a minha experiência, também de estudante e investigar, a possibilidade de partilhar possibilidades de aprendizagem em artes visuais, usando os recursos da palavra dos próprios estudantes.

Narrativa oral como uma história contada. Nesta ação não buscava narrativa de mestres e sábios anciões que tem muito a falar e ensinar, mas de crianças com idade variando de 4 a 6 anos. O primeiro problema que enfrentei foi o seguinte: não pretendia entrevistar as crianças, mas perceber espontaneamente as suas histórias, suas palavras, suas preferências nas atividades de educação artística. Depois do momento de descontração passamos para a realização de desenhos em papel branco, como dito anteriormente o foco nas palavras dos estudantes era recorte da investigação que não interferia no planejamento da professora, neste sentido intensifiquei meu olhar e meus ouvidos com o objetivo de ver e ouvir novas possibilidades de propiciar a arte para as crianças, fugindo dos modelos tradicionais. Os desenhos foram importantes para pensar a segunda intervenção, que consistiu num processo para se criarem outras relações com a oralidade, inventando novos significados para as palavras, aproveitando o projeto em andamento e continuar o tema escolhido: a casa da vovó. A minha intenção residiu na escuta das narrativas sobre a casa de cada uma das crianças, por ser o lugar do homem e da mulher, da morada, espaço privado, lugar de abrigo, de memórias partilhadas e de brincadeira. Procurei abrir o diálogo com as crianças, sendo a recepção calorosa, com desconfiança, indiferença e às vezes hostilidade, principalmente a criança M. E. Ela expressou as seguintes palavras: “você não é nosso professor, não é mulher, é homem e grande”. A minha presença causava estranhamento para estas crianças, expressa na sua franqueza, que me dava a possibilidade de perceber suas reações sinceras e emotivas.

Um sentimento crescente de pertencimento à comunidade e a poesia de Manuel de Barros acompanhavam-me nesta experiência de ensino e investigação em arte, diferente das receitas prontas, das imposições naturalizadas em certezas, mas na busca de “uma narrativa poética e emocional” (Idem, 2009, p.139). As manifestações de aceitação foram aos poucos aumentando, e igualmente as narrativas.

Aproximei-me das crianças durante as suas brincadeiras e, gradualmente toda a atividade de desenho foi acontecendo, interessando-me sobremaneira as suas palavras, impressões, expressões e narrativas, na opinião de Daniel “muitos estudantes têm histórias para contar” (Idem, 2009, p.140); estava à procurar na fala e nas notas das crianças das possibilidades de representação de suas vidas, e, simultaneamente, das questões da educação artística. Mesmo não promovendo um questionário estruturado, de forma espontânea as crianças foram aderindo ao trabalho oferecido, foram dando as suas pistas e soltaram a sua oralidade.

Meu interesse de investigação com a intervenção, além de abrir novas perspectivas do ensino e da pesquisa em arte, foi interagir com a comunidade escolar, participar da experiência, e conquistar meu espaço e respeito no quilombo, não como acadêmico, investigador e especialista em educação de criança quilombola, mas como sertanejo ativista cultural e militante político.

Na conjuntura social e cultural investigada, a comunidade negra de Conceição das Crioulas, estavam questões étnicas, sociais e raciais, e sobre elas com meu posicionamento consciente e interessado na realidade quilombola, procurava no contexto pessoal de cada aluno o inusitado, o não dito ainda, ou seja, palavras provocadoras e transgressoras das normas semânticas do discurso, tal qual o poeta Manoel de Barros.

Nesta primeira intervenção procurei com toda modéstia fugir das obviedades, da verdade absoluta e das certezas do mundo normalmente invasoras da escola formal e, de modo distinto, sugerir que árvores, cabras, porcos, cachorros, lagartixas, calangos, insetos inclusive o ‘papa pimenta’ aquele que queima a pele, podem tornar-se objeto de poesia e de arte se estivermos dispostos a transgredir e fazer aquilo que à universidade incomoda.

O universo sensível da poesia e da arte está presente no primeiro olhar, no primeiro gesto e nas primitivas palavras das crianças, segundo Manoel de Barros, e era precisamente isso o que procurava em Conceição das Crioulas; no término da aula, a professora pediu para todas as crianças estudantes trazerem garrafas de plástico, para serem usadas na segunda intervenção onde se continuaria a trabalhar o tema da casa. A lição que aprendi neste encontro de duas realidades diferentes, o investigador cuja negritude está mais na consciência do que na cor da pele e as crianças negras alunas de uma escola rural quilombola, é que elas em seu território tradicional, com suas brincadeiras, carisma, afetividade, palavras e narrativas orais, tinham muito a ensinar ao pesquisador de fora, das possibilidades de como elaborar atividades artísticas pertinentes as suas respectivas realidades.