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A generosidade quilombista de Conceição das Crioulas partilhou em conversas e interações o seu conhecimento ancestral adquirido, preservado ou recuperado das gerações de seus antepassados, que construíram com suor, sangue e lágrima a riqueza da classe dominante brasileira, composta de pessoas que se regozijavam no ócio e se envergonhavam do trabalho manual.

Além do estudo sobre os quilombos em livros, teses, dissertações, artigos, reportagens e editoriais de jornais e revistas, também debrucei na inquieta realidade da comunidade de Conceição das Crioulas, estudando com especial atenção seus modos de vida, suas aspirações e dores, e neles a atualidade das ideias formuladas por Abdias do Nascimento, recuperando o imperativo de organização e mobilização de toda a gente negra, em um enfrentamento das ideias e instituições que nos atingem.

O racismo persistente na sociedade e na universidade brasileira, mobilizou a minha inscrição na recuperação dos princípios básicos do quilombismo, com o único objetivo de procurar, a partir das artes visuais, evidenciar que as políticas públicas para a população quilombola estão ainda tímidas e não apresentam indícios, ou evidências, de consolidação de plena cidadania dos moradores destas comunidades tradicionais.

Foi o sentimento quilombista de Abdias do Nascimento que me abriu os horizontes da imaginação, poética, artística e estética, para perceber na investigação em Conceição das Crioulas a beleza da mobilização e organização da luta política desta gente simples, que ainda não são tratados e respeitados da mesma forma que são

outros filhos deste solo, desta mãe gentil.

Neste mesmo sentido Joaquim Nabuco no prefácio do livro: O abolicionismo escreveu, sentido no corpo a dor do escravo, dizendo que a escravidão ultrajava e humilhava o Brasil, assim como era a degradação sistemática da natureza humana por interesses mercenários e egoístas, e que “a pátria, como a mãe, quando não existe para os filhos mais infelizes, não existe para os mais dignos” (NABUCO, 2000, p.1).

Ainda na reflexão de Nabuco a única obra verdadeiramente nacional que a classe dominante conseguiu fundar foi a africanização do Brasil pela escravidão a qual “é uma nódoa que a mãe pátria imprimiu na sua própria face e na sua língua” (NABUCO, 2000, p.66). Ou seja, o crescimento do país dependeu da degradação e miséria dos filhos embrutecidos com o chicote e com as torturas, mesmo assim eles imprimiram na população brasileira a sua face e a riqueza de sua língua.

Em todos os sentidos, essa narrativa, da interação artística em Conceição é uma ação, um trabalho antiescravista e anti-racista, uma atitude de rebeldia latente no fazer da intervenção uma residência artística, onde aquilombar-me foi um exercício de aversão ao discurso hegemônico, uma ação inscrita no campo da contravenção, do engajamento, e de envolvimento com essa população.

Esta escrita da investigação, não ilude nem esconde a forma precária de sobrevivência das pessoas de Conceição, o que permite estabelecer a possibilidade de alguma generalização desta realidade para outros quilombos do país. Daí a urgência em recuperar e reproduzir o sentido do quilombismo, todos os avanços, mesmo que tímidos ainda, verificados na comunidade investigada, desde a organização democrática de onde se partilha o discernimento político sobre o futuro, ao posto de saúde, à rede de escolas e à sua estadual escola secundária, à quadra de esporte, que são conquistas da mobilização política dos próprios moradores.

Criámos, e produzimos artefatos, atitudes e proposições artísticas, desde um lugar, sendo personagens coletivas, e estando ligados a um espaço específico, a um contexto singular, como neste momento em que estou escrevendo desde a comunidade quilombola, onde se vive ainda hoje os desdobramentos da crueldade da escravidão, no sofrimento de falta de emprego e de terra arável para retirar dela o mínimo para sobrevivência, sem salário, com moradias precárias e futuro incerto.

De vítima acorrentada pelo regime racista de trabalho forçado, o escravo passou para o estado de verdadeiro pária social, submetido pelas correntes invisíveis forjadas por aquela mesma sociedade racista e

escravocrata. (NASCIMENTO, 2002, p.75)

A lei áurea foi um simulacro de libertação, segundo Abdias e outros autores foi uma fraude semelhante aquela dos chamados africanos livres, “isto é, os doentes, aleijados, idosos, os imprestáveis pelo esgotamento do trabalho intensivo, eram compulsoriamente libertados” (NASCIMENTO, 2002, p.75). Isso constituía para os senhores um auto libertação de qualquer responsabilidade, abandonando-os impiedosamente à morte lenta pela fome e pelas moléstias.

Os quilombos foram comunidades criadas e organizadas por africanos livres, que não se submeteram ao domínio e submissão dos grilhões e do chicote, formadas com a presença de indígenas e negros orgulhosos de sua condição e dignidade humana, que recusa submeter-se à servidão. Representa a motivação, o sentido e o sentimento absoluto da liberdade.

A arte é sempre histórica, ela não está despida do seu tempo, sendo assim, a arte investigada em Conceição parte de uma plataforma de valorização do ser histórico do negro brasileiro auto-identificado como quilombola, interferência de mudançadas coisas exatamente como estão, e nada deve ao mercado, para a indústria criativa, para o empreendedorismo cultural.

Os quilombolas de Conceição viveram grande parte de sua existência em dificuldade, devido ao terror, à violência, à coação praticada por fazendeiros que expulsavam os moradores das melhores e produtivas terras, e nessa realidade amarram as suas representações e desenvolvem as suas produções, correspondendo a um cenário de resistência e coragem, inspirado na experiência de Zumbi dos Palmares. Como referi é neste contexto preciso que verifico e anuncio a pertinência do papel social e político do quilombismo.

O quilombismo manifesta-se também na arte e cultura afro-brasileira, de origem mítica, histórica e espiritual, memória coletiva que devolve a beleza aos quilombolas que estão em precariedade, exclusão e violência, e alimenta a expressão da criatividade no artesanato, na dança, na música e na religiosidade popular, e de modo muito peculiar e relevante, na mobilização e organização política para enfrentar e resistir, os ataques e ameaças dos latifundiários da região.

A arte através de sua irreverência, além de alentar, também pode denunciar mazelas e promover, outras formas de ver a cultura, e a vida, “esta é uma lição da nossa arte, que ao contrário da arte do chamado ocidente, tem para nós o sentido de uma vivência, natural e criativa” (NASCIMENTO, 2002, p.86). Presente no cotidiano, e

na religiosidade de matriz africana a criação artística quilombista difere do racionalismo europeu e do pragmatismo norte americano.

Com consciência negra, isto é auto-identificado como negro antes da investigação, a intervenção em Conceição das Crioulas ampliou a minha percepção do mundo e da sociedade a partir do sentimento quilombista, que me mostrou que uma propagada mudança progressista provocada espontaneamente em beneficio do afro-brasileiro não passa de ilusão, e que só será viabilizada com mobilização e organização política dos quilombolas.

O que a literatura especializada mostrou-me e a investigação reforçou, foi a descoberta que existem ainda hoje, descendentes de escravos que vegetam nas zonas rurais, condenados a uma existência sem o mínimo para continuarem a viver, numa situação de desamparo total das políticas públicas, excluídos de atendimento básico de saúde, escola, energia elétrica, água e alimento, sabendo-se que para sair destas condições depende de ação política, e também da solidariedade quilombista.

Arte no contexto quilombola é uma experiência coletiva, é uma expressão da cultura, da festa, do lúdico, da brincadeira materializada também na política. Tanto a arte, o esporte como a política fazem parte natural da vida dos quilombolas de Conceição desde muito cedo, e as expressões das suas representações estão intrinsecamente ligadas ao prazer, que tanto inspira, organiza e significa o mundo do afro-brasileiro, quando as mobiliza contra o infortúnio.

Fui à sociedade negra rural enriquecer meu repertório artístico com a investigação realizada, com objetivo de tornar público o que estava exclusivamente na comunidade, vivi a cultura do quilombo Conceição das Crioulas que me ensinou outras perspectivas de ver o mundo, as pessoas, entender que a arte para eles tem o sentido de uma vivência, natural e criativa e não está separada do dia-a-dia da comunidade.

A intervenção como parte do processo de criação coletiva, colaborativa e participativa, foi a percepção do investigador ao interagir na realidade concreta da comunidade, foi uma experiência imediata no instante da ação, assim como foi também uma experiência refletida e analisada da expressão das crenças, tradições e rituais que dialoga com suas origens e com a sociedade contemporânea.