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2.2. Qualidade da educação no cenário brasileiro:

2.2.1. Primeira dissertação analisada

Numa investigação interpretativa, Débora Martins de Souza96 procura desvelar a performance que o saber técnico tem na estratégia ideológica neoliberal para forjar uma determinada concepção de qualidade na educação. De acordo com ela:

“As decisões institucionais com relação a qualidade da educação conseguem, de maneira sutil e sedutora, silenciar e sucumbir as possibilidades da educação construir um discurso emancipatório” (p. vii).

Para Souza, os discursos sobre a qualidade adquirem na educação o perfil da transformação que ocorre no setor produtivo, principalmente no predomínio da técnica. Dessa forma, os ideais neoliberais passam a fazer parte do cotidiano educacional e a se legitimar.

Como se bastasse à educação aderir aos preceitos neoliberais para que passe e ser de qualidade.

Tais preceitos vêm embutidos na concepção de qualidade total.

Um dos argumentos dos defensores da qualidade total no Brasil, como o industrial Carlos Eduardo Moreira Ferreira da FIESP, que teve seu discurso analisado por Souza, é que em muitos países - acho que ele se referia à Inglaterra e ao Chile - a reciclagem radical dos negócios tem inspirado o poder público a atender a população adotando os princípios da qualidade total.

Analisando o discurso de Cosete Ramos97 sobre qualidade total na educação, Souza revela que tal discurso resume grande parte das características centrais do programa de controle de qualidade adotados em muitas empresas (TQC – sigla em inglês). A idéia que prevalece no discurso de Cosete é a de que uma série de estratégias do tipo participativa, que traduz no cotidiano escolar a filosofia da qualidade total, melhora a educação e transforma as práticas tradicionais. É como se bastasse mudar a gestão e a organização para melhorar a educação.

Nessa lógica, de acordo com Souza, os discursos da qualidade da educação vem acompanhado do método gerencial das organizações empresariais, com algumas alterações adaptativas. Esse método é conhecido como TQC.

96 SOUZA, Débora Martins de. Discursos da qualidade na educação e performance da técnica. Campinas, SP,

2000.

97

A saber, o método TQC tem como meta a qualidade na fonte, o que significa: se houver erros, devem ser descobertos e eliminados na fonte, no ponto em que se faz o trabalho. A preocupação é com a descoberta dos defeitos e com sua prevenção. De acordo com Souza, o método TQC tende a apagar o sujeito em sua autonomia e a capacidade de produzir e crescer no e com o conhecimento.

Vale dizer que Cosete Ramos busca fundamentos em W. Edwards Deming e seu método contendo 14 princípios para a qualidade total: filosofia da qualidade; constância de propósitos; avaliação no processo; transações de longo prazo; melhoria constante; treinamento em serviços; liderança forte; afastamento do medo; eliminação de barreiras; comunicação produtiva; abandono de cotas numéricas; orgulho da execução; educação e aperfeiçoamento e; ação para transformação.

Para Souza, um agravante dessa lógica é que a sociedade aparece sob a forma de interferência, sendo a política e o conflito vistos como fatores que obscurecem a livre ação dos agentes educacionais. As decisões institucionais são destituídas de política e o foco se restringe no saber técnico.

Como diz Souza:

“A ênfase tão somente nos fatos do contexto das organizações, em nome de uma maior objetividade, eficiência e imparcialidade, destitui as organizações do aspecto humano, isto é, o sistema organizacional ganha autonomia sem a presença do sujeito. Priorizar os fatos significa descrever e captar o comportamento humano desligando-o da intencionalidade dos sujeitos, logo, os valores e a prática interpretativa estão secundarizados.” (p.48)

As condições de produção desse método e as relações de poder envolvidas são desconsideradas. Busca-se a qualidade do produto apenas com o uso de algumas ferramentas que consistem em novas maneiras de organização do trabalho.

Para a Souza:

“As decisões institucionais compreendidas e realizadas fora do campo do conhecimento prático desloca a prioridade da prática discursiva, junto com a questão da interpretação e do debate. As ferramentas do método TQC estão inseridas no campo do conhecimento técnico prioritariamente. Assim, o que existe é um hiato na articulação de decisões entre o mundo vivido e o mundo sistêmico, e é neste hiato que se localiza o escamoteamento dos conflitos, é nesse hiato que o sujeito, como sujeito capaz de produzir inúmeras possibilidades de historicizar-se na prática institucional, se apaga.” (p. 82).

Analisando o discurso do engenheiro Vicente Falconi Campos, num seminário de desdobramento do TQC, Souza destaca que tal discurso é produzido nas condições históricas do neoliberalismo e constitui-se num forte mecanismo de produção ideológica.

Com base em alguns pontos da fala de Falconi sobre o TQC - (...) TQC é um método de gestão voltado para as pessoas; (...) inicialmente priorizamos as grandes empresas, pois acreditamos que depois elas podem transmitir esses conceitos para o resto do país; (...) decidimos priorizar a prática, não ficar só estudando; (...) decidimos como premissa voltar–se totalmente para a sociedade - Souza desvela os mecanismos metafóricos por traz do discurso da TQC. Para ela esse tipo de abordagem, que foca na solidariedade, visa legitimar o discurso.

Em suas considerações finais destaca:

“A performance da técnica nesses discursos se constitui nos mecanismos ideológicos, sendo que estes mecanismos ganham a sua materialidade na prática discursiva. Não é no conteúdo da ideologia que se afeta o sujeito, que se seduz este sujeito, mas sim nas estratégias de movimentação desta ideologia. Quando se toma uma decisão o saber pragmático (técnico), é importante para dar conta do próprio caminhar da instituição em seu cotidiano, na situação imediata de resoluções de problemas, mas os caminhos futuros, que deverão ser discutidos em longo prazo, estes estão muito mais ligados ao saber não imediatamente possível, à construção de uma saber emancipatório. Portanto, neste lugar de decisões institucionais, os saberes técnicos e emancipatório concorrem simultaneamente.” (p. 164)

E continua:

“O fato de priorizar o conhecimento técnico em detrimento do prático e emancipatório nos confirma a tese de Habermans de que o mundo sistêmico ‘coloniza’ o mundo da vida e a intimidade dos grupos sociais. A instituição educacional, compreendida na tensão entre duas dimensões, fica ‘descompensada’, na medida em que centraliza esforços na construção de um saber técnico. O resgate da práxis social, no contexto educacional, ganha amplitude na medida em que a escola pratica a interpretação.” (p. 165)

Por fim, destaca que a interpretação na escola não deve ser reservada apenas às aulas, mas principalmente às decisões institucionais em âmbito federal, estadual e municipal. E que tratar a interpretação a partir de um saber meramente técnico significa esconder as possibilidades históricas de emancipação nas estratégias “técnicas” da ideologia neoliberal.

Com base nessa pesquisa, entendemos que as propostas para a promoção da qualidade da educação vinda da concepção empresarial, fundada nos preceitos neoliberais, prioriza ações de cunho eminentemente técnico, focado no método, no caso o da qualidade total,

adotado dos meios empresarias. Nessa direção, o caráter político e deixado num segundo plano e os sujeitos, embora convidados a participar, ficam destituídos das decisões centrais e os conflitos são negados e desconsiderados. Em síntese, prevalece o que se convencionou no Brasil a chamar de uma visão gerencialista e técnica da educação, no caso, uma visão gerencialista com base no método da qualidade total adotada dos meios empresarias. Ou seja, uma medida para a promoção da qualidade da educação nessa visão é a adoção do método da qualidade total. Como se isso bastasse.