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Primeiras práticas de curar as bexigas e a descoberta da vacina

Capítulo 3 A introdução da vacinação contra a varíola em Porto Alegre

3.1 Primeiras práticas de curar as bexigas e a descoberta da vacina

Atualmente, existem inúmeras medidas preventivas, paliativas e os mais variados e avançados tratamentos e remédios específicos para uma boa quantidade, ou, talvez seja possível afirmar, para uma imensa maioria de enfermidades, sejam leves ou graves. Porém, mesmo as práticas mais simples, como utilizar determinada planta para a infusão de um chá ou para a preparação de um unguento para uma ferida partiram de exames, tentativas e erros533, até chegar a uma “fórmula” adequada.

530 Exposição Revolta da Vacina: cidadania, ciência e saúde, Módulo 5, Casa de Oswaldo Cruz, 2005, painel 1. Disponível em: <http://www.ccms.saude.gov.br/revolta/pdf/M5.pdf>. Acesso em: 04 de junho de 2018.

531 Exposição Revolta da Vacina: cidadania, ciência e saúde, Módulo 5, Casa de Oswaldo Cruz, 2005, painel 2. Disponível em: <http://www.ccms.saude.gov.br/revolta/pdf/M5.pdf>. Acesso em: 04 de junho de 2018.

532 Exposição Revolta da Vacina: cidadania, ciência e saúde, Módulo 5, Casa de Oswaldo Cruz, 2005, painel 1. Disponível em: <http://www.ccms.saude.gov.br/revolta/pdf/M5.pdf>. Acesso em: 04 de junho de 2018.

533 Este processo faz parte das discussões propostas por Gilberto Hochman e Diego Armus de uma nova história da medicina através da qual são abordadas as incertezas do desenvolvimento de conhecimentos médicos (entre outros aspectos). Para mais informações, ver: HOCHMAN; ARMUS, 2004.

No caso da varíola, por exemplo, o receituário foi fértil e variado. Conforme consta em um dos painéis da exposição da COC acima citada, havia (já no século X), entre os métodos, a recomendação do uso de tecidos, materiais e luzes de cor vermelha nos quartos dos pacientes infectados e a indicação dos

poderes preventivos da cânfora durante as epidemias. Empregava-se ainda o óxido de mercúrio, a água de alcatrão e a tintura de mirra. Duas medidas preventivas foram mais difundidas. Uma era a retirada do sangue do cordão umbilical, para evitar que as impurezas uterinas – para muitos, causa da varíola – fossem transmitidas à criança. Outra foi o uso de bezoares – pedrinhas encontradas no estômago ou nos intestinos de alguns animais ruminantes. Instalada a doença, a classe médica dividia-se. Uns procuravam expulsar a doença com calor, colocando o paciente em ambiente superaquecido e usando bebidas sudoríferas, como cidra com canela e pimenta, vinho quente e licores. Outros defendiam métodos refrescantes, como exposição dos doentes a correntes de ar, tisanas frias, eméticos e sangrias.534

Os pesquisadores da COC mencionam também a utilização de preparados com os mais curiosos ingredientes, como flor de papoula, bagas de sabugo, fezes de cavalo e olhos de caranguejo, o que apenas enfatiza o caráter experimental dos tratamentos. Tania Maria Fernandes observa que “várias foram as tentativas de controlar sua expansão, tomando como base a percepção de que existia uma forma branda da doença e de que algumas pessoas se mostravam resistentes a ela, mesmo diante do contato próximo com enfermos.”535. A partir desta suposição é que, após o século X, seria acrescentada a esta

lista de tratamentos a técnica de variolização, um método que consistia em soprar material de varíola em pó, geralmente das crostas, nas narinas das pessoas que ainda não tivessem contraído a doença.

Os primeiros registros desta prática remontam aos chineses, mas há vestígios de que ela era conhecida e aplicada por outros povos da África e da Ásia, embora com algumas alterações, como: “algodão, com pó de crostas ou pus inserido no nariz, vestir roupas íntimas de doentes, incrustar crostas em arranhões, picar a pele com agulhas contaminadas, fazer um corte na pele e colocar um fio de linha infectado ou uma gota de pus.”536. Esta técnica, segundo Fernandes, “baseava-se na constatação de que os indivíduos que sobreviviam à varíola não mais a contraíam e que sua implantação

534 Exposição Revolta da Vacina: cidadania, ciência e saúde, Módulo 5, Casa de Oswaldo Cruz, 2005, painel 4. Disponível em: <http://www.ccms.saude.gov.br/revolta/pdf/M5.pdf>. Acesso em: 04 de junho de 2018.

535 FERNANDES, Tânia Maria. Vacina Antivaríolica: ciência, técnica e o poder dos homens, 1808-1920. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2010, p. 16.

536 Exposição Revolta da Vacina: cidadania, ciência e saúde, Módulo 7, Casa de Oswaldo Cruz, 2005, painel 1. Disponível em: <http://www.ccms.saude.gov.br/revolta/pdf/M7.pdf>. Acesso em: 04 de junho de 2018.

artificial no organismo humano poderia provocar defesa contra a doença.”537. Isto fez com

que houvesse tantos modelos parecidos de transmissão do vírus (sempre através da absorção – respiratória ou por contato – das secreções extraídas das pústulas de pessoas doentes). Embora estes tratamentos fossem rejeitados por muitos em decorrência dos insucessos e das taxas de mortalidade, logo se espalhavam para as outras partes do mundo. É possível dizer que em pleno século das Luzes (1715-1789)538, enquanto alguns países europeus ainda relutavam em adotar esta prática, a Inglaterra se tornou o principal centro internacional de variolização, atraindo visitantes que buscavam aprender o método para levá-lo para seus próprios países. Não é à toa também que, neste mesmo país, quase na virada do século, este método foi transformado por Edward Jenner539.

Neste período inicial do século XVIII, Bluteau descreveu a varíola, mais conhecida por alguns como bexigas, como uma

Doença conhecida, que cobre o couro de bostelas. Procede de hum sangue viciado, que causa esta effervescencia na massa sanguinaria, & do sangue reconcentrado nas bostelas se gerão huns pequenos abcessos, coimpressoens corrosivas na pelle, que nella deixão humas pequenas cicatrizes. Gastão as bexigas tres dias em sahir, despois de nove estão maduras, no fim de outros nove estão secas. He mal contagioso, & tão perigosamente simpathico, que muitas vezes a irmãos, & irmãas, ainda que distantes huns dos outros, no mesmo tempo se communica. [...] Hà bexigas negraes, bexigas de pelo de lixa, bexigas de ta, & e bexigs doudas. Variola [...] He o termo, de que commummente usão desta palavra os Medicos Latinos.540

Esta enfermidade era conhecida e temida pelas marcas deixadas na pele. Fernandes enfatiza que “o quadro clínico era gravíssimo e considerado ‘asqueroso’, com pústulas infeccionadas que, naqueles que escapavam com vida, se transformavam em cicatrizes típicas e profundas, localizadas, principalmente no rosto.”541

537 FERNANDES, 2010, p. 31-32.

538 Para mais informações ver: SILVA; SILVA, 2009, 210-212.

539 Edward Jenner era filho de um reverendo, o que lhe permitiu ter acesso a uma forte educação básica. Na época da escola, foi inoculado para a varíola e, aos 14 anos, tornou-se aprendiz de cirurgião. Passados sete anos, trocou de mestre, tornando-se aprendiz de cirurgia e anatomia no Hospital St. George’s, de Londres. Em 1773, retornou para Berkeley, onde nasceu, para se tornar médico de família e cirurgião. Para mais informações ver: FERNANDES, 1999.

540 BLUTEAU, 1712-1728, vol. 2, p. 115 – verbete Bexigas.

541 FERNANDES, 2010, p. 16. Na documentação relativa ao tráfico de escravizados, também se percebe a preocupação com a varíola. Nas guias de transporte de escravizados (AHRS), por exemplo, identificou-se documentos nos quais foram anotados casos de escravizados que haviam falecido em decorrência da varíola ou que possuíam sinais de que haviam tido a doença, indicadas por expressões como “marcas de bexigas”; " bexigosa da cara"; “bexigoso[a]”; “picado de bexigas”, “com bastantes sinais de bexigas”, entre outras (AHRS. Guias de escravos...). A respeito desta documentação, ver BERUTE, 2006.

Por estas razões é que os homens das ciências passariam a buscar uma versão mais branda da doença para inoculação542. Conforme Fernandes543,

Jenner observou que, ao cuidarem do gado portador da doença, os ordenhadores desenvolviam, nas mãos, pústulas idênticas ao cow-pox original, que, após alguns dias, murchavam e secavam. Constatou, também, que tais indivíduos não contraíam a varíola quando em contato com pessoas doentes. Reproduziu, então sua observação (Jenner, 1798). A partir da pústula desenvolvida na vaca, obteve um produto que passou a denominar ‘vacina’, que, ao ser inoculado no homem, fazia surgir erupções, semelhantes à varíola, no local das inoculações. Dessas erupções era retirada a ‘linfa’ ou ‘pus variólico, utilizado para novas inoculações. Formava-se, assim, uma cadeia de imunização entre homens, na qual o cow-pox da vaca funcionava como um primeiro agente imunizador. Essa vacina ficou conhecida como vacina jenneriana ou humanizada544.

Edward Jenner passou, então, a realizar inoculações, comprovando que os indivíduos que receberam o fluído ficavam protegidos do vírus. Em outro estudo, Fernandes aponta que, “inicialmente, seus trabalhos tiveram pouca repercussão, porém, após o sucesso de algumas experiências na Itália, na Áustria e na Alemanha, ganhou reconhecimento do governo inglês.”545. Jenner publicou outro texto com a intenção de que o método se tornasse conhecido mundialmente, mas, inicialmente, não levaria o devido crédito.

No entanto, após algum tempo, colegas das mais diversas áreas se puseram a testar a teoria de Edward Jenner e comprovar a sua eficácia, ultrapassando, desta forma, as barreiras do reconhecimento científico. Entre as diferentes civilizações que adotaram a vacinação, irei fazer apontamentos sobre as experiências portuguesa e espanhola, duas monarquias que, além de serem vizinhas, mantinham estreitas relações políticas e matrimoniais, embora nem sempre tranquilas, e que foram responsáveis pela colonização de inúmeros territórios, principalmente, nas Américas.

542 No site da Biblioteca Nacional de Medicina, do Instituto Nacional de Saúde dos Estados Unidos, encontrei um resumo de um artigo alemão afirmando que, antes de Jenner, outras seis pessoas teriam percebido as vantagens de usar a varíola bovina para o tratamento, entre as quais destacam Peter Plett (1766-1823). Porém, como não encontrei uma versão do artigo na íntegra ainda, preferi seguir com as informações sobre o trabalho de Jenner, mais conhecidas e seguidas pelos pesquisadores. (Disponível em: PLETT, Peter. Peter Plett and other discoverers of cowpox vaccination before Edward Jenner. 2006. <https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/17338405>. Acesso em: 12 de junho de 2018).

543 FERNANDES, 2010, p. 32.

544 Cow-pox é o nome dado a pústula da vaca. Também conhecida por vaccinus, de vacca – termo que dá origem a expressão vacina