• Nenhum resultado encontrado

Capítulo 2 As medidas em prol da saúde pública nas atas da Câmara Municipal de

2.1 Fundamentos da medicina e da saúde na América Latina

2.1.1 Um sortido rol de práticos de cura

No que diz respeito às colônias ibéricas, é essencial que o primeiro grupo a ser referido seja o dos indígenas, habitantes deste território há milhares de anos antes da vinda dos conquistadores, vivendo uma relação mais equilibrada com o meio ambiente. Como os demais grupos humanos, estas sociedades desenvolveram crenças específicas sobre a natureza, o corpo, a saúde e as doenças e sobre determinadas práticas curativas (por exemplo, como lidar com os nascimentos, tratar lesões, controlar a dor, entre outros). No lugar de um médico teórico, em cada comunidade havia um pajé, treinado para administrar o melhor remédio aos enfermos e ocupando uma posição de destaque no seu grupo, inclusive como conselheiro320.

Cueto e Palmer consideram321 que, assim como os colonizadores europeus, os indígenas davam mais enfoque à cura do que à prevenção. Vale lembrar que, comumente, estes grupos chamavam a atenção dos cronistas, por exemplo, pela sua repulsa por pelos corporais e por manter a certa distância da tribo àqueles que estivessem adoentados. O fato é que os conhecimentos indígenas de “[...] plantas medicinais utilizadas para febres, feridas, úlceras, alguns tipos de tumores e ossos quebrados, bem como para pomadas e emplastros”322, acabaram, em muitos momentos, substituindo as terapêuticas europeias para aqueles que aqui aportaram. Embora houvesse ressalvas quanto aos rituais mágico- religiosos, a medicina indígena tornou-se uma alternativa, mesmo porque havia

319 CUETO; PALMER, 2016, p. 19. O termo escravo foi mantido apenas nas citações diretas.

320 CUETO; PALMER, 2016, p 20-23; SCLIAR, Moacyr. Uma guerra contra a morte: dos primeiros jesuítas aos cientistas modernos, a medicina luta há cinco séculos para erradicar as grandes epidemias do Brasil. In:

Nossa História: Os assustadores métodos de cura no Brasil. São Paulo: Editora Vera Cruz, ano 2, nº 21, p.

14-19, julho, 2005, p. 14.

321 CUETO; PALMER, 2016, p 21-22.

322 CUETO; PALMER, 2016, p 22. Em seu livro, Gurgel aponta em diversos momentos a “substituição” de terapêuticas europeias por outras de origem nativa, inclusive pela facilidade em conseguir certos ingredientes (GURGEL, 2011).

dificuldades em fazer chegar ajuda. Após algum tempo, com a criação das reduções jesuítas, projetadas para “domesticar” e “civilizar” os nativos, os padres da companhia passaram a aprender as técnicas e adaptar o uso das plantas para suprir as necessidades. Este foi só o início de um processo que fez com que, conforme chegassem mais exploradores, colonos e homens das ciências à América Latina, mais e mais a sabedoria indígena fosse suprimida ou incorporada aos métodos científicos locais323.

Todavia, nenhum conhecimento que tivessem adquirido preparou as comunidades indígenas para o “boom” bacteriano e virulento que desembarcou com os colonizadores. Por estarem sujeitos, desde a infância, a determinadas doenças contagiosas, os europeus que aqui chegaram mal podiam imaginar que traziam consigo germes que acabaram por dizimar grupos inteiros.

Apesar de oprimidos e “desarmados”, vários praticantes de curas indígenas conseguiram se manter ativos em boa parte dos territórios conquistados pelas Coroas ibéricas, embora passassem a disputar espaço nestes territórios com os representantes das medicinas “oficiais”324, africanas e asiáticas. Esta situação acontece, como bem descrito por Clarice Berenice S. de Almeida, a partir dos

enormes deslocamentos populacionais ocorridos a partir do início do século XVI; a mobilidade física dos habitantes das regiões coloniais, sobretudo nas áreas urbanizadas; o trânsito intenso e planetário de gente e de culturas como nunca antes havido; a constituição de imenso contingente de mestiçados de todas as cores, cruzados ineditamente com os nativos americanos; a pujança econômica das áreas colonizadas pelos europeus, sobretudo as áreas mineradores exploradas pelos ibéricos, os portos e núcleos administrativos; o encontro (e isso não significa, necessariamente, harmonia) de culturas riquíssimas e muito distintas umas das outras, a circulação de doenças, vírus e bactérias de forma igualmente inédita e planetária, tudo isso, concomitantemente, ajuda a explicar a emergência de práticas mestiças de curas nas Américas325.

Estando à mercê da natureza e com medo de uma morte iminente, muitas vezes, os colonos326 recorreram a métodos e medicamentos locais/regionais disponíveis nas proximidades, especialmente pelas propriedades da flora brasileira327. Esta atitude era

323 Muito ainda tem sido pesquisado e descoberto a respeito dos saberes indígenas e das apropriações e observações dos jesuítas durante o seu trabalho nas reduções. Veja-se, por exemplo o trabalho de Maria Silvia Di Liscia (DI LISCIA, 2002).

324 Estas, somadas às teorias milenares de Hipócrates, Galeno e Avicena, despertaram uma renovação da medicina, inspirada nas Luzes, sendo aperfeiçoada aos poucos, mas constantemente.

325 ALMEIDA, 2010, p. 14.

326 Mesmo que trouxessem consigo alguns remédios ou paliativos naturais, estes não tinham muita validade, perdendo logo suas propriedades, ainda mais pela exposição a climas tão diferentes. (RIBEIRO, 1997, p. 26)

327 Mesmo porque, segundo Almeida, a utilização de substâncias já conhecidas pelos indivíduos podia facilitar o processo de aceitação dos medicamentos (ALMEIDA, 2010, p. 100).

necessária dado o longo período para a realização das travessias marítimas, o que fazia com que os suprimentos farmacêuticos demorassem para ser repostos ou mesmo que perdessem suas propriedades terapêuticas. Neste sentido, Márcia Moisés Ribeiro destaca que

Distante das boticas europeias, desarmado perante certas moléstias e pouco familiarizado com as plantas medicinais do Brasil, o colonizador submetia-se facilmente aos ensinamentos dos naturais, procurando, à medida do possível, combiná-los com as vagas noções terapêuticas que trouxera da metrópole. Tratando-se de moléstias conhecidas na Europa, as coisas eram menos complicadas, mas no caso de infortúnios próprios da Colônia, o aprendizado com o indígena era essencial e por isso mesmo se processou com vigor. 328

Com efeito, a autora reforça que,

[Assim] como na Europa moderna, era comum não haver aqui distinção nítida entre o emprego de medicamentos naturais e os sobrenaturais ou simbólicos. Por toda a colônia curavam-se as bexigas329, pleurisias330, maculos331 e outras doenças com raízes, ervas, etc. Com medicamentos da mesma casta, entretanto, combatiam-se também feitiços e afugentavam-se demônios o mais longe das pessoas. Indicações para moléstias mais simples causadas muitas vezes por agentes externos, tais como ferimentos, verminoses ou venenos de animais, aparecem ao lado daquelas cuja origem era atribuída a forças maléficas. Nenhuma fronteira rígida separava o domínio do mundo natural e do sobrenatural.332

Esta classificação das doenças de acordo com sua natureza ou da região onde são comuns se tornaria ainda mais rico e heterogêneo após o início do tráfico negreiro333. A este respeito, Cueto e Palmer fazem uma importante observação ao apontar que

As práticas de cura africanas eram repostas com a chegada incessante de mais escravos – até o início dos Oitocentos, na maior parte da América espanhola, mas por mais meio século, e em grande escala, no Brasil e em Cuba. No entanto, como o local de origem dos escravos mudava regularmente, a continuidade e a coerência tinham de ser incessantemente reconstruídas por meio de práticas, ideias e materiais derivados das culturas indígenas e ibérica.

328 RIBEIRO, 1997, p. 50.

329 Mais conhecida como Varíola, esta enfermidade infectocontagiosa foi responsável por algumas das piores epidemias da humanidade. Tratarei mais sobre esta enfermidade específica no capítulo 3.

330 Esta doença ocorre pela inflamação da pleura, membrana que reveste os pulmões, podendo ser aguda ou crônica (para mais informações ver: BLUTEAU, 1712-1728, vol. 6, p. 550 – verbete Pleuriz; FERREIRA, Luís Gomes. Erário Mineral. In: FURTADO, 2002, p. 229-233 CHERNOVIZ, 1890, vol. 2, p. 754-760 – verbete Pleuriz; LANGGAARD, 1865, vol. 3, p. 264-271 – verbete Pleuriz.

331 Segundo Chernoviz, “chama-se maculo uma dilatação consideravel do anus, precedida e acompanhada de diarrhea mais ou menos abundante.”. Para mais informações ver: CHERNOVIZ, 1890, vol. 2, p. 348- 349.

332 RIBEIRO, 1997, p. 80.

333 Refiro-me aqui à pluralidade de práticas e saberes que foram sendo construídas na América Latina graças à interação entre três civilizações: indígena, africana e dos países colonizadores, como trabalhado por Ferreira e Cueto e Palmer (FERREIRA, 2003, p. 101; e CUETO; PALMER, 2016, p. 19-67). Mesmo porque não se pode culpabilizar os escravizados (como feito por muito tempo) pela entrada de todos os males com os quais as populações do passado tiveram contato. Muitas vezes, aqueles que aqui chegavam doentes, saíam em boas condições de saúde de seu lugar de origem, adoecendo no trajeto, inclusive por quase nunca contarem com práticos das artes de curar a bordo dos navios, ou por não aceitarem os tratamentos que diferiam de suas crenças (RODRIGUES, 2005b, p. 271-282).

[...] Com o tempo, práticas e crenças médicas africanas, indígenas e européias mudaram, tornando difícil para um historiador da medicina distinguir um paradigma médico ideal e puro, e essas práticas e crenças acabaram encontrando pontos de colaboração e estabelecendo temas de conflito.334

Pode-se dizer, então, que se tratavam de dois lados de uma mesma moeda, pois, apesar das críticas, onde um curador ou medicina faltavam, outros surgiam para supri-lo, munidos com os mais multifacetados artifícios, o que, segundo Ribeiro335, torna difícil separar as influências desta ou daquela etnia. Dentro deste universo, são encontradas referências a cirurgiões, físicos, boticários, sangradores, parteiras, droguistas e curandeiros que misturavam elementos vegetais, minerais, animais, químicos e mágicos que resultavam em beberagens, mezinhas, cataplasmas, poções, pós, entre muitos outros. Desta forma, conforme apontam Cueto e Palmer,

O resultado foi um cenário médico híbrido, produto não de um processo unilateral, de cima para baixo – a partir de uma medicina ortodoxa, alicerçada na universidade –, mas sim de um que incorporava elementos de todas as medicinas e religiões, e que era solicitado, de uma forma ou de outra, pela maioria da população da América Latina colonial.336

Os autores afirmam, ainda, que as opções iam do curandeiro da vizinhança ou curandeira-parteira ao sacerdote das curas, do farmacêutico local ao tira-dentes ou sangrador, do empírico que afirmava ter formação profissional ao homem ou mulher indígenas que vendiam ervas e talismãs na rua337. Embora não houvessem limites profundamente demarcados, cada prático de cura tinha algumas funções específicas338:

a) Os físicos – possuíam o grau de doutor em medicina, viviam em cidades e povoados maiores, atendiam a corte, a alta nobreza e o clero. Realizavam exames de corpo de delito, avaliações mentais, exames de licenciamento de novos oficiais de cura, aconselhamento sobre preços e vendas de remédios e podiam prescrever medicamentos e encaminhar pacientes ao apotecário – como era chamado o farmacêutico –, que dava continuidade ao tratamento;

334 CUETO; PALMER, 2016, p. 38. 335 RIBEIRO, 1997, 84-85.

336 CUETO; PALMER, 2016, p. 28. 337 Ibidem, p. 66.

338 A descrição feita aqui dos tipos de práticos de cura que circularam no Brasil no período estudado, bem como das atribuições que teoricamente lhes cabiam (sempre considerando a pluralidade de sua atuação, seus métodos e tratamentos) tem o intuito de apresentar ao leitor as possibilidades de assistência curativa encontradas pelos grupos populacionais. Todavia, não aprofundarei aqui os motivos que levavam os enfermos ou seus familiares a recorrer a determinado(s) agente(s) de cura, apenas sugerindo esta possibilidade. Este tipo de situação é analisada, por exemplo, por Nikelen Acosta Witter em sua dissertação de mestrado (para mais informações ver: WITTER, 2000). As sínteses das atividades/atribuições dos distintos curadores que atuavam no fim do século XVIII e início do XIX foram elaboradas com base em: Ribeiro, 1997; Almeida, 2010; Corbin, Courtine e Vigarello, 2012; Pimenta, 2003; Xavier, 2003; Ferreira, 2003; Witter, 2005; e Cueto; Palmer, 2016.

b) Os cirurgiões – recebiam formação acadêmica (embora nem sempre em medicina), mas limitavam suas práticas somente à cirurgia. Eles tinham direito de usar beca, como os físicos. Podiam prescrever medicamentos oficiais, receitavam remédios particulares, extraíam balas, curavam ferimentos externos, executavam ou supervisionavam sangradores em procedimentos, forneciam atestados de doenças, abriam e cortavam corpos. Alguns eram pagos para ficar à disposição de famílias e senhores de escravizados ou percorriam longas distâncias para prestar assistência, mas tudo devidamente bem cobrado;

c) As parteiras – também conhecidas como “comadres”, eram mulheres que iam aprendendo, geralmente, de geração para geração, como auxiliar as parturientes na hora do nascimento. Por causa do recato, muitas vezes eram preferidas aos médicos para tratar dos assuntos femininos. Elas não atuavam apenas no momento do parto, mas providenciavam os preparativos, a alimentação, o vestuário e permaneciam com as famílias por alguns dias até a parturiente estar em condições de retomar seus afazeres. Segundo Ribeiro, “a experiência adquirida cotidianamente com as gestações, partos, ciclos lunares e cuidados com a prole proporcionava-lhes conhecimentos empíricos, muitas vezes superiores à bagagem teórica dos cirurgiões que circulavam pelo Brasil colonial”339. Sua atuação nas cozinhas e hortas permitiam-lhes pôr em prática seus conhecimentos e “além das benzeduras, rezas e uma série de procedimentos mágicos, indicavam ervas, raízes e outros ingredientes naturais para as mais diversas moléstias.340” Contudo, por serem mulheres, seu trabalho

às vezes era visto com ressalvas, associado à feitiçaria341;

d) Os boticários – lidavam diariamente com o preparo de medicamentos (pesavam e mediam ingredientes, cozinhando infusões, retirando tinturas, preparando pós

339 RIBEIRO, 1997, p. 16.

340 Ibidem, p. 16.

341 Segundo Mary Del Priore, no universo das curas “a recorrente presença da mulher curandeira prenunciava o estereótipo da bruxa, havia muito perseguido pela Inquisição. [...] tão capazes de curar como de enfeitiçar. No caso do corpo feminino, sendo a ‘madre’ o critério de bom funcionamento da saúde da mulher, tornava-se alvo preferido de bruxedos que pudessem subverter a sua regularidade. Tendo seus corpos sujeitos a sortilégios e encantamentos, as mulheres preferiam tratar-se no interior de um universo feminino de saberes, onde a troca de solidariedades era corrente, o que instigava os doutores a caricaturar não só a sua necessidade de tratamentos como também a figura das mulheres-que-curavam” (DEL PRIORE, 2009, p. 203). Na sequência a autora afirma ainda que “O ataque a beatas e feiticeiras não era fortuito. Desde tempos imemoriais as mulheres foram curandeiras, e antes do aparecimento de doutores e anatomistas, praticavam enfermagem e abortos, davam conselhos sobre enfermidades, eram farmacêuticas, cultuavam ervas medicinais, trocavam fórmulas e faziam partos. Foram por séculos doutores sem títulos.” (DEL PRIORE, 2009, p. 204)

de raízes e minerais diversos). O ofício de boticário exigia que tivessem um lugar fixo e adequado para o armazenamento de materiais e a preparação das misturas. Era muito comum o ofício passar de pais para filhos;

e) Os curandeiros – eram pessoas de camadas subalternas que tratavam os miseráveis, aqueles que não dispunham de condições para pagar a visita dos médicos diplomados342. Pelo fato de muitos curandeiros serem africanos, tendo aprendido o ofício entre suas famílias antes da captura, e/ou ex-escravizados, compreendiam melhor as mazelas de seus conterrâneos e da população mais pobre, em contraposição ao discurso autoritário dos médicos. Eram valorizados pelo seu conhecimento sobre as plantas medicinais nativas e sua aplicação nas moléstias, valendo-se de orações, encantamentos e receitas de remédios caseiros passados através das gerações. Entre suas principais atividades estavam: sortilégios343, tisanas344, talismãs, purgantes, bálsamos, unguentos, colírios, entre outros. Segundo Cueto e Palmer, “nas Américas, esses curandeiros espirituais africanos tornaram-se negociadores no intercâmbio cultural de rituais, tratamentos, plantas medicinais e animais e artefatos de cura de diferentes continentes, às vezes incorporando a veneração a santos católicos específicos.”345;

f) Os barbeiros – geralmente escravizados ou forros, tinham habilidades no manejo com navalhas e, além de barba e cabelo, acabavam realizando os procedimentos curativos mais “degradantes”, que implicavam no contato direto com o sangue das pessoas, como as sangrias, sarjamentos346, escarificações e

aplicação de ventosas e/ou sanguessugas (seriam mais como os enfermeiros da atualidade).

g) Os sangradores347 – desempenhavam funções muito importantes nos três tipos

de medicina aqui apontados (indígena, africana e dos países colonizadores).

342 PIMENTA, 2003, p. 320.

343 Conforme Bluteau, sortilégio “he hum secreto, ou manifesto recurso ao demonio, para pòr a forte de ser favor, & conselho em o que se deseja saber.” (BLUTEAU, 1712-1728, vol. 7, p. 734 – verbete Sortilegio). 344 Segundo Bluteau, tisana “he huma beberagem medicinal, que se faz com agoa, cevada, mondada, & alcaçuz, fervidos no mesmo vaso.” (BLUTEAU, 1712-1728, vol. 8, p. 177 – verbete Tisana).

345 CUETO; PALMER, 2016, p. 35.

346 Segundo Bluteau, o termo cirúrgico sarjar significa “fazer com lanceta leves incisões, até à carne viva. As principais razões, para que se sarja, são para dar descarga ao membro, & evacuar o sangue ruim, para que as arterias se ventilem.” (BLUTEAU, 1712-1728, vol. 7, p. 502 – verbete Sarjar).

347 Entre a tripulação dos navios negreiros havia, muitas vezes, sangradores africanos para facilitar a comunicação (por causa das semelhanças linguísticas) e devido à identificação de aspectos culturais (como

Além de atenderem em lojas, muitos sangradores exerciam sua prática de forma ambulante pelas ruas e praças. Realizavam, além das sangrias, sarjamentos, ventosas, sanguessugas e escarificações no intuito de retirar do corpo os elementos pútridos. Desta forma, somados ao uso de sudoríficos, purgantes, laxantes e dietas, os humores eram purificados e o corpo voltaria a funcionar perfeitamente. É importante ressaltar que a maioria dos sangradores eram africanos, escravizados ou forros, sendo uma vantagem quando da necessidade de se levar um prático nas viagens feitas pelos navios negreiros, facilitando a comunicação e a identificação cultural com os demais cativos.348

Como é possível perceber nas descrições acima, a sangria foi uma das terapias mais utilizadas no tratamento aos enfermos. O método podia ser aplicado em diferentes áreas do corpo, dependendo o mal a ser extirpado, sua origem e as estações do ano. Entretanto, com base em Betânia Gonçalves Figueiredo349, os elementos acima descritos acabavam delimitando a atuação dos práticos de cura, ocasionando, inclusive, uma hierarquia. Esta escala se dava em decorrência da inferioridade que a muito marcava os trabalhos manuais na área da saúde, diferenciando os profissionais das artes liberais (médicos) daqueles que empregavam as técnicas relacionadas as partes e fluídos corporais (barbeiros, sangradores e mesmo cirurgiões), um trabalho considerado degradante. Segundo a autora, “Para os cirurgiões a aproximação com os barbeiros era lastimável, almejavam aproximar-se dos médicos. Para os barbeiros a aproximação dos cirurgiões era sinal de prestígio e elevação social.”350. Aos poucos, no decorrer do século XIX, essa impressão se transformaria

perante os avanços teóricos e práticos na arte cirúrgica.

Por fim, por mais semelhantes que suas atividades pudessem ter sido, Regina Xavier351 considera que uma das grandes diferenças entre os curandeiros e os médicos é

que os primeiros acreditavam que as enfermidades eram causadas por forças sobrenaturais e, portanto, só poderiam ser identificadas e vencidas com o poder dos

o infortúnio de uma doença ser causada por maus espíritos). (PIMENTA, 2003, p. 314 e RODRIGUES, 2005b, p. 272-279).

348 PIMENTA, 2003, p. 313 e 314. 349 FIGUEIREDO, 2008.

350 Ibidem, p. 117.

351 XAVIER, Regina. Dos Males e suas Curas: práticas médicas na Campinas Oitocentista. In: CHALHOUB, Sidney. Et. Al. (org.). Artes e Ofícios de Curar no Brasil: capítulos de história social. Campinas: Editora da UNICAMP, 2003, p. 341.

feiticeiros, enquanto os demais temiam os miasmas352, considerados complementares à

teoria hipocrática353 (ambas versando sobre a falta de equilíbrio), e sempre buscavam causas materiais para as doenças que afligiam a população.