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3. LONÃ DO TEMPO: OS ANOS 1970 – DAS VIBRAÇÕES DA ENERGIA

3.2.1. Primeiro Mistério: Quando o Segredo é Poder

através do destaque que suas composições vinham recebendo nos festivais de diversos blocos daquela época, tais como: Os Românticos, Apaches, Ilê Aiyê, Melô do Banzo e outros, dariam a eles um maior respaldo e prestígio na condução da criação e dos primeiros passos do Badauê. Notemos, pois, que uma parte significativa da história do Badauê, o norte dado aos caminhos estéticos percorridos pelo afoxé, as diretrizes artísticas e sonoras, dentre outros elementos que destacava o afoxé dos demais, passou pelas mãos percussivas, pelas composições ressoantes, pelas mentes criativas daqueles dois jovens artistas. Neste sentido, este trabalho, ao amplificar com mais ênfase as memórias de Moa e de Jorjão, reconhece e valoriza as contribuições que eles legaram ao Badauê, ao Afoxé e, de uma maneira mais abrangente, à musicalidade baiana. Com relação aos nomes que participaram da criação do Badauê, para além de observarmos divergências existentes entre as diversas fontes, o que mais nos chama atenção é a percepção de que este afoxé foi concebido coletivamente, fruto da procriação criativa dos Jovens Loucos e do encontro destes com outros jovens artistas, como foi o caso de Jorjão Bafafé. A diversidade de ideias e ideais, a liberdade expressiva e a ousadia criativa motriz das experimentações propícias à juventude se faziam imperatriz já no nascedouro do Badauê.

3.2.1. Primeiro Mistério: Quando o Segredo é Poder

Nos versos da canção que se tornou o cartão de visitas do Badauê, e que batiza esta sessão, Môa prenuncia que a criação do Badauê teria se dado em uma atmosfera enigmática. Segundo Katendê, “Misteriosamente, ela [a canção] vem nesse período, aí, já de [19]79 quando a gente bota o carnaval [o afoxé] na rua”. O clima de mistério que a canção inaugura em torno do surgimento do Badauê aguça a curiosidade nossa investigativa. Que segredos estariam por trás da trama do nascimento do Badauê? Será que, realmente, havia algum segredo ou o compositor apenas utilizou-se de sua liberdade poética para criar este clima misterioso em torno da criação deste afoxé? Questionado sobre o assunto, Katendê revela:

o mistério vem também dos terreiros [de candomblé] que ajudaram muito o fortalecimento do Badauê, vem também da revelação dos meninos, né?, como compositores, das meninas como dançarinas, esse mistério vem daí também. Vem também de como a gente sai daqui do bairro pra ganhar força fora, e de fora traz a energia pra dentro, né?, quando a gente vai pro Apaches, vai pro Ilê Aiyê, vai pra outros blocos... (KATENDÊ, Entrevista, 2016)

De acordo com Lisa Castilho (2010), compreendemos que o saber sagrado no candomblé é de natureza intocável, “é um saber esotérico necessariamente de difícil acesso e divulgado apenas para um grupo restrito de pessoas. Nesse sentido, os fundamentos religiosos constituem, e devem constituir, um mistério, um enigma”. (p. 32) Intrinsecamente, o “acesso diferenciado ao saber”, também compreendido por esta autora como “o segredo”, estabelece entre os iniciados no candomblé camadas hierárquicas e relações de poder. Castilho pondera ainda que “a aquisição do saber traz o axé, o poder de realização [...] ter o saber e o axé traz o poder em vários níveis [...]”. (p. 35; grifos nossos)

Na tentativa de examinar as relações estabelecidas entre o candomblé e a sociedade baiana, entre o segredo no candomblé e o contexto social externo, Castilho nos apresenta um resumo histórico, através do qual podemos perceber que antes mesmo do século XX, intentava contra o candomblé e seus adeptos severas repressões e punições. Veremos mais adiante que também o afoxé, dentre outras expressividades originariamente negras, também era alvo de tentativas de interditos, sendo, muitas vezes tratadas como caso de polícia. Castilho considera “a década de 1920 como um período de repressão particularmente forte, sob a liderança do subdelegado Pedro de Azevedo Gordilho, conhecido como Pedrito”. (p. 41) A autora observa ainda que o candomblé, até 1976, era considerado “uma ameaça à ordem pública”, sendo necessário que “os terreiros se registrassem na polícia e que obtivessem licença para cada cerimônia”. (p. 43) Assim sendo, manter os ritos litúrgicos do candomblé intocável, sob sigilo, seria uma estratégia adotada pelos iniciados tanto de proteção do sagrado, quanto de autodefesa.

A nossa intuição sugere que o mistério profetizado por Moa do Katendê nos versos que foram responsáveis por apresentar o Badauê para o mundo através da voz de Caetano Veloso, em um primeiro plano, aproxima-se do tradicional segredo que move o candomblé. Não tendo sido gestado nas entranhas de um terreiro, como teria acontecido com quase todos os seus antecessores, o Badauê, fruto das mentes fertilmente inventivas de Jovens Loucos, certamente teria sua legitimidade questionada por aqueles mais tradicionalistas. Como disposto no próximo trecho, os defensores do estilo clássico dos afoxés e das tradições imutáveis lançaram severas críticas ao novo afoxé. Nos versos da canção Terno Badauê, Waldomiro reafirma o Badauê enquanto afoxé misterioso, ligado a preceitos e criado pela natureza:

A natureza o criou Preceituoso ele fez Altivo afoxé misterioso

É filho de Oxalá O terno badá Badauê...62

Certamente, residia neste aspecto o medo confessado por Moa que os Jovens Loucos tiveram de criar, de início, um afoxé. É possível que soubessem que estariam mexendo não apenas como os fundamentos do candomblé, com o segredo que é, portanto, de natureza intocável. Mas também teriam que lidar com a opinião e a crítica dos mais velhos para os quais tradições seriam igualmente intocáveis, estáticas, sem as possibilidades de movência ou de (re)invenção.

Não dispomos de argumentos suficientes para comprovar em que medida de consciência ou de intuição Katendê teria sido movido a assumir que o surgimento do Badauê se deu de forma misteriosa. No entanto, a partir das evidências consideramos que esta foi uma cartada de mestre, já que isso tanto poderia ocasionar uma maior aproximação do afoxé, tido como transgressor da tradição, às raízes do candomblé. Bem como poderia servir de uma autoproteção frente às críticas vindas dos seguimentos mais conservadores dos afoxés. Ainda à luz de Castilho (2010), consideremos, portanto, que “o senso de mistério constitui um elemento ritual em si, um significante de fidelidade à tradição, bem como outros elementos rituais, como o uso de colares, a preparação de determinadas comidas, ou o uso de atabaques”. (p. 46)