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PARTE II INVESTIGAÇÃO EMPÍRICA

Capítulo 5 – Metodologia

5.1 Relatos de risco

5.1.1 Primeiro movimento: desdobramento

Foi referido anteriormente que as controvérsias agem como chaves metodológicas para abrir as caixas-pretas. Por isso, a primeira etapa no desenvolvimento de um relato de risco é localizar uma controvérsia significativa para começar a observar o movimento dos actantes, o alistamento de novas entidades e as intensas negociações que geram sucessivos deslocamentos. Venturini (2010) concebe a controvérsia como uma “incerteza partilhada” responsável por instaurar “fóruns híbridos” cuja principal missão é redistribuir o poder entre os elementos envolvidos.

É por isso que o estudo de inovações sociotécnicas ganha destaque na Teoria Ator-Rede. Em geral, os processos inovadores geram expectativas múltiplas e divergentes com formação de grupos e anti-grupos (Latour, 2012). Não há consenso e, na verdade, a única certeza é a instabilidade. É neste momento que as entidades e as associações ficam mais

visíveis. Contudo, para estimular ainda mais a visibilidade, o primeiro movimento do pesquisador deve ser justamente descrever o desdobramento da rede:

Desdobrar significa simplesmente que, no relato conclusivo da pesquisa, o número de atores precisa ser aumentado; o leque de agências que levam os atores a agir, expandido; a quantidade de objetos empenhados em estabilizar grupos e agências, multiplicados; e as controvérsias em torno de questões de interesse, mapeadas. (Latour, 2012, p. 201)

A referência ao “mapeamento” no trecho final da citação acima não é fortuita nem despretensiosa. Investigadores que aplicam a TAR têm desenvolvido, nos últimos anos, um extenso programa metodológico denominado “cartografia de controvérsias”149 (Bruno,

2012; Lemos, 2013; Pereira & Boechat, 2014; Venturini, 2010, 2012; Venturini & Latour, 2009; Venturini, Ricci, Mauri, Kimbell,& Meunier, 2015). O principal objetivo é criar instrumentos digitais que sejam capazes de capturar as negociações e que, ao mesmo tempo, integrem interfaces gráficas capazes de representar a complexidade resultante. A cartografia de controvérsias é um dispositivo bastante amplo e, para o escopo desta tese, interessa destacar apenas dois de seus aspectos metodológicos diretamente relacionados ao desdobramento dos coletivos sociotécnicos: a captura de rastros digitais e a produção de mapas planos.

Rastros digitais são inscrições de ações efetuadas pelos mediadores no ciberespaço (Bruno, 2012). Aos olhos de quem conduz a investigação, eles se apresentam como "pegadas" on- line que deixam vestígios sobre as mediações e as transformações. Se desdobrar os coletivos implica localizar as controvérsias e seguir os actantes, a web deve ser apropriada como uma aliada decisiva na pesquisa, uma vez que se revela um verdadeiro arquivo dinâmico e expansivo de rastros.

Graças à mediação digital, “observar controvérsias a partir de todos os pontos de vista interessados” começa a ser mais do que um slogan intangível: é algo que se tornou realmente possível. Com razoável comprometimento e algumas habilidades computacionais, os estudantes (...) podem seguir controvérsias por meio da cobertura da mídia, da literatura científica, de índices legais, de dados econômicos e da blogosfera.150 (Venturini, 2012, p. 7)

149 A principal referência é o projeto europeu “Mapping Controversies on Science for Politics”

(MACOSPOL - http://www.medialab.sciences-po.fr/projets/macospol/) que agrega oito instituições:

Sciences Po, University of Munich, University of Oslo, University of Amsterdam, Ecole Polytechnique of Lausanne, University of Manchester, University of Liège, Osberva (Venturini, 2012). No Brasil, a

cartografia das controvérsias é desenvolvida no campo da comunicação em alguns importantes centros de investigação: MediaLab.UFRJ (http://medialabufrj.net/), Labic/UFES (http://www.labic.net/) e Lab404/UFBA (http://gpc.andrelemos.info/blog/).

150 Tradução nossa a partir do original: “Thanks to digital mediation, ‘observing controversies from

Obviamente, as plataformas que estimulam as negociações pela condensação de um grande número de pontos de vista, como Facebook, Twitter, Wikipédia e YouTube, devem ser incluídas no “banco de dados” construído por quem se lança a recolher rastros digitais (Lemos, 2013). Como destaca Venturini (2010), a cartografia de controvérsias é uma metodologia da “impureza” aberta a todos os tipos de “interferências” e “contaminações”. O único objetivo é seguir as mediações e nenhum instrumento é considerado a priori inválido ou inapropriado para alcançar o objetivo.

Porém, nem tudo está visível no primeiro nível de acesso e por vezes é necessário ultrapassar as interfaces primárias para encontrar os rastros. É o que ocorre na Wikipédia, onde todas as alterações e negociações sobre cada um dos milhões de verbetes digitais estão disponíveis no sistema de gestão (back-end) da plataforma. Neste caso, não há barreiras adicionais e, para chegar ao conteúdo, basta clicar sobre a aba “Ver histórico” (Borra et al, 2015). Do ponto de vista metodológico, a web é uma autêntica mina de rastros bastante úteis para desdobrar os coletivos: “A mediação digital se espalha como um rolo gigante de papel carbono, oferecendo ao cientista social mais dados do que ele jamais sonhou”151 (Latour & Venturini, 2009, p. 6).

Outra vantagem do ambiente digital é a produção de mapas planos. Para Latour (2012), os pesquisadores de redes sociotécnicas devem agir como “niveladores” da teoria social para substituir representações em três dimensões por versões bidimensionais. Mapas tridimensionais são aqueles que destacam os diferentes níveis (macro e micro, agência e estrutura) para advogar instâncias distintas de observação e análise. Basta lembrar do híbrido “ministro-catalizador” descrito no capítulo 4 para constatar que manter a representação plana é a única forma de reagregar o social. O mapa em duas dimensões destaca as conexões, não a suposta “hierarquia” das entidades. O princípio da simetria generalizada simplesmente não funciona quando os elementos estão em “níveis” distintos. Em contraste com uma visão estruturalista da sociedade, a navegação por hiperlinks auxilia a produzir mapas planos. É possível passar de um perfil para um grupo, de um relatório para uma entrevista, de um manual técnico sobre um smartphone para um vídeo amador sobre este mesmo aparelho. Sempre se está diante do todo e da parte, sendo ambos igualmente complexos. Cada link conduz a uma espécie de “integralidade interconectada”, portanto, o investigador se desloca entre diferentes “pontos e vista” sobre fenômenos sociotécnicos, não entre “níveis” micro e macro (Latour et al, 2015). “O que as redes digitais favorecem é precisamente esta rastreabilidade, de modo que se

With a reasonable commitment and some computer skills, the students (…) can follow controversies through media coverage, scientific literatures, legal indices, economical data and the blogosphere.”

151 Tradução nossa a partir do original: “Digital mediation spreads out like a giant roll of carbon

pode, ao mesmo tempo, seguir uma série de ações e associações locais e ver como cada uma delas participa da construção de coletivos” (Bruno, 2012, p. 698).

Como toda metodologia, a cartografia de controvérsias tem suas limitações. Mecanismos de busca não são a web, a web não é a internet, a internet não é o digital e o digital não é o mundo (Venturini, 2012). Além disso, os níveis de literacia (ou alfabetização) digital são profundamente desiguais (Venturini & Latour, 2009). Por exemplo, homens, jovens e pessoas maior nível educacional continuam a ser grupos mais ativos no ambiente digital quando comparados com outros segmentos societários. Por consequência, os rastros deixados por alguns subgrupos são mais abundantes, fato que pode produzir reflexos significativos sobre o relato de risco.

Também cabe destacar que mapas não são representações neutras e a cartografia sempre foi uma ferramenta política (Venturini et al, 2015). Sem haver um único ponto de entrada nem limites para acompanhar as associações, cada pesquisador produz um mapa diferente. Isso não é visto como um problema para a Teoria Ator-Rede, mas sim, uma condição de existência da investigação: “Nenhum mapa individual mantém unida a complexidade do debate social e o torna inteligível, mas muitos mapas reunidos em um atlas podem obter sucesso”152 (Venturini et al, 2015, p. 77).

Assim, a imparcialidade não é um atributo inato do investigador, mas o resultado da multiplicação dos pontos de vista: “A objetividade somente pode ser perseguida pela multiplicação dos pontos de observação. Quanto mais numerosas e parciais são as perspectivas a partir das quais um fenômeno é considerado, mais objetivo e imparcial será a sua observação”153 (Venturini, 2010). O melhor atlas será aquele que conseguir reunir o

maior número de mapas.

Assim que as deficiências são levadas em consideração e que imparcialidade dá lugar à objetividade, torna-se possível utilizar satisfatoriamente os rastros digitais para produzir mapas planos com o objetivo de desdobrar as redes sociotécnicas. Em síntese, o percurso começa na definição de uma controvérsia para, em seguida, observar a proliferação de mediadores que levam às cadeias de traduções e a novas controvérsias. A controvérsia é o que garante o caráter performativo da rede, sem ela só há caixas-pretas: "Se uma dançarina para de dançar, adeus à dança. A força de inércia não levará o espetáculo adiante" (Latour, 2012, p. 63).

152 Tradução nossa a partir do original: "No single map can keep together the complexity of social

debate and make it legible, but many maps gathered in an atlas might succeed."

153 Tradução nossa a partir do original: “Objectivity can be pursued only by multiplying the points of

observation. The more numerous and partial are the perspectives from which a phenomenon is considered, the more objective and impartial will be its observation.”

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