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Capítulo I: Crítica genética e filologia

3. Análise genética

3.3. Procedimentos teleológicos da crítica genética

3.3.1. Primeiro nível metodológico

Retome-se o que expus em cima sobre a metodologia da crítica genética, essencialmente dividida em duas partes: a primeira ligada à decifração e a segunda ligada à compreensão. Como ficou dito, é unânime para os geneticistas a ligação da crítica genética à filologia, no campo da decifração: a descrição material do objecto de análise é feita segundo os métodos de análise filológicos, com auxílio de disciplinas como a paleografia e a manuscriptologia. Segundo Grésillon, o que a crítica genética conserva aqui da filologia “est un simple principe descriptif; un moyen, non une fin; une méthode, non un principe théorique” (Grésillon 2007: 37).

Estes “préalables matériels” são, para Grésillon “la philologie au meilleur sens du terme” (Grésillon 2008: 210). Como ficou patente na opinião de McGann, esta visão da filologia como operação preliminar, que consiste numa descrição material rigorosa do objecto de estudo, é comum a toda a crítica literária, da qual a crítica genética faz, segundo Grésillon, parte.

69 Este ponto de ligação entre as disciplinas, relacionado com a descrição material, tem, no entender de Lebrave, pouco interesse por si só (Lebrave 1992: 41). Admito que é um ponto bastante neutro ao nível da caracterização de ambas as disciplinas, pois não fala dos seus princípios e objectivos, antes advém do facto de o objecto de trabalho ser o mesmo, logo, implicar as mesmas necessidades de descrição material. No entanto, é um ponto incontornável, que ocupa um espaço considerável nos manuais teóricos sobre a matéria (Grésillon 1994: 110-136; Biasi 2011: 129-150), e consiste, em todo o caso, no primeiro elo de ligação entre filologia e crítica genética.

O pouco interesse demonstrado por Lebrave por esta relação pode estar relacionado com o facto de a componente da filologia que ele toma em consideração ser a científica e não a compreensiva. Lembre-se a opinião de McGann, segundo a qual a componente hermenêutica da filologia não é suficientemente reconhecida pela crítica literária.

Neste primeiro nível metodológico, Grésillon defende que é necessário obedecer à lei da sucessividade temporal, reconstruindo a escrita através da ordenação cronológica dos documentos de génese (Grésillon 2007: 36). O facto de a lei da sucessividade ser, como já arguí, teleológica está encerrado nas palavras da própria geneticista: “s’il n’y avait pas le risque du fameux malentendu, il ne serait même pas scandaleux en soi de taxer cette démarche de «téléologique». Par prudence, on s’en abstiendra. C’est nécessairement une démarche qui vise à isoler des logiques linéaires, des liens de contigüité, des proximités, des parentés, et, lâchons le mot, des filiations – celles dont les arborescences ont produit le stemma de la philologie” (Grésillon 1994: 139). Portanto, ainda que não o admita, também a crítica genética segue um procedimento teleológico. Este comportamento teleológico da crítica genética reflecte- se, ainda, nestas palavras: “le plus logique est de remonter progressivement du texte imprimé vers les debuts de l’écriture, en suivant en quelque sorte le principe téléologique à l’envers. Remontée systématique, organisée essentiellement en fonction des lieux invariants entre les différents états de la genèse. On compare du comparable, en laissant provisoirement de côté ce qui excède ce système (les failles, les chemins de traverse, les trous, les alternatives suspendues, les hapax, les «fausses pistes», les bribes abandonnées). L’objectif est de restituer le principal fil conducteur de l’écriture, celui qui permet d’ordonner les matériaux selon les lois d’une filiation linéaire, celles qui président aux arbes de la généalogie, bref, les lois do «stemma»” (Grésillon 2008: 26- 27).

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Estas citações comprovam que a crítica genética segue, de facto, nesta primeira fase dos seus trabalhos26, a teleologia que critica. Porém, não o admite, sob pena de ser acusada de teleológica, arguindo que este procedimento é um “outil d’élucidation, à valeur heuristique” (Biasi 2011: 185), um meio e não um fim. A prática teleológica está também reflectida na actividade da edição, como atesta a seguinte afirmação: “ce type d’édition [édition micro-séquentielle], à structuration téléologique, articule toutes les transcriptions au manuscrit définitif (ou, à défaut, si ledit fragment a fait naufrage dans la rédaction, au manuscrit le plus avancé)” (Biasi 2011: 172).

Questionei atrás o que era afinal a crítica genética: se um todo que engloba filologia e crítica, se apenas a parte crítica e concluí, baseada nas palavras de Grésillon, que os geneticistas consideram-na como um todo, embora a filologia seja um meio e a crítica um fim. Como dizer, então, que a crítica genética, sendo esse todo, não é teleológica, se é filológica e se os geneticistas consideram que a filologia segue um princípio teleológico? Apoio-me novamente nas palavras de Grésillon para dizer o que os geneticistas respondem a isto: “ce n’est pas parce qu’on a établi une chronologie, ce n’est même pas parce qu’on en a déduit ces stemmas représentant l’ensemble des filiations que la génétique pourrait être soupçonnée d’être une téléologie. C’est parce que, après cette lecture nécessairement finalisée, ont n’en a rien fait d’autre” (Grésillon 1994: 139). Esta outra coisa que deverá ser feita, segundo a teoria genética, é a análise genética, que atenta já não nos materiais genéticos que seguem a lógica linear (teleológica), mas em todos aqueles que ilustram a multiplicidade de caminhos possíveis.

Concluo que a relação da crítica genética com a teleologia, neste primeiro nível metodológico, é ambígua: ou se considera que uma coisa é filologia e outra crítica genética e, assim, a primeira pode ser classificada como teleológica e a segunda não; ou então, se se considera que a crítica genética também é filologia, como sustentar que ela não é teleológica?

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