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Capítulo I: Crítica genética e filologia

3. Análise genética

3.3. Procedimentos teleológicos da crítica genética

3.3.2. Segundo nível metodológico

No segundo nível metodológico, a análise genética ou estudo interpretativo, que é o fim da crítica genética, consiste na explicação da génese que foi previamente ordenada e decifrada através de uma análise filológica.

Os geneticistas defendem que a lógica determinista necessária no campo da descrição material não o é no da interpretação. Mais, a interpretação, ao perseguir o processo de criação literária que não é bidireccional, deve mesmo abster-se da lógica teleológica que pode limitar hipóteses de leitura. O procedimento advogado pela crítica genética para este nível metodológico é portanto, nas palavras de Grésillon, o seguinte: “après être remonté du dernier au premier maillon avant-textuel, on fera le chemin dans l’autre sens, on suivra le mouvement de l’écriture à partir de ces premières traces attestées, puis, on lira le dossier dans tous les sens, et on découvrira alors tous ces «sentiers qui bifurquent» de Borges. Le regard ne visera plus les segments qui établissent un ordre nécessaire, mais ceux qui illustrent la richesse des possibles, la multiplicité de tous ces chemins que la production aurait pu prendre, a failli prendre – et n’a pas pris” (Grésillon 1994: 139-140)27

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Neste momento da análise, o que interessa aos geneticistas é, portanto, analisar aquilo que não segue a lineriariedade. Trata-se de “lire et relire les manuscrits de son choix, cette fois pour y découvrir ou redécouvrir ce «fécond désordre» dont parle Valéry” (Grésillon 1994: 141).

Entendo que neste objectivo de leitura não teleológica da crítica genética estão encerradas duas contradições. A primeira é esta ideia ilusória de buscar a “fecunda

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Esta não é a posição de todos os geneticistas. Willemart, por exemplo, defende que: “se quisermos escapar à cronologia, que quase sempre leva à ilusão biográfica – a suposição de que a vida e os traumas sofridos pelo escritor explicariam a obra -, temos que nos posicionar a partir do aqui e agora, relendo os textos publicados, a correspondência, os manuscritos, os esboços e tudo o que constitui o dossiê deste escritor, a partir do texto publicado” (Willemart 2009: 61); “o escritor, sua correspondência e seus rascunhos constituem o antes que é ordenado pelo futuro do texto publicado. (...) o presente regula o passado e não o contrário (...) Assim a abordagem da crítica genética evita as armadilhas da cronologia, do biografismo, do positivismo e da lógica linear” (Willemart 2009: 62); “a crítica genética, como a entendo hoje, exige uma leitura “só depois”, o depois situando o antes. O texto publicado ou o quadro dão uma lógica de leitura aos manuscritos ou aos esboços, inserindo o leitor na interpretação” (Willemart 2009: 64).

Noutro lugar, o geneticista brasileiro cita Ferrer (“le baptême qui fait la référence n’est pas initial, mais rétrospectif. L’oeuvre fonctionne comme ‘désignateur rigide’ de sa genèse (...) en ce sens, ce n’est pas la genèse qui fait le texte, mais le texte qui détermine sa genèse (...) Chaque variante aussi minime soit-elle réécrit une histoire qui conduit jusqu’à elle – s’inscrit comme histoire et dans une historie qu’elle constitue du même coup”) para fundamentar a sua opinião de que “la nouvelle histoire littéraire ne partira plus des origines, mais lira le passé à lumière du présent, ce qui veut dire que les nouveaux historiens devront relire le parcours de la littérature à partir de l’ensemble des ouvres qui inclut les manuscrits, la correspondence, etc.” (Willemart 2007: 142-143).

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desordem”, porque, na verdade, toda ela já foi previamente arrumada numa lineariedade conducente ao texto final: “l’écrivain n’a jamais travaillé avec un dossier de genèse aussi bien rangé que celui qui sort des mains du généticien” (Biasi 2011: 185). Também Willemart aponta no mesmo sentido, ao afirmar: “malgré ce désordre pourtant, un ordre existe, c’est-à-dire, une stabilité se fera jour dans le système global (...), prouvée par le texte publié. La concordance de résultats renforce les études de critique génétique au sens nouveau du mot et nous interdit de séparer la correspondance, les marginalia, les manuscrits, le texte imprimé et les éditions successives. Tous ces éléments font partie d’un même système et l’un se réfère à l’autre. La critique génétique les parcourt tous. Les spécialistes choisissent une partie du parcours, mais ils ne peuvent perdre de vue l’ensemble” (Willemart 2007: 135).

A outra contradição é o facto de este tipo de análise estar, na verdade, dependente de uma análise comparativa teleológica, portanto não é possível analisar os materiais de génese por si só, sem serem comparados com alguma coisa. A necessidade deste método comparativo na análise está patente nas palavras da própria geneticista: “il faut bien admettre qu’en termes de techniques d’analyse, la méthode structurale a conservé toute sa pertinence. En effet, le meilleur moyen de cerner les propriétés d’un processus ne consiste-t-il pas, de proche en proche, en une comparaison systématique de deux états successifs, considérés comme provisoirement stabilisés, et susceptibles de représenter deux ensembles de traits, régis – selon l’enseignement structural – par des ressemblances et des différences?” (Grésillon 2008: 22-23).

Se o método de análise está dependente deste método teleológico de análise, então como dizer que ela não pratica teleologia? A razão prende-se com a complexa relação da crítica genética com o estruturalismo, tal como com a filologia. Na sequência da afirmação anterior, Grésillon expõe isso mesmo: “par conséquent, le lien de la critique génétique au structuralisme est complexe: derrière le geste orgueilleux de rejet du texte se masquent en fait des rapports médiatisés de filiation. Néanmoins, l’object de la critique génétique n’est pas le même que celui du structuralisme. Si celui-ci, par définition, analyse des formes finies, celle-là prend pour object des formes en mouvement” (Grésillon 2008: 23).

Este procedimento comparativo e, portanto, teleológico, está presente em todos os estudos genéticos que apresentei em cima. A análise de Biasi tem como fim a compreensão das mudanças ocorridas em direcção a um texto final, que é muitas vezes requisitado como elemento de comparação com fases anteriores: “l’ensemble de

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l’incipit reste encore beaucoup plus long que ne le sera sa forme définitive (176%), mais

son capital lexical est presque entièrement acquis: 18 des 19 mots de l’incipt définitif sont présents, à leur place respective, sous la forme de deux agrégats qui représentent 95% du texte final” (Biasi 2011: 233). Na medida em que esta análise visa as transformações operadas de uma fase redaccional para a sua sucessora, não abandonando a linha da sucessão cronológica, não pode deixar de ser teleológica.

Recorde-se o caso da análise de Grésillon, sobre uma obra de Flaubert. A análise da personagem Salomé consiste em ilustrar com passagens do rascunho determinado aspecto ou motivo e em compará-las com o texto impresso, ilustrando como elas acabaram por desaparecer ou se transformar. Exemplos disto já foram dados em cima, colocando em evidência contradições encerradas entre teoria e prática genética.

Grésillon conclui que os manuscritos possuem “indices subtils et parfois contradictoires” (Grésillon 2008: 128), imperceptíveis no texto impresso, pelo que o estudo da génese permite uma nova interpretação da personagem, diferente da da crítica literária. Os manuscritos revelam que Salomé, longe de ser uma personagem secundária, é cheia de ambivalência e complexidade, características que desapareceram ou foram atenuadas no texto impresso, por razões que ficam por explicar.

A atenção da geneticista sobre o texto impresso prolonga-se na análise dos procedimentos de condensação e implicitação que conduziram a esse texto “bien plus court et plus elliptique que certaines versions du dossier génétique” (Grésillon 2008: 128). Contrariando um primeiro momento de decoração, através de invenção laboriosa, o escritor trabalha no despojamento do texto, suprimindo conectores lógicos e comentários explicativos ou psicológicos, economizando comparações, detalhes históricos ou mitológicos e sequências descritivas, retardando o aparecimento de determinados episódios no texto para aumentar a tensão narrativa e recusando ilustrações a acompanhar o texto. Estas reduções e supressões são o que caracteriza a última fase de trabalho do escritor: “exerçant avec une rigueur absolue cet «art des sacrifices», Flaubert réduit les 450 grandes pages manuscrites de l’avant-texte d’Hérodias à ce qui fait 33 petites pages imprimées d’un livre de poche...” (Grésillon 2008: 130).

Esta análise tem claramente como referência constante o texto impresso e serve para ilustrar como uma análise genética pode contribuir para a compreensão da obra: “il est certes possible de lire l’oeuvre sans tenir compte de l’avant-texte. Mais l’analyse génétique a, en l’occurrence, apporté un éclairage nouveau à l’interprétation courante.

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La figure de Salomé, lue à la lumière des manuscrits, paraît plus complexe que ce que la critique a bien voulu en dire jusqu’à présent” (Grésillon 2008: 131). Embora não tenha como função fixar o texto, tem como função compreendê-lo melhor, à luz dos materiais de génese. Estes não são utilizados por si só, isolados do texto, mas aparecem constantemente ligados ao texto impresso, contribuindo para a sua compreensão. Assim, esta análise não é diferente das análises genéticas levadas a cabo por filólogos e partilha com eles uma lógica teleológica, na medida em que o texto final é tomado constantemente como referência no estudo dos materiais de génese.

No caso da análise de Zola, feita sobre uma parte específica do romance, o seu desenlace, a comparação do fim previsto e do fim que foi publicado mostra que eles não coincidem, logo que o que o escritor premeditara altera-se com a escrita (“tout sépare la fin esquissé dans l’Ébauche de celle du texte imprimé”, Grésillon 2008: 153). Assim, apesar do tipo de escrita de Zola ser conhecido como “écriture à programme”28, a análise genética dos testemunhos que tratam o fim do romance mostra a invenção narrativa que lhe está subjacente ao longo da escrita, provando que “Zola trouve la fin (...) en marchant, en avançant à tâtons dans l’invention du roman” e que “cette invention de la fin se fonde sur l’alternance entre lecture de documents externes et découverte scripturale à proprement parler” (Grésillon 2008: 153). São comparadas as várias fases de redacção, sendo que em cada uma delas se descreve o seu conteúdo e constatam as diferenças ao nível enunciativo e as novidades ou alterações relativas ao desenvolvimento do fim do romance. Conclui-se que “la genèse du dénouement narratif est inversement proportionnelle à la complexité énonciative” (Grésillon 2008: 138).

Também aqui há, de certa forma, uma progressão em relação ao texto final. Esta análise é feita através da comparação entre diferentes documentos genéticos, analisando as transformações ocorridas entre eles: “j’ai compté les mots de la scène du train abandonné. Dans le second plan détaillé, il y a 14 mots. (...) Ce programme de «description» – auquel se mêlera la narration! – donnera lieu dans de manuscrit définitif à 480 mots répartis sur plus de trois pages manuscrites. Ce qui dans le second plan

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Grésillon define “écriture à programme” como o “type d’écriture qui obéit à un programme préétabli et dont l’élaboration parcourt plusieurs états génétiques (notes documentaries, plans, listes, esquisses, brouillons)” e “écriture à processus” como o “type d’écriture sans phase préparatoire, sans plan, toujours déjà textualisant” (Grésillon 1994: 243). Estes dois grandes modos de escrever foram propostos por Louis Hay em “Die dritte Dimension der Literatur” (in Poetica, vol. 16, caderno 3-4, Amesterdão, 1984, pp. 307-323). Estimando que a formulação “processo” se presta a confusão, uma vez que ambos os modos de escrever constituem processos, Biasi propõe uma renomeação destes dois tipos de escrita como “écriture à programmation scénarique” (equivalente a “écriture à programme”) e “écriture à structuration rédactionnelle” (equivalente a “écriture à processus”) (Biasi 2011: 74-75).

75 n’était que liste lapidaire et programme scriptural, est ici devenu récit” (Grésillon 2008: 151).

A análise de uma obra de Proust consiste em mostrar o modo como o motivo concreto da manhã se transmitiu de uma fase da escrita para a outra, descrevendo o que se perde, o que se mantém e o que se transforma. Segundo a autora, “l’intéressant c’est non pas le fait que les matinées soient présentes dès 1908 dans le Carnet 1, mais la

manière dont elles arrivent, dans le cadre de transformations et de déplacements

complexes, à obéir aux nouveaux principes structurels” (Grésillon 2008: 160). Trata-se, portanto, de uma análise descritiva e comparativa, apontando, passo a passo, as diferenças existentes entre cada fase, desde o primeiro rascunho até ao texto impresso.

É a propósito da sua análise de um poema de Supervielle, que consiste numa análise exaustiva baseada na comparação entre fases genéticas, desde o primeiro rascunho até ao seu estado final, que Grésillon questiona se terá feito uma análise teleológica (Grésillon 2008: 203). Tal como defendi atrás (cf. supra: p. 59), o facto de ter atentado nos materiais genéticos rejeitados que poderiam ter conduzido a muitos outros textos não impede que o seu procedimento comparativo em direcção ao texto impresso seja indiscutivelmente teleológico.

Por fim, a análise de L’Ardoise, de Ponge, não escapa igualmente à mesma necessidade comparativa dos elementos genéticos com o texto final, mesmo quando essa comparação permite concluir, afinal, sobre a sua rejeição na versão impressa, numa “proportion où une seule page de texte imprimé (...) laisse derrière elle 45 pages manuscrites” (Grésillon 2008: 237).

Todos estes exemplos me levam a discordar de Biasi quando diz que “la critique génétique a beau se défendre de toute téléologie” (Biasi 2011: 189). Na verdade, a prática genética mostrou que a ordenação cronológica e o procedimento comparativo são imprescindíveis numa análise genética.

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