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CAPÍTULO 3 – RESULTADOS E DISCUSSÃO DOS DADOS

3.1 AS HIPÓTESES INFERIDAS SOBRE O DESENVOLVIMENTO DA ESCRITA DOS

3.1.2 Primeiro processo cognitivo: Transferência de língua materna

Parte dos dados relevantes para a aquisição de uma LA advém dos eventos comportamentais dos aprendizes, segundo Selinker (1972). Tais eventos levariam à compreensão de estruturas psicolinguísticas que poderiam esclarecer as situações nas quais o aprendiz tenta representar significados que ele já pode ter construído na LA.

Às tentativas produzidas é preciso acrescentar que as individualidades fazem a diferença, visto que cada aprendiz terá suas próprias dificuldades em lidar com as negociações dos significados e com as novas representações em inglês. Para entender essas novas representações e outras tentativas de significação em LA, tratemos sobre a transferência de língua materna, o primeiro processo cognitivo para a análise qualitativa.

Inicialmente é importante recuperar a concepção do sujeito bilíngue para esta pesquisa. Ele foi definido com base em Grosjean (2002) que caracteriza o bilíngue como alguém que não precisa ser constantemente comparado a um monolíngue. O sujeito bilíngue retratado neste estudo não precisa usar as duas línguas de formas iguais nem com as mesmas pessoas. Para esse sujeito, as línguas têm diferentes propósitos e são usadas em diferentes domínios da vida.

As diversas situações diárias às quais os bilíngues são expostos também contribuem para modos particulares de comunicação, segundo Grosjean (2002). As capacidades de reestruturar a língua e os domínios que os bilíngues possuem, segundo o autor, os tornam competentes a ponto de serem considerados bilíngues. Sem a necessidade de ser semelhante ao nativo e considerando a idade de aquisição da LA, os sujeitos desta pesquisa são bilíngues consecutivos, classificação proposta por Wei (2007) e que também dá suporte à concepção do sujeito para este estudo.

Retomada a definição do aprendiz bilíngue, devemos ter em mente que a aprendizagem da LA para esses aprendizes é consecutiva a uma língua dominante, o que justifica o fato de eles recorrerem primeiramente à L1. Além disso, a sala de aula é o único ambiente em que eles falam somente em inglês e o restante de suas rotinas é dominado pela língua materna.

Nos dados coletados, a transferência de L1 esteve presente nas representações de alguns participantes ao escreverem as palavras rectangle e triangle, por exemplo. Os fonemas finais – /gəl/ – foram representados da mesma forma que a palavra “gol” em português, ainda que grafada com a letra “u” em alguns exemplos, como mostra a tabela a seguir.

Essas construções apresentadas no Quadro 3 podem ser analisadas com base em estudos iniciais sobre IL em que o termo “identificações de Interlíngua” justificaria representações dessa natureza. Elas, em verdade, poderiam ser tanto a identificação de fonemas em L1 quanto em LA, ou poderiam até mesmo representar as relações gramaticais ou semânticas comuns às duas línguas.

Um exemplo bastante semelhante aconteceu com a representação da palavra sharpener. O fonema inicial em /ˈʃɑ rp-nər/ é representado como em L1, tentativa que poderia estar baseada na escrita de palavras como “chuva” ou “choro” em língua materna devido aos fonemas iniciais, conforme o Quadro 4.

QUADRO 4 – Transferência de língua materna – Fonema /ʃ/

A transferência de uma língua para outra é parte do processo da aquisição de uma LA. Isso pode funcionar inclusive como uma estratégia que tanto contribui para internalização de estruturas, quanto para evitar outras, pois, segundo Selinker (1972), é comum que alguns aprendizes reduzam a LA a sistemas mais simples. O fato é que a influência de uma língua sobre a outra fará com que alguns aprendizes passem mais pela L1 que outros, recorrendo mais à busca

pelo conhecimento já construído na língua materna. Essa recorrência acontece devido ao contexto da língua dominante ser majoritário. Dessa forma, devemos pensar sobre a coexistência de representações linguísticas tanto para a L1 quanto para a LA.

Inicialmente, conforme vimos na seção sobre os modelos de memória bilíngue e nos questionávamos sobre a existência de um ou dois sistemas, o armazenamento das informações era pensado sob a perspectiva do modelo computacional, como sugere a representação sobre os modelos de memória bilíngue proposta durante a fundamentação teórica deste trabalho. Depois, vimos os modelos hierárquicos e, por fim, os conexionistas. Estes atribuem maior relevância ao ambiente da aprendizagem porque – segundo eles – as redes de conexões desenvolvidas pelos aprendizes são construídas à medida que eles se expõem às diversas nuances da LA. Assim, sem que haja a ideia de locais mais ativados que outros (como sugerem os modelos hierárquicos), o modelo proposto por Dijkstra e Van Heuven (2002), por exemplo, sugere uma rede de interação entre diferentes níveis que podem ser ativados paralela ou simultaneamente em uma ativação

bottom-up, sendo o nível ortográfico o primeiro a ser ativado, seguido dos níveis lexicais e

conceituais.

Em aspectos como esses, vem à tona a riqueza e a complexidade da organização dos sistemas de memória dos sujeitos bilíngues. Quando Altarriba e Heredia (2008) mencionaram inicialmente duas hipóteses – a compartilhada e a separada – para se referir à memória dos bilíngues, eles propunham que no sistema compartilhado as línguas seriam armazenadas na memória do bilíngue como abstrações, havendo atribuição de um significado somente para cada palavra.

Por outro lado, os defensores da existência de um sistema separado, como é o caso de Glanzer e Duarte (1971), sugerem que os bilíngues demonstram ter somente uma memória responsável pelos dois campos semânticos, uma memória para cada língua. Posteriormente Paivio (1980) propôs a Teoria da Dupla Codificação por acreditar que tanto as informações visuais quanto as verbais são utilizadas para representar o aprendizado; daí surgiu a hipótese das memórias independentes, mas interconectadas.

Com essa terceira hipótese é sugerida a existência de um sistema verbal para cada língua conectado por um sistema visual/imagético. Assim, Paivio (1980) sugere que as conexões entre as traduções de L1 e LA parecem mais fortes e de mais rápido acesso que as associações pareadas.

Com um arquivo duplamente influenciado, a Teoria da Dupla Codificação propõe que os bilíngues organizam suas línguas em um nível geral conceitual compartilhado pelos dois idiomas e um nível lexical que é peculiar a cada um deles (cf. Figura 3).

A Figura 3 mencionada no capítulo de fundamentação teórica representa um modelo hierárquico de memória e propõe uma diferença entre os modelos A e B. No modelo A o falante bilíngue precisa recorrer à L1 para ter acesso aos conceitos da LA, enquanto que no modelo B ele já consegue acessar os conceitos de cada língua sem precisar recorrer à língua materna porque o nível conceitual já é peculiar a cada língua, enquanto que no A este nível ainda é compartilhado.

Segundo Kroll e Stewart (apud ALTARRIBA e HEREDIA, 1994, p.53), os espaços lexicais da língua materna são maiores que os da LA porque representam mais claramente a maior quantidade de palavras que os bilíngues conhecem na língua dominante. Esse conhecimento maior na L1 pode causar maior influência sobre a LA nos aprendizes bilíngues desta pesquisa ao considerarmos o fato de ainda serem iniciantes.

As representações a seguir podem ser associadas aos Modelos de Associação de Palavras e Mediação de Conceitos propostos por Altarriba e Heredia e apresentados no Capítulo 1 da Fundamentação Teórica desta pesquisa. Elas remetem ao modelo de memória de Associação de Palavras – o modelo A da Figura 3 – primeiramente porque mostram que os aprendizes ainda não foram capazes de atingir o nível conceitual da LA sem recorrer à L1.

Embora a figura elaborada para fins desta análise (Figura 11) tenha um estágio a mais entre a LA e a L1 – diferentemente do modelo de memória trazido no capítulo de Fundamentação Teórica (Figura 3) – proponho que tal estágio, a IL, seja fundamental para entendermos o processo de desenvolvimento da escrita pelo qual os aprendizes deste estudo passam. Supor que a IL seja um processo importante responsável pelo resultado produzido pelos aprendizes é crucial para a visualização da produção desses sujeitos bilíngues como um contínuo, conforme proposto por Selinker (1972).

Já discutimos que a IL é uma espécie de “interperíodos”, é uma produção que se distingue

da L1 e da LA. Portanto, ela merece ser acrescentada ao modelo de memória – visto que é um processo psicolinguístico como qualquer outra aquisição de línguas – no momento em que a produção se refere a algo diferente da LA e da L1.

As figuras32 a seguir foram criadas para fins desta análise e baseadas no modelo de hierárquico de memória com o intuito de representar mais claramente o processo de escrita dos aprendizes. Trazer esses modelos adaptados pode contribuir para a compreensão do desenvolvimento da IL na escrita dos alunos e também pode ajudar a entender o percurso realizado por essa escrita, uma vez que L1 e LA podem contribuir diretamente.

A seguir, na tentativa de escrever green, o aprendiz representou grafo-fonologicamente o que, para ele, representa a forma ideal de escrita dessa palavra.

Vê-se, na Figura 11, que a representação escrita de green está tanto influenciada pela LA quanto pela L1, mas não é somente L1 porque a IL fez parte da transposição. Os exemplos a seguir, também representando o modelo A da Figura 3 (cf. capítulo de Fundamentação Teórica) referente à Associação de palavras, ilustram como os aprendizes parecem recorrer à L1 para

32 O que chamo de IL nas figuras adaptadas são as representações feitas pelos aprendizes ao tentarem escrever o que

foi proposto.

Figura 11 – Adaptação do lado A do modelo hierárquico de memória em relação à produção escrita dos aprendizes - green.

atingir o nível conceitual de outras palavras que foram utilizadas nos pré e pós-testes realizados neste estudo.

Ainda que cada aprendiz representado na Figura 12 tenha feito uma tentativa diferente ao representar square em LA, é nítido que eles recorreram à L1 com mais consciência do processo de escrita que os aprendizes representados na Figura 13. Segundo Piaget (1923), de acordo com discussão trazida no capítulo de fundamentação teórica deste estudo, o desenvolvimento cognitivo só é positivo se houver consciência do processo.

Veremos que a transferência do plano de ação para o plano da linguagem ainda precisa passar por mais ajustes; o que poderá ser, segundo Kato (1990), uma das consequências do processo de desenvolvimento da consciência. Nesse caso, é possível que os aprendizes ainda tenham de perceber que a escrita é imperfeita e encontrar seus próprios caminhos (ILARI, 2003).

Figura 12 – Segunda adaptação do lado A do modelo hierárquico de memória em relação à produção escrita dos aprendizes - square.

A Figura 13 traz representações da mesma palavra presente na figura anterior – square – mas com a necessidade de mais ajustes e autoeditoração conforme menciona Kato (1990).

Outros exemplos da influência da língua materna sobre a LA estão listados a seguir. Eles mostram que uns aprendizes precisam recorrer mais à L1 que outros, mas a partir dos resultados apresentados não parece ser possível pensar em sistemas separados de memória para os bilíngues.

Alguns aprendizes atingiram a forma-alvo, enquanto outros ainda registram a ocorrência da L1. Ressalto que essas representações retratam alunos distintos e que não há associação entre pré e pós-testes de cada aluno mencionado.

Por outro lado, para que o modelo hierárquico de memória fique completamente adaptado, é preciso apresentar como seria seu lado B incluindo as produções escritas dos aprendizes. Podemos ver na Figura 14 que para alguns foi possível atingir o nível conceitual sem recorrer à L1.

Figura 13 – Terceira adaptação do lado A do modelo hierárquico de memória em relação à produção escrita dos aprendizes - square.

Ao atingirem o nível conceitual sem precisarem recorrer à L1, os aprendizes cujos resultados foram apresentados na Figura 14 mostram um maior desenvolvimento de sua competência que, por não ter sido ensinada explicitamente, poderá ser desenvolvida de formas diferentes por cada um deles. Além disso, esse desenvolvimento pode ser reconstruído por cada um à medida que internalizem e alterem o input recebido.

Selinker (1972) considera a tentativa do aprendizado, qualquer que seja ela. Fator que, inclusive, antecede a noção de sucesso. Para o autor, o foco deve estar na aprendizagem, somente assim as tentativas em que os aprendizes utilizam para expressar possíveis significados na LA podem ser, de fato, interpretadas como performances significativas.

O Quadro 6, a seguir, mostra outros casos em que também houve influência da L1. Figura 14 – Primeira adaptação do lado B do modelo hierárquico

QUADRO 5 – Transferência de língua materna

Em relação ao Quadro 6, é preciso levar em consideração o fato de que as letras “ee” juntas em português não são associadas ao fonema /i/. Podemos pensar que a maturidade e mais tempo de exposição – somadas à ideia do continuum – poderão colaborar para uma escrita mais próxima da forma alvo. Assim como reconhecer que em inglês é preciso escrever um “e” não pronunciado ao final de square e blue, por exemplo. Todavia, mesmo que o aprendiz ainda não tenha conseguido compreender totalmente como registrar a escrita de square, ele foi capaz de reconhecer que inicialmente a palavra é escrita com “squ”, ao contrário da representação de outros, iniciada com “e”, o que retrataria a ainda presente recorrência à L1.

Assim, os dados confirmam que a memória humana parece ser complexa e não é um sistema unitário, e que tanto a maturidade linguística quanto a maturidade cognitiva do aprendiz podem influenciar a aprendizagem ao longo do tempo.

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