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Desde o começo da nossa existência, os seres humanos têm ponderado os mistérios relacionados a vida e a morte, e tentado encontrar significados em um mundo de constante mudanças. Acima e além do mundo dos sentidos, sempre teve uma crença em outro tipo de realidade, uma com poderes eternais que afetavam as vidas humanas (COSMOPOULOS, 2005, p. 13). Uma dessas crenças religiosas antigas eram os chamados Cultos de Mistério.

Os mistérios atuavam como uma religião pessoal, ou seja, o indivíduo tomava a decisão de participar ou não deles como se fosse a participação fosse pautada numa escolha própria a partir de um “chamado”. Essa iniciativa ocorria de forma privada e estimulada pelo escape da vida e de suas mazelas por meio da aproximação com o divino. Segundo o autor Walter Burket, existiu outra forma de religião pessoal que servia como fundamento antecessor para as práticas dos mistérios, denominava-se de “religião votiva”, na qual era praticado a ação de votos. Dependendo da circunstância em que o indivíduo se encontrava – doença, perigo ou algum tipo de necessidade – eram feitas promessas para os deuses, preenchidas com ofertas de menor ou maior valor. Uma prática que ultrapassou o mundo antigo e também pode ser vista na realidade do cristianismo (BURKERT, 1987, p. 13-15).

Por meio da arqueologia, historiadores da religião encontraram objetos de votos usualmente identificados em santuários nos contextos orientais – Micênicos, Gregos, Etruscos, Romanos e até os periféricos “Bárbaros” – e esses objetos remetiam a uma história pessoal, concretizados em atos de uma religião pessoal de esperança, oração e cumprimento.

Isso nos leva a compreender como a religião de estado se desenvolveu nesse caminho, mesmo com adoção de novos deuses e templos – isso no contexto romano – e alguns casos similares que devem ter ocorrido em um nível privado às vezes pouco vividos e sem consequências, e que poderiam ser classificados como tendência do tempo (BURKERT, 1987).

Quais aspectos dessa religião teriam relação com os cultos de mistério? Para essa pergunta, temos o que Burkert (1987, p. 15) dará como resposta em três aspectos. Primeiro, a prática de iniciação pessoal era largamente paralela a prática de votos e podia ser vista, neste contexto, como uma nova forma em uma similar busca pela “salvação”7. Segundo, o surgimento de novas formas de mistérios com novos deuses era o que devia se esperar como resultado dessas práticas funcionais. Terceiro, o alastramento das, então chamadas, religiões orientais de mistério que ocorreram, primariamente, na forma de votos religiosos, as vezes com os mistérios atuando apenas como anexo do movimento geral.

Ou seja, nos mistérios os deuses eram adorados na busca por esse salvamento, o qual possuía diversas formas de atuação e em acréscimo se tinham os votos. Esses votos dotavam um aspecto oficial e extraoficial, esses últimos ocorriam em petições na área da saúde, de negócios e familiar (fosse parente ou não, devido ao auto índice de mortalidade). Os primeiros foram conhecidos por meio de suas figurações nos santuários de Ísis e Mitras, os quais eram recorridos pelos devotos de acordo com suas “especialidades”. Ísis, a deusa egípcia, por exemplo, tinha sua particularidade na cura, então votos para ela eram feitos em busca de cura, ocorrendo do mesmo modo com cada deus em particular. O sucesso desses votos ocorria quando o devoto conseguia ver sua petição realizada antes de morrer (BURKET, 1987).

Exemplificando essa interação entre os mistérios e os votos, vejamos a seguinte história, que se encontra no famoso texto de Apuleio, da iniciação de Lucios a deusa Ísis citada por Walter Burkert: ele era um jovem estudante fugitivo a percorrer pelo mundo greco- romano, recém-integrado na respeitável sociedade que começa sua carreira de advogado de bastante sucesso em Roma. Como ele era iniciado nos mistérios isíacos, tais fatos em sua vida foram considerados como um resultado do favor de Ísis e Osíris – doadores de bens, riquezas. Isso também podia ser visto nos mistérios Dionisíacos, nos quais constantemente haviam textos de oração por saúde – rituais performados para cura de doenças, grandes sofrimentos (distúrbios psicossomáticos) e atá doenças e males hereditários –, riqueza, um bom ano, sorte em viagens por terra e pelo mar, e em geral por uma vida prazerosa com uma morte o mais tardar o possível (BURKET, 1987, p. 17).

7Aqui não usamos a palavra “salvação” em seu significado cristão, de um deus salvador, mas falamos da salvação como um escape para as dificuldades e tristezas da vida, principalmente a morte (BURKET, 1987, p. 08).

Os mistérios possuíam outros aspectos que iam além das significâncias de resgate e “salvação”, as chamadas bem-aventuranças, que eram intrinsecamente relacionadas, mais do que outros aspectos, à vida após a morte Como exemplo, podemos retratar o que ocorria com a deusa Deméter. O indivíduo, ao levar grãos a deusa e ao ter presenciado os mistérios, era firmado em uma promessa de vida e sepultura privilegiadas. Essa era uma forma de fazê-los ver a morte como algo bom. Burket, ao citar Cícero, enquanto fala dos mistérios Eleusinos ressalta “como viver em alegria, e como morrer com melhores esperanças” (BURKET, 1987, p. 21). Por outro lado, os que não realizavam os rituais, aguardavam coisas terríveis.

De qualquer forma, alguns dos pensadores antigos, como Plutarco, realmente pensavam que algumas das iniciações e purificações podiam ajudar, pois uma vez purificados, eles acreditavam que dançariam no Ades em lugares de brilho, ar puro e luz. Os mistérios atendiam as necessidades práticas mesmo em suas promessas para a vida após a morte; o que nos leva as duas dimensões dos mistérios: curas realísticas e imunizações de um lado e do outro a imaginária garantia da felicidade após a morte. Isso nos leva a perceber que a ideia central de todas as iniciações era a morte e a ressurreição. Essa extinção e salvação eram antecipados no ritual, a morte real se tornava uma repetição de secundária importância e o simbolismo, para a ressurreição, era algo descompromissado (BURKET, 1987).

É importante ressaltar que os atos de cura e purificação eram benéficos tanto para os vivos quanto para os mortos, isso devido à situação de ocorrer distúrbios vindos do mundo dos mortos e sentidos gravemente nesta vida. Assim, rituais eram feitos para eliminar a tristeza e o sofrimento, estabelecendo “bênçãos” que, imediatamente, teriam repercussão no mundo dos mortos. Nos documentos desses, então chamados cultos orientais, a dimensão de vida após a morte era muito menos óbvia. Algumas das formas de culto, por exemplo, mostravam menos importância com a preocupação individual depois da morte do que com os meios de evitar as catástrofes nessa vida. Esses cultos também se relacionavam, às vezes, com outros cultos orientais ou outras formas religiosas. A forma helenizada de adoração à deusa Meter se fundiu em parte com a de Dionísio (introduzido em todas as formas de adoração a Baco e nas representações) em tempos bem anteriores a sua presença no mundo romano. Dentre as características da religião de mistério, a maior garantia a ser concebida deveria ser a “salvação” transcendente que envolvia a imortalidade e a ascensão da tumba aos céus (era o cosmo) (BURKET, 1987, p. 24-27).

Não foram poucas as vezes que os cultos de mistérios foram contrastados com o cristianismo. No entanto, segundo o autor Walter Burket (1987, p. 28-29), muitas eram as

mais humanos em relação ao cristianismo. Tratando do mais humano, o autor usa um relato sobre um menino de 7 anos que morreu e por meio do santo cuidado de seus pais, foi feito um sacerdote de todos os deuses. Ou seja, o fator humano na realidade está ligado à deificação do homem simples, o que não ocorre no cristianismo primitivo. Outro ponto importante quanto às comparações, está relacionado à morte, sendo claro que nos mistérios o que ocorria não era uma ajuda contra a morte, mas, na realidade, meios para o esquecimento dela.

Alguns interpretaram como se houvesse uma fé dogmática que tornasse a morte em mistério, mas neles não tinha desvalorização da vida; somado a isso, neles também não havia um evangelho ou uma revelação que imunizassem os crentes dos desastres da vida. Na realidade, assim como as religiões votivas, os mistérios lembram uma extensão de uma forma experimental de religião podendo também, algumas vezes, decepcionar as esperanças de seus praticantes (BURKET, 1987).

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