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O PRINCÍPIO DA CONSERVAÇÃO DOS CONTRATOS COMO DECORRÊNCIA DA FUNÇÃO SOCIAL: teoria do adimplemento substancial e contratos cativos de longa duração

4 A FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO COMO CONCRETIZAÇÃO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES PRIVADAS

4.4 O PRINCÍPIO DA CONSERVAÇÃO DOS CONTRATOS COMO DECORRÊNCIA DA FUNÇÃO SOCIAL: teoria do adimplemento substancial e contratos cativos de longa duração

Outra aplicação prática da função social do contrato diz respeito à sua relação com o princípio da conservação dos contratos. Segundo esse preceito, deve-se procurar o aproveitamento, no que for possível, do contrato eivado de algum vício, com vista a se atingir a finalidade perquirida pelos contratantes, atendendo sua função social.

Nessa linha, Godoy, comentando sobre a conservação dos contratos e sua relação com a função social do contrato assevera que:

Deve-se, pelo papel que desempenha nas relações sociais, procurar o máximo de eficácia dessa que, afinal, é forma de circulação de riquezas mas, primeiro até, instrumento da promoção da dignidade humana e do solidarismo social – o contrato137.

Esse princípio vem positivado no Código Civil em alguns momentos. O principal deles é o artigo 170 do CC/02, no qual está disposto que “Se, porém, o negócio jurídico nulo

contiver os requisitos de outro, subsistirá este quando o fim a que visavam as partes permitir

supor que o teriam querido, se houvessem previsto a nulidade”.

Essa aplicação do Princípio da conservação do contrato, prevista no art. 170 do Código Civil é denominada por alguns doutrinadores como conversão do contrato.138

137

GODOY, Claudio Luiz Bueno de. Função social do contrato. São Paulo: Saraiva, 2004. p. 167.

138 Cf. BUSSATTA, Eduardo Luiz. Princípio da conservação dos contratos. In: HIRONAKA, Giselda;

Na conversão contratual, há uma busca pelo aproveitamento da intenção das partes, em detrimento da forma, buscando-se aproveitar o contrato como um tipo diferente do qual foi nominalmente qualificado. Assim, conforme Emílio Betti, “um negócio, embora inválido,

pode, não obstante, conservar alguns efeitos correspondentes ao tipo legal de que ele faz

parte”.139

No direito comparado, segundo Bussatta, o Código Civil alemão (BGB) de 1900 foi o primeiro diploma legislativo moderno a consagrar a conversão do contrato, no § 140, com a seguinte redação:

Correspondendo um negócio jurídico nulo aos requisitos de um outro negócio jurídico, vale o último, se for de presumir-se que sua validade, à vista do conhecimento da nulidade, teria sido querida.140

Além do art. 170 do Código Civil, em outros momentos o Código atua em prol da conservação dos contratos, como se pode perceber, por exemplo, no art. 144: “O erro não

prejudica a validade do negócio jurídico quando a pessoa, a quem a manifestação de vontade se dirige, se oferecer para executá-la na conformidade da vontade real do manifestante”.

Outra regra do Código Civil que também vem inspirada pelo princípio da conservação dos contratos é o art. 157, § 2º, o qual dispõe que: “Não se decretará a anulação do negócio,

se for oferecido suplemento suficiente, ou se a parte favorecida concordar com a redução do proveito”.

Podemos ainda citar, dentre outros, o artigo 479 do Código Civil, segundo o qual: “A

resolução poderá ser evitada, oferecendo-se o réu a modificar eqüitativamente as condições

139 BETTI, Emílio. Teoria Geral do Negócio Jurídico. Trad. Fernando Miranda. Coimbra: Coimbra Ed., 1998.

p. 57.

140 BUSSATTA, Eduardo Luiz. Princípio da conservação dos contratos. In: HIRONAKA, Giselda; TARTUCE,

do contrato. Com relação à conservação do contrato por meio desse art. 479, Daniel Amorim

Assumpção Neves141 levanta questão de ordem processual, apontando que, nesse artigo, a lei material criou uma hipótese de pedido contraposto, como instrumento para se pleitear a conservação do contrato. O doutrinador explica que esse instrumento deverá ser manejado pelo réu em ação na qual o autor pleiteie resolução contratual, fundada na onerosidade excessiva da obrigação.

Outra norma que visa à conservação dos contratos é aquela estabelecida no art. 184 do Código Civil, segundo a qual,

Respeitada a intenção das partes, a invalidade parcial de um negócio jurídico não o prejudicará na parte válida, se esta for separável; a invalidade da obrigação principal implica a das obrigações acessórias, mas a destas não induz a da obrigação principal.

Tal norma traz uma espécie de conservação contratual, denominada pela doutrina de

redução contratual e, conforme José Ascensão, “sacrifica-se a parte doente para salvar a restante” 142.

O Código de Defesa do Consumidor possui norma semelhante, tratando da redução contratual, como se pode observar na redação do art. 51, § 2º, o qual diz que “a nulidade de

uma cláusula contratual abusiva não invalida o contrato, exceto quando de sua ausência, apesar dos esforços de integração, decorrer um ônus excessivo a qualquer das partes”.

É possível que a redução contratual seja no aspecto quantitativo, como no caso de juros ou cláusula penal fixados acima dos limites legais, necessitando de uma intervenção judicial para adequá-las aos patamares permitidos.143

141

NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Pretensão do réu de manter o contrato com modificação de suas cláusulas diante de pedido do autor de resolução por onerosidade excessiva – pedido contraposto previsto pela lei material (art. 479, CC). In: HIRONAKA, Giselda; TARTUCE, Flávio (Coords). Direito contratual: temas atuais. São Paulo: Método, 2007, p. 709/713.

142 ASCENSÃO, José de Oliveira. Direito Civil. Teoria Geral: acções e factos jurídicos. v. 2, Coimbra:

O Enunciado 22 do Conselho da Justiça Federal, aprovado na I Jornada de Direito Civil faz clara relação entre a função social do contrato e o princípio da conservação dos contratos quando diz que “função social do contrato, prevista no art. 421 do novo Código

Civil, constitui cláusula geral que reforça o princípio de conservação do contrato,

assegurando trocas úteis e justas”.144

Flávio Tartuce relaciona o princípio da conservação do contrato com a proteção constitucional trazida no art. 5º, XXXVI da Constituição Federal de 1988, segundo a qual a lei nova não prejudicará o ato jurídico perfeito, a coisa julgada e o direito adquirido145.

Nesse sentido, pode-se compreender que a Constituição, ao proteger o ato jurídico perfeito contra a lei nova, milita no sentido principiológico de estabilidade das relações e na satisfação das justas expectativas contratuais.

Aponta-se no direito comparado uma aplicação da teoria da conservação dos contratos, consubstanciada na Teoria do adimplemento substancial tipificada no Código Civil italiano, no art. 1.455, cuja tradução livre exposta por Flávio Tartuce diz que “o contrato não pode ser

resolvido se o inadimplemento de uma das partes for de escassa importância, resguardado o

interesse da outra parte”.146

Pela teoria do adimplemento substancial, o credor não pode resolver o contrato por inadimplemento, quando já tiver ocorrido o adimplemento de uma parte substancial do contrato. Tal teoria visa, sem dúvida, à implementação da função social do contrato,

143 BUSSATTA, Eduardo Luiz. Princípio da conservação do contrato. In: HIRONAKA, Giselda Maria

Fernandes Novaes; TARTUCE, Flávio (Coords.). Direito contratual: temas atuais. São Paulo: Método, 2007. p. 157.

144 AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado de (Coord). Jornadas de direito civil I, III, IV e V: enunciados aprovados. Disponível em <http://www.jf.jus.br/cjf/CEJ-Coedi/jornadas-cej/enunciados-aprovados-da-i-iii-iv-e-

v-jornada-de-direito-civil/compilacaoenunciadosaprovados1-3-4jornadadircivilnum.pdf/view>. Acesso em: 04 jun. 2013.

145 TARTUCE, Flávio. Função social dos contratos: do Código de Defesa do Consumidor ao Código Civil de

2002. São Paulo: Método, 2007. p. 135.

146 TARTUCE, Flávio. Função social dos contratos: do Código de Defesa do Consumidor ao Código Civil de

instrumentalizada pela boa-fé objetiva, segundo a qual não faz sentido em razão de um mínimo inadimplemento, a resolução do contrato em que já houve o adimplemento quase total das prestações pelo inadimplente.

Há quem entenda na doutrina brasileira que a teoria do adimplemento substancial seria fundamentada mais especificamente no dever de controle (“limitação ao exercício das

posições jurídicas ou direitos subjetivos” 147) oriundo da boa-fé objetiva.

A necessidade de utilização da teoria do adimplemento substancial ocorre com frequência na revisão judicial dos contratos de arrendamento mercantil com alienação fiduciária em garantia. Nesses casos, são realizados contratos de financiamento para aquisição de veículos, os quais são dados em garantia pelo inadimplemento das prestações. Por vezes, ocorre o inadimplemento mínimo do devedor (v.g. últimas três parcelas, de um total de sessenta) e os bancos ajuízam ações de busca e apreensão do veículo, em razão do não pagamento das parcelas do financiamento, requerendo a resolução do contrato e o deferimento da liminar de busca e apreensão. Passados cinco dias após o cumprimento da liminar de busca e apreensão do veículo e não havendo pagamento da integralidade da dívida, o art. 3º, §§ 1º e 2º do Dec-Lei 911/69 autoriza a consolidação plena da posse e propriedade na esfera do banco.

O Superior Tribunal de Justiça, em julgado recente148 sobre a matéria, aplicou literalmente a previsão do Decreto-Lei acima citado, entendendo que a devolução do bem

147

BUSSATTA, Eduardo Luiz. Resolução dos contratos e teoria do adimplemento substancial. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 74.

148 DIREITO CIVIL. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE BUSCA E APREENSÃO. ALIENAÇÃO

FIDUCIÁRIA EM GARANTIA. DECRETO-LEI N. 911/1969. ALTERAÇÃO INTRODUZIDA PELA LEI N. 10.931/2004. PURGAÇÃO DA MORA E PROSSEGUIMENTO DO CONTRATO. IMPOSSIBILIDADE. NECESSIDADE DE PAGAMENTO DO TOTAL DA DÍVIDA (PARCELAS VENCIDAS E VINCENDAS). 1) A atual redação do art. 3º do Decreto-Lei n. 911/1969 não faculta ao devedor a purgação da mora nas ações de busca e apreensão de bem alienado fiduciariamente. 2) Somente se o devedor fiduciante pagar a integralidade da dívida, no prazo de 5 (cinco) dias após a execução da liminar, ser-lhe-á restituído o bem, livre do ônus da propriedade fiduciária. 3) A entrega do bem livre do ônus da propriedade fiduciária pressupõe pagamento integral do débito, incluindo as parcelas vencidas, vincendas e encargos. 4) Inexistência de violação do Código de Defesa do Consumidor. Precedentes. 5) Recurso especial provido. (REsp 1287402/PR, Rel. Ministro MARCO BUZZI, Rel. p/ Acórdão Ministro ANTONIO CARLOS FERREIRA, QUARTA TURMA, julgado em

apreendido somente é possível, no prazo previsto e com o pagamento da integralidade da dívida (parcelas vencidas, vincendas e encargos).

Entretanto, a jurisprudência de outros tribunais149 tem entendido de maneira diversa, vislumbrando a possibilidade de devolução do bem apreendido ao devedor, caso esse, no prazo legal, realize a purgação da mora, com o pagamento das parcelas vencidas. Segundo esses julgados, a cláusula de vencimento antecipados das parcelas vincendas afronta o artigo 54, § 2º do código de Defesa do Consumidor, uma vez que não oferece a possibilidade de purgação da mora e continuidade do contrato, através do pagamento unicamente das parcelas vencidas.

Essa última corrente é a que nos parece correta, uma vez que mais afinada com a função social do contrato e os princípios constitucionais de proteção do consumidor, como expresso no citado artigo 54, § 2º do CDC, que estabelece a possibilidade de extinção contratual como uma das alternativas oferecidas ao consumidor e não como a única solução para o caso. Ademais, a possibilidade de purgação da mora, através do pagamento das prestações vencidas e encargos, está prevista no art. 401 do Código Civil. Tudo isso, indica uma nova sistemática, que privilegia a continuidade do contrato, como forma de fomentar sua função social.

Em outros casos, nos quais houve pagamento quase integral do contrato, seguido de um inadimplemento mínimo (uma só parcela atrasada e todas as demais já pagas), a jurisprudência do STJ já entendeu pela inadmissibilidade de concessão da liminar de busca e http://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/toc.jsp?tipo_visualizacao=null&livre=princ%EDpio+da+conserva% E7%E3o+do+contrato&b=ACOR&thesaurus=JURIDICO#DOC2. Acesso em: 13 ago 2013.

149

AGRAVO DE INSTRUMENTO. ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA. AÇÃO DE BUSCA E APREENSÃO. PURGA DA MORA. CLÁUSULA DE VENCIMENTO ANTECIPADO DA DÍVIDA. PURGA DA MORA. Realizado o pagamento ou depósito das parcelas vencidas e das que forem vencendo no decorrer da instrução processual, há a purgação da mora. CLÁUSULA DE VENCIMENTO ANTECIPADO DA DÍVIDA A cláusula que prevê o vencimento antecipado da dívida independentemente de qualquer notificação judicial ou extrajudicial é nula, pois é abusiva, contrariando o disposto no artigo 54, § 2º, do CDC. AGRAVO DE INSTRUMENTO AO QUAL SE NEGA SEGUIMENTO (...). TJ-RS - AI: 70051625861 RS, Relator: Roberto Sbravati, Data de Julgamento: 22/10/2012, Décima Quarta Câmara Cível, Data de Publicação: Diário da Justiça do dia 23/10/2012. Disponível em: http://tj-rs.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/22533715/agravo-de-instrumento- ai-70051625861-rs-tjrs. Acesso em: 13 ago 2013.

apreensão do veículo. Na hipótese, trata-se do Resp 272739/MG, que teve como relator o Min. Ruy Rosado de Aguiar, onde foi confirmada decisão que indeferiu liminar de busca e apreensão de veículo, considerando a desproporção entre a pequena dívida (apenas a última parcela) em relação ao valor do veículo, já quase todo pago.

Considerou-se ainda no julgado que houve o adimplemento substancial apto a garantir a manutenção do contrato, contra a pretensão do banco em requerer liminar de busca e apreensão do veículo e extinção do contrato, restando à instituição financeira a cobrança da dívida pelos meios judiciais cabíveis. A decisão ainda salientou que a extinção do contrato em razão do inadimplemento da última parcela fere a boa-fé objetiva.150

De fato, no caso do atraso no pagamento da última prestação de financiamento, o qual geralmente é realizado pelo prazo três a cinco anos, espera-se, segundo a premissa da boa-fé objetiva, que haja uma opção que concilie a cobrança da dívida com a conservação do contrato, garantindo, assim, um aspecto da função social do contrato, que é o alcance de sua finalidade de transferir bens, evitando-se uma desproporcional resolução de um contrato quase todo cumprido.

O princípio da conservação do contrato, segundo Junqueira de Azevedo151, deve orientar tanto o legislador como o interprete. O primeiro, quando da elaboração de normas que procurem vislumbrar as hipóteses de aproveitamento da vontade contratual, em caso de eventual vício formal; o segundo, quando da aplicação dessas normas, procurando preservar o máximo possível o negócio jurídico (nos planos da existência, validade e eficácia), em homenagem a autonomia privada.

Outro assunto digno de nota nesse contexto é a aplicação do princípio da conservação nos contratos denominados por Cláudia Lima Marques de “contratos cativos de longa

150

STJ, REsp 272.739/MG, 4ª Turma, rel. Min. Ruy Rosado , j. 1º-3-2001, DJU 2-4-2001.

151 AZEVEDO, Antonio Junqueira de. Negócio jurídico: existência, validade e eficácia. São Paulo: Saraiva,

duração”152. Entre esses, se pode verificar os contratos de: seguro, plano de saúde, previdência privada, água, luz, saneamento básico, financiamento da casa própria, educação particular, etc. Em tais contratos, encontra-se a característica comum do prazo muito longo ou indeterminado e a essencialidade do serviço.

Muito desses pactos são ainda caracterizados pela premiação do aderente, à medida que se torna mais antigo como cliente, como, por exemplo, nos contratos de seguros, nos contratos bancários em geral e nos plano de saúde.

Nessas situações, devido à necessidade de permanecer por muito tempo vinculado ao contrato, ou por vezes, pela essencialidade dos bens envolvidos, visto que os mesmos relacionam-se com “situações existenciais” 153 do ser humano e, portanto, ligados à sua dignidade, deve-se conferir a esses contratos uma “tutela qualitativamente diversa”154, com vista a possibilitar que a pessoa possa se desenvolver livremente.

Tal tutela é possibilitada pela mitigação das cláusulas que imponham obrigações onerosamente excessivas à parte mais vulnerável da relação, de forma que a autonomia privada é tutelada por um dirigismo estatal que tem a finalidade de verificar a efetivação da função social do contrato nessas hipóteses.

A tutela da conservação do contrato nesses tipos de contratos cativos mostra-se bem evidente na Lei 9.656/1998, a qual dispõe sobre os planos e seguros privados de assistência à saúde. Nessa norma legal, em seu art. 13, encontram-se vários instrumentos para conservação do contrato, como a proibição de qualquer taxa para renovação de contrato, bem como a proibição de perdimento das carências já cumpridas, quando da renovação do contrato, além

152

MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações contratuais. 5.ed. São Paulo:RT, 2006. p. 97.

153 BUSSATTA, Eduardo Luiz. Princípio da conservação do contrato. In: HIRONAKA, Giselda Maria

Fernandes Novaes; TARTUCE, Flávio (Coords.). Direito contratual: temas atuais. São Paulo: Método, 2007. p.

167.

154 PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil: introdução ao Direito Civil Constitucional; trad. de: Maria

dos critérios para a rescisão unilateral do contrato e ainda a proibição de rescisão durante período de internação do paciente.

A jurisprudência do Superior Tribunal de justiça também tem abraçado essa tese de proteção da continuidade desse tipo especial de contrato, como se pode vê no julgamento do REsp 1073595/MG155, onde se entendeu que o aumento das parcelas de seguro de vida, mediante a simples comunicação ao segurado por meio de notificação com poucos meses de antecedência, configura uma alteração indevida do contrato, asseverando que o aumento do valor das prestações, conforme novo cálculo atuarial, deve ser realizado de forma escalonada ao longo de razoável espaço de tempo, a fim de proporcionar ao consumidor uma mudança suave em seu orçamento e uma melhor adaptação, visto que já viera pagando na forma do cálculo antigo há trinta anos.

155 DIREITO DO CONSUMIDOR. CONTRATO DE SEGURO DE VIDA, RENOVADO

ININTERRUPTAMENTE POR DIVERSOS ANOS. CONSTATAÇÃO DE PREJUÍZOS PELA SEGURADORA, MEDIANTE A ELABORAÇÃO DE NOVO CÁLCULO ATUARIAL. NOTIFICAÇÃO, DIRIGIDA AO CONSUMIDOR, DA INTENÇÃO DA SEGURADORA DE NÃO RENOVAR O CONTRATO, OFERECENDO-SE A ELE DIVERSAS OPÇÕES DE NOVOS SEGUROS, TODAS MAIS ONEROSAS. CONTRATOS RELACIONAIS. DIREITOS E DEVERES ANEXOS. LEALDADE, COOPERAÇÃO, PROTEÇÃO DA SEGURANÇA E BOA FÉ OBJETIVA. MANUTENÇÃO DO CONTRATO DE SEGURO NOS TERMOS ORIGINALMENTE PREVISTOS. RESSALVA DA POSSIBILIDADE DE MODIFICAÇÃO DO CONTRATO, PELA SEGURADORA, MEDIANTE A APRESENTAÇÃO PRÉVIA DE EXTENSO CRONOGRAMA, NO QUAL OS AUMENTOS SÃO APRESENTADOS DE MANEIRA SUAVE E ESCALONADA. 1. No moderno direito contratual reconhece-se, para além da existência dos contratos descontínuos, a existência de contratos relacionais, nos quais as cláusulas estabelecidas no instrumento não esgotam a gama de direitos e deveres das partes. 2. Se o consumidor contratou, ainda jovem, o seguro de vida oferecido pela recorrida e se esse vínculo vem se renovando desde então, ano a ano, por mais de trinta anos, a pretensão da seguradora de modificar abrutamente as condições do seguro, não renovando o ajuste anterior, ofende os princípios da boa fé objetiva, da cooperação, da confiança e da lealdade que deve orientar a interpretação dos contratos que regulam relações de consumo. 3. Constatado prejuízos pela seguradora e identificada a necessidade de modificação da carteira de seguros em decorrência de novo cálculo atuarial, compete a ela ver o consumidor como um colaborador, um parceiro que a tem acompanhado ao longo dos anos. Assim, os aumentos necessários para o reequilíbrio da carteira têm de ser estabelecidos de maneira suave e gradual, mediante um cronograma extenso, do qual o segurado tem de ser cientificado previamente. Com isso, a seguradora colabora com o particular, dando-lhe a oportunidade de se preparar para os novos custos que onerarão, ao longo do tempo, o seu seguro de vida, e o particular também colabora com a seguradora, aumentando sua participação e mitigando os prejuízos constatados. 4. A intenção de modificar abruptamente a relação jurídica continuada, com simples notificação entregue com alguns meses de antecedência, ofende o sistema de proteção ao consumidor e não pode prevalecer. 5. Recurso especial conhecido e provido. REsp 1073595/MG, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 23/03/2011, DJe

29/04/2011. Disponível em:

http://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/toc.jsp?tipo_visualizacao=null&livre=contrato+cativo+longa+dura% E7%E3o+&b=ACOR&thesaurus=JURIDICO#DOC2. Acesso em: 14 ago. 2013.

Portanto, nesses denominados contratos cativos, a resolução (e também a modificação) contratual deve ser sempre precedida instrumentos que visem à manutenção ou a mudança gradual do contrato, a fim de evitar prejuízo desarrazoado daquele que mais sofre com o fim ou com a mudança abrupta do contrato, qual seja, o consumidor.

4.5 IMPLICAÇÕES DA FUNÇÃO SOCIAL DOS CONTRATOS NO CÓDIGO DE