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99Ibidem, p. 12.

100BRAIT. Ironia em perspectiva polifônica, p. 6. 101Ibidem, p. 178.

Um dos aspectos mais importantes do grotesco diz respeito às imagens do corpo. A estrutura física do organismo humano, tanto a parte concreta quanto suas funções fisiológicas, se constitui no veículo para a manifestação do grotesco. O chamado princípio da vida material e corporal, descrito por Bakhtin, a propósito da obra de Rabelais, tem como base as imagens do corpo, da bebida, da comida, da satisfação de necessidades naturais, e da vida sexual, elementos imprescindíveis para se compreender o chamado realismo grotesco. O teórico russo salienta que, neste tipo de realismo, o elemento material e corporal não se encontra à parte de outros aspectos da vida; antes, é um constituinte positivo, percebido como universal e popular. Por esta última característica, apresenta-se em oposição à separação das raízes materiais e corporais do mundo e ao confinamento em si mesmo, já que não aparece sob uma forma isolada como em nossa época. O corpo e a vida corporal não se encontram, deste modo, singularizados nem separados do resto do mundo.102

Esse voltar-se para o que é corpóreo pode ser fácil e erroneamente encarado como uma simples negação do que é superior, altivo, eminente. Bakhtin, ao contextualizar tais parâmetros, impede que essa carnalidade seja vista como um simplório “decaimento”. Ele ressalta que a característica essencial do realismo grotesco é o rebaixamento, isto é, o deslocamento ao plano material e corporal, o da terra e do corpo na sua indivisível unidade, de tudo que é elevado, espiritual, ideal e abstrato. O trecho abaixo ilustra o valor topográfico do alto e do baixo:

No realismo grotesco, a degradação do sublime não tem um caráter formal ou relativo. O “alto” e o “baixo” possuem aí um sentido absoluta e rigorosamente topográfico. O “alto” é o céu; o “baixo” é a terra; a terra é o princípio da absorção (o túmulo, o ventre) e, ao

mesmo tempo, de nascimento e ressurreição (o seio materno). Este é o

valor topográfico do alto e do baixo no seu aspecto cósmico. No seu aspecto corporal, que não está nunca separado com rigor do seu aspecto cósmico, o alto é representado pelo rosto (a cabeça), e o baixo pelos órgãos genitais, o ventre e o traseiro. [...] quando se degrada, amortalha-se e semeia-se simultaneamente, mata-se e dá-se a vida em seguida, mais e melhor.103

Portanto, o rebaixamento consiste em aproximar da terra, estabelecer uma comunhão com a terra concebida como um princípio de absorção e, ao mesmo tempo, de

102BAKHTIN. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais, p.

17.

103BAKHTIN. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais, p.

nascimento.104 Essa simultaneidade é recorrente, por exemplo, em imagens, cenas e descrições nas quais o mesmo organismo que está vivenciando uma excessiva longevidade e, por consequência, a esterilidade e a morte, é também aquele que abriga sementes ou proles, ou seja, é um inacreditável veículo para a vida.

Este processo de morte e renovação pode ser ricamente ilustrado ao se tomar as figuras das “velhas grávidas”105 que, conforme demonstra Bakhtin, trazem em si os aspectos contraditórios contidos nas imagens do corpo grotesco. O teórico russo está se referindo às figuras de terracota de Kertch que se encontram no Museu L’Ermitage, de Leningrado, na Rússia. Entre elas, há as que representam velhas risonhas e cuja gravidez aparece grotescamente acentuada, em que a ambivalência – a morte, a velhice, o corpo deformado convivendo com a gravidez e a nova vida – é bem característica do que ele denomina “concepção do corpo grotesco”. Esta combinação ambivalente e contraditória é a expressão do processo da vida como um todo.

Trata-se de um tipo de grotesco muito característico e expressivo, um grotesco ambivalente: é a morte prenhe, a morte que dá à luz. Não há nada perfeito, nada estável ou calmo no corpo dessas velhas. Combinam-se ali o corpo decomposto e disforme da velhice e o corpo ainda embrionário da nova vida.106

João Carlos Rodrigues também destaca a importância desta representação. Segundo o teórico, a figura da idosa grávida é exemplar na cultura medieval, por reunir, a um só tempo, os “signos da decrepitude e da decadência e uma barriga prestes a dar à luz”.107 Imageticamente, a velha em gestação expressa a não-aceitação da antinomia entre vida e morte, vida e decrepidez, pois o corpo é o espaço que abriga todas estas características e manifestações simultaneamente. Além disso, esse autor realça o efeito de comicidade desta convivência de contrários em que o embrião da nova vida tem lugar no corpo decrépito.

Por este prisma, o corpo arruinado das mulheres engendraria harmonicamente a vida (a gravidez) e, ao mesmo tempo, a morte (a velhice), sem que

104Ibidem, p. 19.

105Como se verá adiante, essas figuras são especialmente importantes para a análise do capítulo “As

idosas profanadoras”, do romance Terra Sonâmbula. Foi esta passagem, inclusive, que inspirou o estudo do grotesco no romance de Mia Couto.

106BAKHTIN. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais, p.

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estes polos se excluam mutuamente. Afinal, “este tempo do riso é uma época em que se acredita sinceramente na ressurreição da carne”.108

Em seu propósito de abordar a conexão entre abjeção, marginalidade e grotesco sob o viés do feminino, Mary Russo traça um perfil dos territórios que abarcam “criaturas limítrofes”, as quais inspiraram escritores, artistas performáticos e visuais, além de cineastas contemporâneos. Analisando imagens que contêm em si o exagero, a deformidade, a aberração, a loucura e a diferença incômoda, a autora sustenta que o corpo feminino é frequentemente associado ao grotesco:

A própria palavra, como quase todos os que escrevem sobre o assunto acabam um dia se sentindo obrigados a mencionar, evoca a caverna – a grota-esco (sic). Baixa, escondida, terrena, escura, material, imanente, visceral. Como metáfora do corpo, a caverna109 grotesca

tende a se parecer (e, no sentido metafórico mais grosseiro, identificar) com o corpo feminino anatomicamente cavernoso.110

Essas associações com o grotesco, que a autora qualifica ainda como “terreno, material e arcaico”, indicam, para muitos autores e artistas, sejam eles homens ou mulheres, uma representação vigorosa e positiva de cultura e feminilidade. Ela aponta que, mais que apenas constar na importante obra de Mikhail Bakhtin, com sua “expressão mais forte do grotesco” na imagem da “bruxa senil, grávida”, o tema irrompe “numa certa visão arquetípica destes materiais que ainda prevalecem numa corrente de ‘feminismo cultural’ não-acadêmico”,111 cuja concepção estabelece uma natural aproximação entre o corpo feminino (ele mesmo naturalizado) e os elementos “primordiais”, especialmente a terra, numa perspectiva que valoriza as tradicionais imagens da mãe terra, da bruaca, da feiticeira e da vampira.

Entretanto, Russo alerta para o fato de ser fácil e perigoso deslizar destes “tropos arcaicos para a misoginia que identifica este espaço interior oculto com o visceral”.112 Ainda que de maneira predominante, mas não exclusiva, todos os detritos

108RODRIGUES. Higiene e ilusão: o lixo como invento social, p. 33.

109Corroborando em parte esta perspectiva, a “caverna” possui uma rica e complexa significação

simbólica. Em um destes sentidos, é “o arquétipo do útero materno” e “figura nos mitos de origem, de renascimento e de iniciação de numerosos povos”. Cf. CHEVALIER; GHEERBRANT. Dicionário de símbolos, p. 212-217.

110RUSSO. O grotesco feminino: risco, excesso e modernidade, p. 13. 111RUSSO. O grotesco feminino: risco, excesso e modernidade , p. 13. 112Ibidem, p. 14.

do corpo (sangue, lágrimas, vômito e excremento) estão ali embaixo, “naquela caverna de abjeção” associados “com terror e repugnância [...] ao lado do feminino”.113

Neste sentido, haveria uma insistência na cultura ocidental dessas codificações limitadas do corpo associadas ao grotesco: a Medusa, a Bruaca, a Mulher Barbada, a Dona Gorda, a Mulher Tatuada, a Mulher Indisciplinada, a Vênus Hotentote, a Mulher Faminta, a Histérica, a Vampira, a Personificação da Mulher, as Gêmeas Siamesas, a Anã.114 Persistência essa que, como tivemos oportunidade de defender até aqui, não é emblemática da pluralidade que o corpo grotesco, como um todo, representa e possibilita.