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Ao religar o homem e a natureza por meio das forças sobrenaturais, Mia Couto cria as condições ideais para que o sagrado se manifeste em suas obras. O autor faz com que os sentidos “gastos” da narrativa oral e da palavra escrita se transfigurem em arte da palavra viva. Pode-se dizer que a literatura miacoutiana apresenta-se como uma espécie de “cosmogonia” literária, como a criação de outra realidade em que distintas narrativas são ritualizadas/reatualizadas a partir das vozes e atitudes dos personagens.

Desta forma Mia Couto tenta recuperar o sentido profundo do homem ao colocá-lo em contato íntimo com as forças da natureza, sem negar, porém, o contraditório atravessamento da modernidade. Estratégias de uma escrita dinâmica que, a despeito de valorizar as crenças do passado, não se “engessa” nelas e constantemente as traz criticamente para as cenas de seus livros.

O sagrado em Mia Couto irrompe do profano tal qual nos mostrou Eliade: trazendo as fulgurações do diferente em meio ao corriqueiro da vida. Suas estórias incorporam crenças, ritos, costumes, valores tradicionais, e reacendem a chama que ilumina os dias e as noites, num sofisticado jogo entre os limites da “verdade” e da “mentira”.251

248Ibidem. A terra e os devaneios da vontade: ensaio sobre a imaginação das forças, p. 1.

249BACHELARD. .A terra e os devaneios do repouso. ensaio sobre a imaginação da intimidade, p. 2. 250ELIADE. Mito e realidade, p. 15.

251A respeito da proposta de realização desse livro, Mia Couto explica em sua abertura: “Estas estórias

Toda a estória se quer fingir verdade. Mas a palavra é fumo, leve de mais (sic) para se prender na vigente realidade. Toda verdade aspira ser estória. Os fatos sonham ser palavra, perfumes fugindo do mundo. Se verá neste caso que só na mentira do encantamento a verdade se casa à estória (EA, 1994, p. 47).

Na volatilidade desse fumo, a palavra também se torna alma a revelar a essência de um mundo que não pretende se estagnar nos perímetros. Nem mesmo os personagens assumem atitudes estanques. Seres deslizantes, mulheres, feiticeiros, aleijados, anões e loucos rompem com o paradigma da beleza, da perfeição e do esperável e se entregam ao exercício de suspender os sentidos consolidados e vivenciar outros modos de expressão das forças místicas e ocultas da natureza.

Contra a truculência da guerra, um dos temas principais de seus livros, Mia Couto cria espaços alternativos; afinal, o moçambicano comum, anônimo, só tem como arma seu sonho e sua esperança. Veja-se que o conto “O cachimbo de Felizbento”, do livro citado acima, mostra a resistência de um velho que, para não ser arrancado à força de sua terra, acaba desaparecendo em uma cova aberta no quintal, juntamente com seus mais férteis sonhos de paz. Assim vai revelando os dilemas entre o mundo tranquilo do antigamente e o conflituoso mundo atual. Como ilustra o trecho a seguir:

Aquele chão ainda estava a começar, recém-nascente. As sementes ali se davam bem, o verde se espraiando em sumarentas paisagens. A vida se atrelava no tempo, as árvores escalando alturas. Um dia, porém, ali desembarcou a guerra, capaz de todas as variedades de morte. Em diante, tudo mudou e a vida se tornou demasiado mortal (EA, 1996, p. 47).

Para encetar a “costura” de suas estórias, recorre à terra, à água, ao céu, aos pássaros e às árvores como alguns dos principais símbolos, fontes primordiais da ligação do homem com as raízes africanas, na poética sustentação de um mundo abalado pelos “fazedores de guerra” e “construtores da miséria”, como ele mesmo explica:

A terra, a árvore, o céu: é na margem desses mundos que tento a ilusão de uma costura. É uma escrita que aspira ganhar sotaques do chão, fazer-se seiva vegetal e, de quando em quando, sonhar o voo da asa rubra. É uma resposta pouca perante os fazedores de guerra e construtores da miséria. Mas é aquela que sei e posso, aquela em que

água abensonhada. Desse território onde todo o homem é igual, assim: fingindo que está, sonhando que vai, inventando que volta.” In: COUTO. Estórias abensonhadas, p. 7.

apostei a minha vida e o meu tempo de viver (UVF, 2005, p. 224- 225).252

Também eu tento uma cosedura ao tomar o elemento terra nas obras de Mia Couto em dois momentos aparentemente antagônicos. Neles, a substância aparece como fonte de vida (por exemplo, para que a mãe de Kindzu, em Terra sonâmbula, consiga levar adiante suas gestações, ela necessita literalmente comer a terra, incorporá-la ao seu próprio organismo) ou como resistente leito de morte (na ilha de Luar-do-Chão, do romance Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra, o solo permaneceu “fechado” até que houvesse condições propícias para o funeral do Avô Mariano).

Veja-se, pois, que, desde o nascimento até a morte, os personagens estabelecem um vínculo estreito, ainda que tenso, com as forças telúricas. A energia da terra advém de significações sempre profundas, já que manifesta, como vimos, o centro de existência, de fecundação e de maternidade, além de constituir o último refúgio para o corpo. Não se pode desconsiderar a interlocução que este percurso simbólico, encenado na obra miacoutiana, estabelece com a frase do Gênesis: “Comerás o teu pão com o suor do teu rosto, até que voltes à terra de que foste tirado; porque és pó, e em pó te hás de tornar” 253 (grifo meu).

Neste sentido, o sagrado assume um lugar de reverência, de chão que não deve ser maculado por pegadas descuidadas, sob o risco de decorrerem prejuízos para todos. Não é sem razão que aprender a pisar a terra é o principal ensinamento de Temporina, a jovem-velha, de O último voo do flamingo.

Ainda no que se relaciona ao poder da terra, o feiticeiro Andorinho, no mesmo romance, adverte: “A terra tem seus caminhos secretos [...] O senhor lê o livro, eu leio o chão” (UVF, 2005, p. 155). Ou seja, a compreensão do mundo africano exige uma “leitura” muito mais profunda da vida, numa lógica que, no livro, estranha a racionalidade proposta pelo investigador italiano Massimo Risi. Assim também faz Constança, mãe de Mwadia Malunga, no romance O outro pé da Sereia. Enquanto a filha transcreve o conteúdo de antigos papéis coloniais encontrados no sótão da casa, a mãe lê nas páginas da terra. “– Escreva na terra, filha. A terra é a página onde Deus lê” (OPS, 2006, p. 175).

252Palavras proferidas por Mia Couto na entrega do Prêmio Mário António, da Fundação Calouste

Gulbenkian, em 12 de junho de 2001.

A árvore também é, por excelência254, um centro de manifestação do sagrado. Nos livros de Mia Couto, ela assume papel essencial no desenvolvimento ou desenlace das estórias. Em A varanda do frangipani, a árvore (florescida já no próprio título) é um eixo de ligação entre o mundo dos vivos e o dos mortos, varanda que abre vastos caminhos de miragens e de sonhos. Com suas flores perfumadas, o frangipani representa “o lugar de milagre”, e sua transubstanciação de cinza para árvore “natalícia” demonstra o infindável poder regenerador do sagrado. “[...] Então, desci do meu corpo, toquei a cinza e ela se converteu em pétala. Remexi a réstia do tronco e a seiva refluiu, como sêmen da terra. A cada gesto meu o frangipani renascia [...]” (VP, 2007, p. 143).

A mesma função sagrada tem a “grande sombra do canhoeiro”255, em Terra sonâmbula. Este é o “centro da aldeia”, onde os mais velhos se sentam, “de manhã até de noite” para proferir “suas antigas sabedorias” (TS, 2007, p. 29-30). É a partir desse eixo organizador que Kindzu passa a empreender sua jornada por um “lugar sossegadinho”.

No mesmo romance, a árvore também pode ser tomada como local da maldição (onde a ave mampfana haveria de se mostrar para Kindzu por ele ter desobedecido as ordens do pai) ou ainda como o ponto de derradeiro encontro com a morte: em outra passagem do livro, o tronco do embondeiro é aquele que sustenta a dianteira amassada do ônibus que se desgovernou. Também são os embondeiros256 que, melancolicamente, “contemplam o mundo a desflorir” (TS, 2007, p. 9). Ou seja, na

254Retomando as considerações de Mircea Eliade sobre a ruptura de níveis, tem-se que a árvore pode ser

considerada um Axis mundi ou coluna universal, um dos símbolos que estabelece a sustentação e a conexão entre os “três níveis cósmicos” – Terra, Céu, regiões inferiores. “Essa coluna cósmica só pode situar-se no próprio centro do Universo, pois a totalidade do mundo habitável espalha-se à volta dela” (ELIADE. O sagrado e o profano: a essência das religiões, p. 38).

255Segundo explica Mia Couto no Glossário de O último voo do flamingo, é a ‘árvore da fruta nkanhu de

onde se extrai a bebida usada em cerimônias tradicionais do sul de Moçambique. Nome científico: Sclerocarya birrea’ (UVF, 2005, p. 221).

256No livro Ao sul da África: na África do Sul, os ndebeles. No Zimbábue, os xonas. Em Botsuana, os

bosquímanos, Laurence Quentin e Catherine Reisser descrevem a importância do baobá ou

embondeiro (Adansonia digitata) para os bosquímanos, caçadores e coletores de frutos, habitantes de Botsuana, no sul da África. Segundo eles, essa árvore chega a viver milhares de anos e representa uma verdadeira fonte de riquezas (pela madeira, cortiça, frutos, folhas, sementes e óleo, utilizados de diversos modos) para esses povos e também para os animais que se abrigam em seu tronco depois de seco. Os bosquímanos assim explicam a estranha forma do baobá: “[...] dizem que Deus, que tinha dado a todos os animais uma semente para ser plantada, serviu a hiena em último lugar. Furiosa, ela plantou a sua de cabeça para baixo. Era a semente do baobá. A árvore cresceu, mas com um tronco grosso e galhos que parecem raízes!” (QUENTIN; REISSER, p. 108). Curiosamente, a etimologia da palavra “embondeiro” é uma derivação de “-bonda” (matar). “Em alusão à preferência dos feiticeiros por essa árvore em seus trabalhos macabros”, cf. HOUAISS; VILLAR. Dicionário eletrônico Houaiss de Língua Portuguesa, 2002.

paisagem calcinada, apenas essa venerável árvore continua a carregar o peso dos anos e da destruição.

Os pássaros, por sua vez, são símbolo de “secretas viagens”, como diz o autor. Deste modo, aves reais, como flamingos e garças, ou fabulosas, como o mampfana, o pássaro-martelo257 e a “ave pressageira”, estabelecem uma ponte entre o profano e o sagrado, transitando de um nível a outro. As aves também encenam o ideal de liberdade. Em seus livros, os pássaros apontam para profundas metamorfoses (como a do boi que se transforma em apaixonada garça em Terra sonâmbula ou no caso do flamingo de papel que prenuncia o surgimento de novas aves em verdadeiras cores e penas, em O último voo do flamingo).

Esses e outros seres, e substâncias, atestam que a cosmogonia literária de Mia Couto faz-se de elementos que trazem uma simbologia complexa, expressando as valências da natureza em sua eterna ligação/ruptura com as ações humanas.