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4. A CONSTITUIÇÃO E A POLÍTICA CRIMINAL DE DROGAS

4.1. A inconstitucionalidade da criminalização do porte de drogas para uso pessoal

4.1.1. Princípio da Dignidade da Pessoa Humana

O princípio da dignidade da pessoa humana está previsto no artigo 1º, inciso III, da Constituição Federal de 1988123, e busca garantir a liberdade dos indivíduos por meio da limitação do poder do próprio Estado. Mas o que é dignidade? Kant a define, quando trata da autonomia da vontade, como sendo “a faculdade de se determinar a si mesmo a agir em conformidade com a representação de certas leis. Ora, aquilo que serve à vontade de princípio objetivo da sua autodeterminação é o fim, e este, se é dado pela só razão, tem de ser válido igualmente para todos os seres racionais”124. No entendimento de Agostini,

a partir da filosofia kantiana, a dignidade pode ser definida como:

[...] o sentimento de respeito: um sentimento a priori, destinado apenas à pessoas; um sentimento que impede que os seres humanos sejam tratados simplesmente como um meio, isto é, que sejam manipulados, instrumentalizados; e que, fundado na reciprocidade entre os seres humanos requer desses, que podem exercer sua capacidade de moralidade, não tratar como meros meios aqueles que não podem, mas considerá-los como fins em si mesmos, isto é, como se estivessem em condições para tal [...].125

A partir desta visão racionalista de dignidade, vê-se que a disposição do artigo 28 da Lei de Drogas agride o princípio da dignidade humana, que é a base de toda interpretação jurídica no Estado Democrático de Direito inaugurado pela Constituição Federal de 1988, tendo em vista que está limitando seres humanos de consumirem algo que é parte de sua cultura, de se autodeterminarem conforme sua razão de ser.126

123 Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e

do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: [...]

III - a dignidade da pessoa humana;

124 KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Tradução de Paulo Quintela -

Lisboa: Edições 70, 2007, p. 67.

125 AGOSTINI, Leonardo. Autonomia: fundamento da dignidade humana em Kant. Dissertação

(Mestrado em Filosofia). Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2009. Disponível em: <http://tede2.pucrs.br/tede2/handle/tede/2823> . Acesso em: 14 outubro de 2018.

Complementa o seguinte:

A dignidade da pessoa humana se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que, somente excepcionalmente, possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos.127

Por se encontrar na base da sociedade em que vivemos, impõe-se como verdadeiro limite aos poderes do Estado, para que cada indivíduo possa viver conforme deseja, protegido por sua intimidade, moralidade e individualidade próprias. Os limites que porventura existirem se devem à condição de violação de direitos alheios, o que não ocorre na conduta de uso de drogas. No que diz respeito à garantia constitucional deste princípio e sua aplicação no universo jurídico brasileiro, esclarece o texto que:

[...] é relevante ressaltar o fato de que os ordenamentos normativos, obviamente, não concedem dignidade. O que eles fazem é apenas o reconhecimento da dignidade como dado essencial da construção do universo jurídico. Enquanto princípio constitucional, a dignidade permeia e orienta o ordenamento que a concebe como fundamento, porém seu significado é muito mais amplo que a conceituação jurídica que venha a ser adotada. A dignidade prevalece como condição da essência humana, ainda que um dado sistema jurídico não a conceba.128

Em outras palavras, a dignidade inseparável da pessoa humana vai além da relevância da previsão no texto constitucional, já que primordial para o estabelecimento de uma sociedade livre, na qual o Estado obedece a suas funções delimitadas pela lei democrática, sem que viole ou invada a privacidade do cidadão, com a proteção de sua autonomia e dignidade.

Desta forma, percebe-se que a incriminação do uso pessoal de determinadas substâncias atinge a dignidade do indivíduo humano. Não pode o Estado interferir em uma escolha pessoal, muitas vezes de grande importância para a pessoa, ainda mais quando se permitem alguns usos, e outros não. Não é digno proibir uma conduta individual e adulta que não atinge terceiros, só é digno orientar e instruir sobre os riscos

constitucionais penais. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 33.

127

MORAES, Alexandre de. Direitos Humanos Fundamentais: Teoria Geral, comentários aos arts. 1º a 5º da Constituição da República Federativa do Brasil, doutrina e jurisprudência. 3ed. São Paulo: Atlas, 2000. p. 60.

128

ROCHA, Carmen Lucia Antunes. O princípio da dignidade da pessoa humana e a exclusão social. Interesse Público, v.1, n. 4, 1999. p. 23.

e reais interações do uso de drogas com nossa saúde.

Além disso, é necessário refletir. Quem realmente tem seu direito constitucional de dignidade ferido? Pelas estatísticas apresentadas, são predominantemente pobres, sem instrução, negros e favelados. Com a palavra, Boaventura de Sousa Santos:

Deve, pois, começar por perguntar-se se os direitos humanos servem eficazmente à luta dos excluídos, dos explorados e dos discriminados ou se, pelo contrário, a tornam mais difícil. Por outras palavras, será a hegemonia de que goza hoje o discurso dos direitos humanos o resultado de uma vitória histórica ou, pelo contrário, de uma derrota histórica.129

Já é passado o tempo de reconhecer que não existirá sociedade sem drogas, e que o caminho desta política criminal está representando uma grande derrota para os direitos humanos e fundamentais, sobretudo dos excluídos, explorados e discriminados. Parar com a criminalização é medida que se impõe, por ser um compromisso inarredável com a proteção da dignidade da pessoa humana.

Quando tratamos do assunto pelo viés da saúde pública, por sua vez, é notória a lesão à dignidade da pessoa humana, vez que milhares de pacientes estão sendo privados de tratamento, de acesso à remédios que podem ser extraídos das substâncias proscritas. É o caso de medicamentos feitos à base dos compostos da cannabis, como tetrahidrocanabinol (THC) e canabidiol (CBD), que serão debatidos adiante. Como é possível ser dignamente humano se o direito constitucional à saúde (art. 196130) não está sendo garantido?