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4. A CONSTITUIÇÃO E A POLÍTICA CRIMINAL DE DROGAS

4.1. A inconstitucionalidade da criminalização do porte de drogas para uso pessoal

4.1.2. Princípio da Igualdade ou Isonomia

.

Previsto no art. 5º da Constituição131, outro princípio constitucional afetado pelo

art. 28 da Lei 11.343/2006 é o da igualdade. Bandeira de Melo destaca, quanto à isonomia,

129 SANTOS, Boaventura de Sousa. Se Deus Fosse um Ativista dos Direitos Humanos. São Paulo: Cortez

Editora, 2013. p. 15.

130 Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas

que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.

131 Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros

e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade.

a imposição constitucional de que haja correlação lógica entre a discriminação criada pela norma e seus objetivos. No exame de constitucionalidade da lei, sob a ótica da igualdade, deve-se, segundo o jurista, verificar o fator escolhido pela norma como discriminatório; após, há de verificar-se se aquele elemento possui fundamento lógico a justificar o tratamento diferenciado; e, por fim, deve-se observar se a relação entre o elemento diferenciador de seu fundamento lógico se encontra em sintonia com os valores prestigiados e positivados no ordenamento jurídico.132 Como explica José Afonso da Silva:

A outra forma de inconstitucionalidade revela-se em se impor obrigação, dever, ônus, sanção ou qualquer sacrifício a pessoas ou grupo de pessoas, discriminando-as em face de outros na mesma situação que, assim, permaneceram em condições mais favoráveis. O ato é inconstitucional por fazer discriminação não autorizada entre pessoas em situação de igualdade.133

Sob este ponto de vista, a criminalização do uso pessoal de determinadas drogas não está em sintonia com a igualdade constitucional, conforme Salo de Carvalho, já que:

“[...] a ofensa ao princípio da igualdade estaria exposta no momento em que se estabelece distinção de tratamento penal (drogas ilícitas) e não penal (drogas lícitas) para usuários de diferentes substâncias.”134

Este ponto é essencial para entender a falta de racionalidade da política criminal de drogas. Que sentido tem permitir o uso de álcool e tabaco, por exemplo, e de não se ter a mesma postura governamental quanto a outras 180 substâncias135? Que falta de igualdade é essa para substâncias lícitas até mais danosas ao corpo do que tantas outras ilícitas? Em uma lista com as 20 drogas mais comuns, baseada em estudo de David Nutt136, o Relatório da Comissão Global de Política sobre Drogas137, esta, inclusive,

132 BANDEIRA DE MELO, Celso Antônio. O conteúdo jurídico do princípio da igualdade. 3. ed. São

Paulo: Malheiros Editores, 1995, p. 27-28.

133 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 34. ed. rev. e atual. São Paulo:

Malheiros, 2011. p. 233.

134 CARVALHO, 2014, p. 373.

135 ANVISA. Resolução da Diretoria Colegiada n. 314, de 10 de outubro de 2019. Disponível em:

<http://portal.anvisa.gov.br/documents/33868/3233596/68+-+RDC+N%C2%BA+314-2019-DOU.pdf/ df982a49-6356-40ca-be1c-7d87d46b4391>. Acesso em: 12 outubro de 2019.

136 NUTT, David. Drug harms in the UK: a multicriteria decision analysis, The Lancet, 2010. Disponível

em: <https://www.thelancet.com/journals/lancet/article/PIIS0140-6736(10)61462-6/fulltext>. Acesso em: 10 outubro de 2019.

137 COMISSÃO GLOBAL DE POLÍTICA SOBRE DROGAS. Classificação de Substâncias Psicoativas:

quando a ciência foi deixada para trás. Relatório de 2019. Disponível em: <https://www.global commissionondrugs.org/wp-content/uploads/2019/06/2019Report_POR_web.pdf>. Acesso em: 10 novembro de 2019. p. 22.

composta pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, aponta o uso pessoal do álcool como o mais danoso de todos, em relação a terceiros, e, juntamente com o tabaco, como a quarta droga mais danosa para o consumidor. Os dois são permitidos e amplamente aceitos na sociedade, entretanto. Por outro lado, a cannabis, o LSD e cogumelos, por exemplo, estão entre as menos danosas para o usuário, segundo a mesma lista, e as duas últimas são as menos danosas para terceiros, também. Todas proscritas.

O discernimento feito entre o álcool, tabaco, substâncias entorpecentes, psicotrópicas e imunossupressoras das outras listas da Anvisa (A, B, C, e D) e as drogas da Lista F– como THC, cocaína, MDMA e psilocina, por exemplo – é completamente autocrático, protegendo o consumidor que usa um tipo de droga e criminalizando o usuário de muitas outras, ainda que não exista razão para tal distinção:

[...] A distinção feita entre as substâncias ilícitas e lícitas é totalmente arbitrária, pois, sem razão de ser, estigmatiza de criminosos os usuários daquelas e respalda legalmente os consumidores destas ainda que não haja fatores desiguais para justificar tal diferenciação.138

Seguindo este pensamento de Karam, há várias garantias para quem se sustenta com a venda de substância que causa dependência, como cervejas e cigarros, com a permissão até mesmo de propaganda pesada e apelativa, cursos e palestras, e até com regulamentações e orientações do Ministério da Saúde, enquanto que o usuário da cannabis, do LSD e da cocaína é tipificado como criminoso, um risco social. Onde ficou a igualdade constitucional? Que tratamento desigual é esse? Mais uma vez, Boaventura:

Por que há tanto sofrimento humano injusto que não é considerado uma violação dos direitos humanos? Que outras linguagens de dignidade humana existem no mundo? E se existem, são ou não compatíveis com a linguagem dos direitos humanos?139

Pode-se estender tal colocação e questionar: que outras linguagens de liberdade existem no mundo? Em 2019, o governo lançou campanha sob o slogan “você nunca será livre se escolher usar drogas.” Nunca serão livres, entretanto, os indivíduos que possuem razões legítimas para o uso de drogas, enquanto o Estado mantiver esta postura proibicionista.

138 KARAM, Maria Lucia. Legalização das Drogas. São Paulo: Estúdio Editores.com, 2015. p. 19. 139 SANTOS, 2013, p. 16.