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3.2 O PRINCÍPIO DO CONTEXTO EM OS FUNDAMENTOS DA ARITMÉTICA: AS

3.3.2 O princípio epistemológico

Marco Ruffino, em Context principle, fruitfulness of logic and the cognitive value of Arithmetic in Frege,82 mostra como Frege concilia o valor cognitivo da Aritmética com sua natureza analítica. Ruffino considera o princípio do contexto em sua formulação epistemológica, também conhecida como priority thesis, a saber, a tese que afirma a prioridade de juízos completos sobre seus conceitos constituintes. O princípio do contexto fornece um modo de se obter conceitos que são verdadeiramente frutíferos e cujos conteúdos não podem ser apreendidos de outra forma.

A principal tese do logicismo de Frege, segundo Ruffino, é a ideia de que as verdades da Aritmética são analíticas, isto é, podem ser derivadas de leis lógicas e definições. Dessa forma, a Aritmética seria redutível à Lógica. No §88, Frege considera a limitação da noção de analiticidade em Kant. Essa noção surge, de acordo com Frege, de um entendimento inadequado da formação de conceitos. Segundo Frege, Kant entende o conceito como sendo determinado por características justapostas e, para Frege, esse é, um dos modos menos frutíferos de formar conceitos. Mas que tipo de formação de conceitos Frege tem em mente que seria capaz de novas e inesperadas consequências? Para Ruffino, o princípio do contexto em sua versão epistemológica é essencial para o Projeto Logicista de Frege, embora não seja explicitado em seus escritos mais importantes.

Ainda de acordo com Ruffino, a crítica de Frege a Kant torna-se mais clara se analisarmos o texto Boole’s logical calculus and the concept-script (1880-1881), em que Frege está tentando tornar claro, por meio de uma comparação sistemática, os pontos em que sua Conceitografia se distancia da tradição da Lógica aristotélica. Frege afirma que sua escrita conceitual é superior aos formalismos anteriores. Ela é um simbolismo claramente definido com uma potência consideravelmente expressiva, obtida pela introdução do signo de generalidade. No entanto, os benefícios formais não são os aspectos mais importantes. A escrita conceitual demarca a distância de Frege da tradição lógica pela introdução de um novo quadro de formação de conceitos para fins científicos.

82 Cf. RUFFINO, Marco. Context Principle, Fruitfulness of Logic and the Cognitive Value of Arithmetic

De acordo com Frege, tanto em Aristóteles como em Boole, a atividade logicamente primitiva é a formação de conceitos por abstração e a formação de juízos e inferências se dá através de comparação imediata ou indireta de conceitos via suas extensões. Frege, ao contrário, parte de juízos e seus conteúdos e não de conceitos, ou seja, há aqui a formulação da prioridade teórica de juízos sobre conceitos. Esta é a primeira diferença entre a Lógica de Frege e a de Boole. Outra diferença muito importante diz respeito ao que Frege chama de ‘definições frutíferas’, isto é, a criação de novos conceitos para propósitos científicos. Eles não são meramente resultado de operações sobre extensões de conceitos já dados. Frege objeta que na Lógica aristotélica e booleana a relação entre conteúdos de conceitos e de juízos é invertida e falta um meio para definir conceitos novos e frutíferos. Na visão de Frege, a Lógica de Boole é reduzida a um mero cálculo mecânico.

Marco Ruffino argumenta que a impossibilidade da Lógica tradicional de formar conceitos frutíferos se deve à inversão da relação entre conteúdo de conceito e conteúdo de juízos. A prioridade do conteúdo de juízos sobre o conteúdo de conceitos é na verdade o Princípio do contexto em sua versão epistemológica. Este ponto é relevante porque Frege não o afirma explicitamente, quando menciona a necessidade de definições frutíferas para superar a trivialidade de proposições analíticas e, portanto, da Lógica. Assim, o Princípio do contexto, em sua versão epistemológica, possibilita o valor cognitivo da Aritmética.

Em uma nota de rodapé, Marco Ruffino afirma que nós já encontramos a priority thesis na Crítica da razão pura, quando Kant apresenta o método que conduz à descoberta dos conceitos puros do entendimento (B 94-96). Kant afirma a prioridade de juízos completos sobre conceitos. Mas, apesar da priority thesis ter tido uma inspiração kantiana, Frege a usa de forma mais radical, a saber, na criação de conceitos científicos.

Não apenas em sua concepção teórica, mas também na criação, os conceitos são precedidos pelas proposições. Assim, para definirmos um conceito frutífero, primeiro um conteúdo de uma proposição completa é apresentado, da análise do conteúdo do juízo surge o conteúdo dos conceitos. Frege acredita que o conteúdo de um juízo pode ser decomposto de diferentes maneiras. Os conceitos obtidos desse modo podem figurar de um modo novo. Frege combina conceitos

velhos a uma variedade de signos, por exemplo, a generalidade, a negação e o condicional.

A definição de conceitos frutíferos usa conteúdos judicáveis. E conceitos já definidos podem ser incorporados em um novo conteúdo judicável para criar novos conceitos. A presente interpretação da noção de ‘definições frutíferas’ lança alguma luz nos comentários de Frege no §88, onde ele fala sobre o tipo de definição que considera frutífera.

Nesse parágrafo, Frege mostra que Kant subestimou o valor cognitivo das verdades analíticas. Em Kant, todas as proposições são fundamentalmente da forma sujeito-predicado; já em Frege, as proposições são da forma função-argumento. E a análise função-argumento permite a um conteúdo conceitual ser representado de diferentes modos. Desde que o mesmo conteúdo seja tomado diferentemente, ele é logicamente legítimo e analítico, e se novos conceitos forem formados, ele será frutífero.

A distinção kantiana de a priori e a posteriori, sintético e analítico, diz respeito ao conteúdo de um juízo, ou seja, se o conceito do sujeito está ou não contido no conceito do predicado. Mas para Frege, temos que separar a pergunta acerca de um juízo, da pergunta de como vamos justificá-lo. Assim, a distinção fregeana de a priori e a posterior, sintético e analítico, não se referem ao conteúdo de um juízo, mas a sua justificação.

De acordo com Michael Beaney,83 a doutrina de Kant, segundo a qual a Aritmética é um corpo de verdades sintéticas, foi uma tentativa de expressar sua crença anterior de que a Aritmética estende nossos conhecimentos da mesma forma que a doutrina de Frege, segundo a qual a Aritmética é um corpo de verdades analíticas se assenta na crença anterior da natureza puramente lógica da Aritmética. Assim, usando conceitos obtidos exclusivamente pelo emprego de leis lógicas, podemos obter conclusões inteiramente novas e não-triviais e que, no entanto, preservam seu caráter analítico. Isto é precisamente o que permite Frege afirmar o caráter analítico das sentenças da Aritmética enquanto reconhece seu valor cognitivo.