PARTE II: A NOVA HERMENÊUTICA CONSTITUCIONAL
2.1 Princípios de interpretação especificamente constitucional
A doutrina considera a grande maioria dos princípios a seguir apresentados de forma homogênea. Procurou-se reunir os princípios constantes das enumerações de Barroso e Canotilho, embora nem todos estejam presentes em ambas.
277
PEREIRA, Rodolfo Viana. Hermenêutica Filosófica e Constitucional. BH: Del Rey, 2006, p. 150.
278
BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição. São Paulo: Saraiva, 1996. p. 143. Na jurisprudência, vide RE 510378-1/MG, relator Min. Ricardo Lewandowski.
279
Os princípios encerram precípua função na interpretação constitucional e de todo ordenamento na Nova Hermenêutica, de sorte que se fala em uma Jurisprudência dos Princípios. Por essa razão, proceder-se-á ao estudo pormenorizado de princípios constitucionais. Sobre Jurisprudência dos Princípios, vide tópico sobre Jurisprudência dos Valores.
Princípio da supremacia da Constituição. Para Barroso, “toda interpretação se assenta no pressuposto da superioridade da Constituição sobre os demais atos normativos no âmbito do
Estado”280
. Desse modo, nenhum ato jurídico pode subsistir validamente se não for compatível com a Constituição. Esse princípio foi apontado como um sustentáculo da Nova Hermenêutica. A Constituição deve servir de fundamento de validade para normas hierarquicamente inferiores. Barroso lembra que
coube ao padre Emmanuel Joseph Sieyès, autor do célebre opúsculo
Qu’est-ce que le Tiers État?, formular pela primeira vez a distinção
entre poder constituinte e poder constituído, bem como afirmar a superioridade da Constituição. Remonta essa obra a idéia da ausência de limitação jurídica ao poder constituinte, que não sofre restrição alguma ao direito positivo anterior.281
Canotilho deixa de apontar a supremacia da Constituição como princípio de interpretação,
mas a apresenta com os mesmos pormenores, considerando a Constituição como “norma superior e vértice da pirâmide normativa”282
.
Princípio da unidade da Constituição. A Constituição deve ser interpretada em sua unidade,
“de forma a evitar contradições entre suas normas”283
. Ela confere, segundo Barroso, unidade e caráter sistemático ao próprio ordenamento jurídico:
A idéia de unidade da ordem jurídica se irradia a partir da Constituição e sobre ela também se projeta. [...] Afinal, a Constituição não é um conjunto de normas justapostas, mas um sistema normativo fundado em determinadas idéias que configuram um núcleo irredutível, condicionante da inteligência de qualquer de suas partes.284
Esse princípio, especificação do clássico elemento sistemático de interpretação, “impõe ao intérprete o dever de harmonizar as tensões e contradições entre normas”285
.
280
BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 150.
281
BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 151.
282
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 2003, p.1147-1151.
283
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 2003, p. 1223.
284
BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 181-182.
285
Princípio do efeito integrador, associado ao princípio da unidade, segundo Canotilho,
“significa precisamente isto: na resolução dos problemas jurídico-constitucionais deve dar-se
primazia aos critérios ou pontos de vista que favoreçam a integração política e social e o
reforço da unidade política”286
. Magalhães Filho assim comenta esse princípio:
A Constituição é uma integração dinâmico-espiritual dos diversos valores aspirados pelos diferentes segmentos da sociedade através de uma fórmula político-ideológica de caráter democrático. A interpretação constitucional, portanto, deverá ser aquela que mais contribuir para a integração social.287
Princípio da máxima efetividade. Canotilho denomina-o também princípio da eficiência, indicando que deve ser atribuído o sentido que maior eficácia dê a uma norma constitucional.
“É hoje sobretudo invocado no âmbito dos direitos fundamentais (no caso de dúvidas deve
preferir-se a interpretação que reconheça maior eficácia aos direitos fundamentais).”288
Barroso realça o aspecto da efetividade, que significa “a realização do Direito, o desempenho
concreto de sua função social. Ela representa a materialização, no mundo dos fatos, dos preceitos legais e simboliza a aproximação, tão íntima possível, entre o dever-ser normativo e o ser da realidade social”289.
Princípio da conformidade funcional (repartição funcional) ou justeza “tem em vista impedir, em sede de concretização da constituição, a alteração da repartição de funções
constitucionalmente estabelecida”290
. Para Magalhães Filho,
se a Constituição organiza estruturalmente o Estado, regulando e distribuindo funções, o intérprete deve ater-se rigorosamente às prescrições voltadas para esse sentido.291
Princípio da concordância prática ou harmonização. Canotilho elucida que esse princípio
“impõe a coordenação e combinação dos bens jurídicos em conflito de forma a evitar o
286
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 2003, p. 1224.
287
MAGALHÃES FILHO, Glauco Barreira. Hermenêutica e Unidade Axiológica da Constituição. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002, p. 80.
288
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 2003, p. 1224.
289
BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 220.
290
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 2003, p. 1224.
291
MAGALHÃES FILHO, Glauco Barreira. Hermenêutica e Unidade Axiológica da Constituição. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002, p. 80.
sacrifício (total) de uns em relação aos outros”292
. Especifica que o âmbito de incidência da
harmonização abarca apenas bens jurídicos constitucionalmente protegidos e direitos
fundamentais. Barroso trata indiretamente desse princípio, enquanto proporcionalidade.
Princípio da força normativa. Por este princípio, conforme Canotilho anota, é que deve ser dada prevalência aos pontos de vista que contribuem para a eficácia da Constituição, considerando seus pressupostos (normativos), na solução dos problemas jurídico- constitucionais. Logo,
deve dar-se primazia às soluções hermenêuticas que, compreendendo a historicidade das estruturas constitucionais, possibilitam a
“actualização” normativa, garantindo, ao mesmo pé, a sua eficácia e
permanência.293
Princípio da presunção de constitucionalidade das leis e dos atos do Poder Público. Barroso, lembrando que a interpretação é operada pelos três Poderes do Estado, aponta a separação de Poderes como fundamento para o princípio da presunção de constitucionalidade.
“Naturalmente, uma presunção iuris tantum, que pode ser infirmada pela declaração em
sentido contrário do órgão jurisdicional competente.”294 O efeito prático da aplicação desse princípio encontra-se na manutenção da “imperatividade das normas jurídicas e, por via de conseqüência, na harmonia do sistema”295.
Sustenta Barros que esse princípio da presunção de constitucionalidade desemboca em duas regras para o aplicador do direito:
a) não sendo evidente a inconstitucionalidade, havendo dúvida ou a possibilidade de razoavelmente se considerar a norma como válida,
deve o órgão competente abster-se da declaração de
inconstitucionalidade;
b) havendo alguma interpretação possível que permita afirmar-se a compatibilidade da norma com a Constituição, em meio a outras que carreavam para ela um juízo de invalidade, deve o intérprete optar pela interpretação legitimadora, mantendo o preceito em vigor.296
292
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 2003, p. 1225.
293
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 2003, p. 1226.
294
BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 164.
295
BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 165.
296
A primeira, comenta Barroso, está ligada ao direito norte-americano e representa a presunção de constitucionalidade propriamente dita. A segunda, ao direito alemão e abriga a interpretação conforme a Constituição.
Princípio da interpretação conforme a Constituição. Trata-se da “escolha de uma linha de interpretação de uma norma legal, em meio a outras que o Texto comportaria”297. Para Canotilho, no caso de normas polissêmicas ou plurissignificativas, deve-se buscar o sentido que seja conforme a Constituição.298Esclarece Barroso que, “além da eleição de uma linha de interpretação, procede-se à exclusão expressa de outra ou outras interpretações possíveis, que
conduziriam a resultado contrastante com a Constituição”299
, a interpretação conforme a Constituição é mecanismo de controle de constitucionalidade: uma determinada leitura, declarada ilegítima, não mantém o texto na íntegra, “mas sua aplicação fica restrita ao sentido
declarado pelo tribunal”300 .
Princípio da razoabilidade ou proporcionalidade301. O princípio da razoabilidade, segundo Barroso, tem sua origem na garantida do devido processo legal do direito anglo-saxão.
Possibilita o “controle do arbítrio do Legislativo e da discricionariedade governamental”302 . O autor preleciona que
[o] princípio da razoabilidade é um parâmetro de valoração dos atos do Poder Público para aferir se eles estão informados pelo valor superior inerente a todo ordenamento jurídico: a justiça. [...] É
razoável o que seja conforme a razão, supondo equilíbrio, moderação
e harmonia; o que não seja arbitrário ou caprichoso; o que corresponda ao senso comum, aos valores vigentes em dado momento ou lugar.303
297
BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 174.
298
Canotilho ressalva que uma dimensão desse princípio é a exclusão da interpretação conforme a constituição, mas “contra legem”, que “impõe que o aplicador de uma norma não pode contrariar a lera e o sentido dessa norma através de uma interpretação conforme a constituição”, ainda que seja conseguida compatibilidade entre
norma infraconstitucional e a Constituição. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 2003, p. 1226.
299
BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 175.
300
BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 175.
301
Canotilho associa o princípio da proporcionalidade à metodologia de controle do princípio de igualdade. Não se trataria, portanto, de um princípio especificamente para interpretação constitucional, mas para alicação do princípio da igualdade. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 2003, p. 1297-1298.
302
BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 199.
303
A razoabilidade tem duas facetas, interna e externa. A razoabilidade interna é medida dentro
da lei, quando há “uma relação racional e proporcional entre seus motivos, meios e fins”304 . A
razoabilidade externa é “adequação aos meios e fins admitidos e preconizados pelo Texto
Constitucional. Se a lei contravier valores expressos ou implícitos no Texto Constitucional,
não será legítima nem razoável à luz da Constituição, ainda que o seja internamente”305 .
Barroso afirma que tanto na Europa continental como no Brasil, países de tradição jurídica romano-germânica, é feita menção ao princípio da proporcionalidade, que “em linhas gerais
mantém uma relação de fungibilidade com o princípio da razoabilidade”306 .
Deve-se, entretanto, assinalar o que a doutrina chama de proporcionalidade em sentido
estrito. “Cuida-se, aqui, de uma verificação da relação custo-benefício da medida, isto é, da
ponderação entre os danos causados e os resultados a serem obtidos”307 .
Expõe Barroso a tríplice caracterização do princípio da razoabilidade ou proporcionalidade.
Assim é que dele se extraem os requisitos (a) da adequação, que exige que as medidas adotadas pelo Poder Público se mostrem aptas a atingir os objetivos pretendidos; (b) da necessidade ou exigibilidade, que impõe a verificação da inexistência de meio menos gravoso para atingimento dos fins visados; e (c) da proporcionalidade em sentido
estrito, que é a ponderação entre o ônus imposto e o benefício trazido,
para constatar se é justificável a interferência na esfera dos direitos dos cidadãos.308
Alexy identifica a proporcionalidade em sentido estrito com o próprio significado de otimização em relação a princípios colidentes, associando esse princípio à atividade de
ponderação ou sopesamento, cuja máxima é “quanto maior for o grau de não-satisfação ou
304
BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 206.
305
BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 207.
306
BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 204. Ávila, que realça a distinção entre os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, não os considera princípios propriamente tampouco regras, mas postulados, afirmando que “Alexy não enquadra a proporcionalidade diretamente em uma categoria específica, pois utiliza, para sua definição, o termo princípio (Grundsatz), limitando-se a afirmar, em nota de rodapé, que as máxima parciais podem ser enquadradas no conceito de regras. A maior parte da doutrina enquadra-os, sem explicações, na categoria dos princípios.” ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 123.
307
BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 208-209.
Ávila reforça que o “exame da proporcionalidade em sentido estrito exige a comparação entre a importância da
realização do fim e a intensidade da restrição aos direitos fundamentais”. ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 160.
308
de afetação de um princípio, tanto maior terá que ser a importância da satisfação do outro”309.